O padé oloonón, Exu e mo juba Ójisé.²
No labirinto das memórias o tempo não conjuga com os
fatos. O segundo ano de morte de uma de minhas tias, aquela com quem vivi,
passou e não fui ao cemitério. O aniversário de minha falecida avó, mãe de
minha mãe e dessa minha tia, passou e não fui ao cemitério.
Estive a pensar:
A casa
– de quem? –
A casa necessita
Reforma no telhado.
Infelizmente ninguém dirá
“Como o gato não subiu no telhado”...
Que falta fará?
Hão de lacrimejar?
Se chorarem será
Pelo que ainda não fez
Não pelo ser.
Em uma manhã após aquela semana meu tio disse que,
breve, viria alguém avaliar o apartamento. Um dos donos – ou ele, ou a tia
ainda viva, ou os filhos dos falecidos, ou uma certa prima – quer vender o
apartamento.
- Coisa que nunca conseguimos antes, mas quem sabe
agora... Sua mãe está com alzaime. E nem ela nem a falecida moram mais aí.
O silêncio é uma nuvem no céu.
Vida após a morte?
Sim, o dinheiro fala mais alto que a solidariedade
além de nada daqui ir para o Todo.
Não, a solidariedade é muda além de nada daqui ir
para o Nada.
Lutar?
Naquela mesma tarde uma de minhas primas me falou:
- Estou pensando muito no Henrique. Tem quantos anos
que ele morreu? Eu gostava muito dele e coloquei o nome dele numa missa na
Catedral.
- Henrique faleceu em dezoito de agosto de dois mil e
um.
- Pouco mais de um mês para o aniversário dele...
Enquanto continua a falar penso nas unhas compridas e
pontiagudas dos dedos das mãos de meu irmão. Nos buraquinhos fechados, mas
nunca cicatrizados em seu pulso esquerdo. Ferimentos em um pedaço de pele
escura e enrugada na pele clara do braço de meu irmão ainda jovem apesar de
mais velho que eu.
Seus olhos abertos observavam quem os observava.
Todos tentaram fechar seus olhos incômodos. Só eu consegui.
Ao amanhecer o enterro não acontecera. O legista, não
sei o porquê, quis refazer os exames. Talvez por ser ele tão jovem e suicida.
Sobre a mesa o corpo completamente nu de meu irmão
que, mesmo morto, tinha o pênis perfeito.
Menezes, o legista, e o estudante Matheus, seu
assistente, reabriram seu peito em um corte comprido iniciado acima do umbigo e
cruzando na parte inferior do esterno duas incisões que iam até a articulação
do ombro; um grande Y.
O assistente pareceu-me sorrir ao olhar para a serra,
para os braços e pernas do cadáver; pareceu-me lamber os beiços ao cortar com a
serra médica a caixa torácica.
No pouco sangue não havia substâncias alucinógenas, o
estômago quase vazio. Nada justificava as marcas de corda no pescoço. Por que
ainda continua lendo? Só eu sabia e agora você...
Com o olhar triste pela vontade não toda satisfeita, o
estudante Matheus fechou o corpo e o legista Menezes liberou para o enterro.
Duas noites após o sepultamento o coração morto bateu
uma vez e parou. Minutos depois bateu uma segunda vez. Mais um minuto e duas
batidas. Outra pausa até bater lenta, mas continuada.
Suas unhas furaram o caixão, cavaram a terra ate seus
olhos verem a lua e seus pulmões respirarem o ar desnecessário.
Fora do buraco observou a cova até esta fechar-se.
Deu um passo e parou. Contemplou onde saíra. Sorriu; como se presenteasse ao
espalhar a grama numa simulação de vida germinada. Sendo que o que fizera não
passara de espalhar a grama trazida pelo olhar até cobrir o lugar que deveria
ser o de seu descanso.
Sei disso porque uma semana depois fiz quase o mesmo.
Antes de eu escrever esta história Henrique veio
ver-me.
Duas da manhã ele me chamou do telhado da casa ao
lado. – Este que você vê, mas no escuro:
Confuso pelo sono e pelo que acreditava ser
impossível, saí do quarto e abri a porta da casa. Parecendo flutuar, saiu do
telhado e chegou à varandícula. Beijou-me sem entrar em casa. Meu pau ficou
duro, mesmo sendo por meu irmão. Gozei. Voltei para cama. Morri.
Fora os hóspedes, em casa ainda há Faire, Ramon,
Juli, Janio. A quem presentearei com meu beijo? Um beijo que não reviverá...
Não sei. Mas a venda do apartamento não mais será um problema.
Ao contrário dos presidentes do Brasil, Chile,
Equador e Bolívia – propagantes da morte viva – o estudante Matheus será um
excelente floreador da vida morta. A delícia da morte é real. Quem pensa
diferente, que viva longos anos...
¹ Clarice Lispector e a Depressão. Trecho
da última entrevista com Clarice Lispector em 1977, concedida a TV Cultura. https://www.youtube.com/watch?v=NkPZkEjGncc&list=LLIH2YzhXzK4qmn97DyBrAbA&index=27&t=0s
² Vamos encontrar o
Senhor dos Caminhos, Exu. Meus respeitos àquele que é o mensageiro.
Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário:
aRTISTA aRTEIRO.
É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.
É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em
“Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”,
“Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.
Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o
Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo –
Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”,
“Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de
Cultura da Cultura de Leitura”.
Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em
Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagem do autor: Telhado pela janela.
Manuscrito nos dias 07 a 10 de novembro de 2019. Trabalhado
entre os dias 16 e 17 do mesmo mês e ano.