segunda-feira, 30 de julho de 2012

O FILHOTE DE TICO-TICO


Obax anafisa.




Era uma tarde de primavera linda e bonita. Os passarinhos cantavam e voavam. As borboletas voavam e enfeitavam o céu e no alto de uma árvore nasceu um filhote de tico-tico. Era uma primavera muito mais que as outras. Sabe por quê? Porque nasceu o nosso herói, o filhote de tico-tico que foi batizado Tiquim.
Tiquim era um desses filhotes possuídos pelo desejo de que o mundo seja exatamente como eles querem¹. Era, enfim, um filhote metido a filósofo e ficava sofismando sobre a primavera, os pássaros, as borboletas, as árvores. E se julgando, pela imaturidade, sempre certo e criticando os “errados”.
Ao nascer o sol nem procurava se alimentar para poder questionar o mundo por mais tempo. Mas não fazia assim por real preocupação, e sim por ser metido a intelectual, por achar bonito ser um mártir social. Ele não se preocupava em perder a refeição porque sabia que sua mãe logo-logo o “obrigaria” a tomar seu café da manhã.
Foi crescendo até se tornar um bonito tico-tico da taquara, meio magrinho porque acreditava no estereótipo de que “nerde” tem que ser magro. Mas até que não era bobo o nosso amiguinho, pois estava sempre namorando. Se falava sobre os poetas brasileiros e pensadores estrangeiros falava também o que as “tica-ticas” queriam ouvir. Era bom de bico. Aliás, era não, é bom de bico porque Tiquim está vivo até hoje e passa bem de saúde, obrigado!
Durante a noite sonha em ser famoso e rico. E durante o dia voa de árvore em árvore pensando pseudas intelectualidades ou então comendo ou ainda cantando e conquistando.
Mas antes de ser um conquistador foi um cdf padrão. Levou tanta porrada dos pássaros grandões que aprendeu a ser dissimulado. Tomar jeito mesmo que bom, nada. Para você ter uma ideia, um dia falando com empáfia sobre Marx, Descartes e outros, um joão-de-barro e um melro o bicaram tanto e ele só não morreu porque as outras aves seguraram o galo-do-mato que também queria entrar na briga e a turma do deixa-disso conseguiu tirá-lo de lá. E Tiquim se emendou? Não! Continuou um chato. Só que de tanto apanhar dos pássaros grandões e de não pegar nenhuma passarinha acabou mudando o comportamento. E se corrigir mesmo que é bom, neca de pitibiriba. E assim o tempo foi passando: sofismando, criticando de modo velado, comendo, cantando, seduzindo, o passarinho foi envelhecendo solitário, sem um amor de sua vida. Ontem, quando eu escrevia o cronto que você lê, o passarinho olhava o por do sol e disse: “‘Está sem ‘tica-tica’, \ Está sem discurso, \ Está sem carinho, \ (...) \ Se você cantasse \ A valsa vienense, \ Se você dormisse, \ Se você cansasse,  \ Se você morresse... \ Mas você não morre, \ Você é duro, Tiquim!’²”. – Estende o olhar por todo o horizonte vermelho, alaranjado e dourado e junto com a última cor, com o último raio de sol disse – “A noite veio. Será que amanhã poderei fazer diferente?”.
Eu creio que Tiquim ainda pode. E você? Por quê?



Ofereço como presente de aniversário à
Victor do Carmo, Monir Charaf, Rogério Pires, Freddy Cosme, Martin Ramirez, Goret Martins e Camile Gracian.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 15 de março e 30 de julho de 2012.

Observação: a ideia central contida no primeiro parágrafo encontrei escrito à caneta num livro que achei nas ruas. Não sei quem a escreveu.

¹ Parodiando: MCEWAN, Ian – Reparação; tradução Paulo H. Britto – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2002, página 13.
² Parodiando ANDRADE, Carlos Drummond – José – retirada na manhã de 29 de julho de 2012 no endereço: http://www.tanto.com.br/drummond-jose.htm

Imagem: Retirada na manhã de 29 de julho de 2012 no endereço:

segunda-feira, 23 de julho de 2012

A LUA SOBRE A ROSA


Obax anafisa.



Bamboleio meu corpo e escrevo de olhos fechados o que você lê e consigo acertar a ortografia. Virginia Rodriguez canta no computador, alguém dança na rua e todos interpretamos na vida.
A mulher que mais desejei também desejava. Eu só queria seu coração, mas não recusava seu corpo. Ela só queria o que eu não podia lhe comprar, mas não recusava o que eu podia lhe dar.
Lá fora, em algum lugar longe ou talvez noutro mundo, não sei, a lua brilha solitária sobre uma só rosa branca. Deitando minha cabeça no travesseiro revivo o dia. Da Biblioteca Zumbi dos Palmares sentei na praça diante do Banco do Brasil, de costa para os mototaxistas e de frente para o canteiro seco. Abro ao acaso o livro A Borboleta Amarela e leio “Não posso escrever sobre outra coisa. E não devia escrever nada hoje. Penso um instante no que sentirão os leitores: essa coisa que me emociona de maneira tão profunda, o sonho que ainda me dói no corpo e na alma, será para eles uma história vulgar; pior ainda, precisarei escrever com muito cuidado, para que esse instante de infinita pureza que eu vivi não pareça a outrem, apenas um pequeno trecho de literatura barata”¹. Lendo isso meus olhos se levantam para o céu sujo, como que espelhando o estado que se encontra Ipatinga – Ai! O descaso do Poder Público. – e desvio-os de lá... Não, na verdade cerrei minhas pálpebras e Diana me veio serrar a carteira. Abro-os assustado. É melhor pensar em coisas boas.
- Oi, Benito! O pessoal tem me pedido para você não postar mais nada. É que o assunto do grupo é outro, não literatura.
- Ok! Numa boa.
- Não se ofenda, cara!
- Por que me ofenderia? Você não foi grosseiro.
Curioso e interessado em saber se estou agradando, questiono a cada contato se deseja que eu continue. A maioria responde que sim, que eu não pare.
- Espero que não fique chateado.
- Claro que não. Cada coisa no seu lugar.
É como realmente acredito. E me sinto. Huuum. Melhorou, mas ainda não estão de todo agradáveis minhas reflexões. Sorrindo me levanto com o livro nas mãos. Saio da praça e vou ao trabalho.
E de noite imagino a lua brilhando solitária sobre uma só rosa branca e uma borboleta entre as duas. Dormi assim, sonhando.



Ofereço como presente de aniversário à
Eduardo Barbosa, Richardson Jhones, Ana Pinto, Sandra Gargalhada, Anilton Reis, Márcia Meireles, Almir Napoleão, Pablo R. Kühl, Miee Aoki.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 19 e 23 de julho de 2012.

¹ BRAGA, Rubem – A Borboleta Amarela – 7ª edição – Rio de Janeiro, RJ: Record, 1984 – crônica Um Sonho.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

carta de Thiago para mim


Ofereço a carta que recebi de Thiago Domingues, grande poeta e amigo maior ainda, à Solange Maria, diretora da Agência Oz. A missiva é meu voto de que minha querida agente cultural supere o que nela está doendo...
Mulé, mostre-se resiliente. Afinal, você é “sol dos anjos”.



São Bernardo do Campo, 10 de Julho de 2012

Bom amado professor e poeta Rubem Leite, que imensa satisfação corresponder-me com você!
Estimada referência nesta minha curta trajetória no mundo das letras, felicito-me em trazer neste diálogo um assunto que muito me interessa: a Educação.
Em uma de nossas conversas lembro-me de ter dito o quanto me inspiro naquelas pessoas que pintam o mundo com a cor da renovação e da esperança, e você, além de poeta, é uma dessas pessoas que tem deixado o mundo mais colorido.
Entre tantos modelos educacionais, penso que nós dois entendemos a Educação como ferramenta para a liberdade e autonomia, para o desenvolvimento do espírito crítico e reflexivo; aquela educação que consiste em ler o mundo, para em seguida significar as palavras, como preconizava outra grande inspiração minha: Paulo Freire.
Acabo de ler a reportagem do seu projeto teatral que saiu no site do Jornal do Vale do Aço. Simplesmente inspiradora!  
Penso que a Arte tem uma importância nuclear em nossas vidas. Seja com as crianças ou com qualquer idade. Refiro-me à arte em seu sentido pleno, ou seja, a metamorfose das emoções como linguagem essencialmente humana, o êxtase  das nossas potencialidades criadoras. 
É preciso reavivar no homem a relação com os mananciais criativos, inerentes à nossa condição e a Arte é a encubaroda desta potência.  Identifico-me (intimamente com a linguagem da poesia, pois é ela que, no meu caso, oferece este canal fértil de diálogo e aproximação com estas esferas. É  com a linguagem poética que tenho investido algumas práticas aqui, na biblioteca, meu local de trabalho.
Há em nossa cidade um projeto fascinante e no qual me orgulho de fazer parte. É a concepção REBI (Rede Escolar de Bibliotecas Interativas) de Bibliotecas Escolares, criada muito antes da Lei federal 12.244 que dispoe sobre a obrigatoriedade das bibliotecas nas escolas. É uma Rede que possui uma organização específica, condizente com a realidade escolar e que visa atender à ideia de um ambiente favorável aos diferentes modos de expressão e produção. Estimula-se a busca e a seleção da informação em um espaço de  livre acesso,  ou seja, não há barreiras físicas, tampouco psicológicas, que inviabilizam o acesso aos elementos informacionais (livros, fantoches, CDs, etc.) e o usuário. Há alguns princípios que norteiam a utilização do espaço, rompendo com a ideia de um simples “espaço de livros”. É  possível citar a infoeducação (educar para a informação) a leitura, cultura e memória, em que estimula-se um belíssimo trabalho de resgate e restauração das relações da comunidade e o contexto escolar.  Dito isso, não se faz necessário acentuar o papel importante que a biblioteca desempenha aproximando a comunidade da escola, enaltecendo por sua vez, uma educação para além dos muros da escola, parafraseando o grande filme francês¹.
Atuando como um mediador das ações que podem desenvolver neste espaço atendemos o que chamamos de ensino fundamental I, ou seja, as crianças de primeira à quarta série, aqui em São Bernardo do Campo, além da comunidade local ou não.
Recentemente realizei um trabalho com poesias com as “minhas crianças”.  É interessante observar o quanto a sala de aula “absorve” muito dos conteúdos internos do professor, sua dinâmica subjetiva e aspirações.  Em uma visão psicoanalítica é impossível desconsiderar uma neutralidade na relação professor-aluno, um  amplo espectro de relações inter e intra inconsciente.  Disse isso para frisar o quanto aquele famoso axioma “e quem vai educar os educadores?” tem validade.  Em algumas salas em que o professor sentia-se impaciente ou não nutria qualquer interesse por poesia, a atividade ocorria aos trancos, enquanto naquelas turmas em que o professor tinha uma “afinidade” maior com a linguagem poética, indo além do famoso “poesia é  rima” a atividade fluia com uma leveza encantadora!  Por isso, futuramente, antes de trabalhar com as crianças, vou fazer o percurso inverso e começar com os professores...
A atividade foi realizada na biblioteca e tinha por objetivo o diálogo entre  duas paixões que tenho: Poesia e Hip Hop.
Aproximar as crianças do olhar poético, aquele movimento que rompe com a dicotomia de que há apenas possibilidades restritas, entre o “sim e o não ou bem e mal” foi o meu objetivo maior.  O olhar poético surge para mostrar que a poesia pode ser um mundo de infinitas possibilidades e o encorajamento para a descobrir  o que existe de melhor de si, seja a sua melhor contribuição para o mundo.
 O Hip Hop é a linguagem das ruas que possibilitou aproximar os conteúdos programáticos aos conteúdos internos da história de vida de cada um. O Hip Hop como retomada da oralidade (também trabalhamos com a literatura de cordel, o repente e a embolada) e o uso do corpo dentro da escola (através das danças e movimentos típicos dos B.Boys)  foi o caminho que usamos para concretizar a poesia como linguagem comum entre os “pequenos”.  Para isso, nada melhor do que usar o legado dos nossos grandes “poetas-mestres”  como Pessoa, Neruda, Quintana , Drummond e João Cabral para revelar o potencial de  cada um dos nossos “pequenos” e a partir da aproximação poética, incentivar a criação autoral de cada um em diversas plataformas.
O trabalho foi discriminado por cada ano/ciclo e teve desde a realização de saraus temáticos na biblioteca, passando por mini-eventos de improviso ou freestyle  até a elaboração dos trabalhos dos alunos, expostos aqui na biblioteca em formato de cordel ou impressos. Tivemos também belíssimas apresentações de “poemas pintados”( alguns poemas viraram pintura das crianças ou foram retratados em paineis em foram de grafite) ou declamados à la MC (mestre de cerimônia, figura importante do movimento Hip Hop).
Pois é, meu grande amigo,  sou muito feliz no que faço! Peço todo dia, ao acordar, que  eu tenha sempre inspiração e transpiração de sobra para inovar e acreditar sempre no potencial do ser humano.  Se hoje eu sou o que sou, é pelo fato de ter pessoas que acreditaram em mim.
Castro Alves,  certa vez disse que “é preciso ouvir o gênio que borbulha em cada um de nós”, e é com este espírito que busco  moldar o presente para que o amanhã não seja estreito e repetitivo, e o brilho nos olhos não seja privilégio de poucos... Acreditar não mais pela ingenuidade, mas pela certeza.
Inspirações duradouras,

Thiago Domingues.

¹ Entre os muros da escola (Entre les Murs ) é um filme francês do ano de 2008. O diretor Laurent Cantet retrata a realidade escolar francesa e aborda o impacto do sistema educacional nos alunos. Ao direcionar  as críticas ao sistema de ensino local, encontramos no filme também  muito do que o pensador Michel Foucaul (1926-1984) disse sobre a educação, entre eles o caráter “adestrador” do pensamento e as relações de poder exercida neste espaço.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O QUE ME DÁ MEDO.


“Minha liberdade esta nas asas que construo com os galhos que retiro do caminho, não tenho medo de deixar uma trilha...”.
(Mayron Engel – facebook 06-7-12) 

Obax anafisa.



Os hippies Diêimis Dim e Marcos giram mundo, não vagam mundo. O primeiro é de Governador Valadares e o outro, do Belém. É vagabundo quem vaga? Olho para o livro “Álvares de Azevedo: Poesia”* e minha mente gira e meus sentimentos vagam enquanto leio.
Ó! Eu me surpreendo por não me surpreender com a surpresa dos que se surpreendem que os homens sejam surpreendentes. Então, ora os ignoro, ora os encaro e ora rio deles.
E rio de mim mesmo. Dentro, tudo gira e vaga.
No Centro Cultural Usiminas o suporte da parede de vidro está carcomido pela ferrugem e as plantas do Jardim Japonês, abertas para a noite, esperam o dia. Identifico-me com o poeta Thiago Domingues, de São Bernardo dos Campos, SP: “É preciso reavivar no homem a relação com os mananciais criativos, inerentes à nossa condição e a Arte é a incubadora desta potência”¹. Sensível à sociedade ele se faz verbo e não perde a humildade. É uma alma de cachinhos dourados num corpo de urso panda. Uarrarrá! É gente boa!
Retirando os olhos do jardim às escuras vejo cinco mulheres em dois grupos chilreantes. Elas me miram e se admiram com meu poncho. Não me incomodo com os seus gorjeios sarcásticos e finjo ignorá-las. Olho para as pedras através da parede e devaneio. Amigo é ser o que se é e sobreviver; não por o dedo na ferida e é dizer o que vai ferir; é ouvir a palavra amarga e envolver com atadura as pústulas do outro. É um ir e vir.
E choro de mim mesmo. Dentro, tudo gira e vaga.
Diêimis Dim e Marcos giram mundo, não vagam. Sempre vão, mas voltam. Nem sempre exatamente para os mesmos lugares. Espero a peça “Para Duas”² começar refletindo no que Luzia me disse uma vez “personalidades que se desajustam pela falta de carinho, pela incompreensão das ações praticadas pelo outro”² e sinto o que me falou Helena “Dores são muitas e, mesmo universais, são singulares a cada ser humano”².
- Seu “café totó”. – Como é assim que chamo o “caffè latte”, a garçonete me entrega a xícara de café expresso com leite. Sorrindo para a delícia vou para um ensinamento que li “Uma simples mudança de ambiente ou mentalizar um pouco que ‘hoje é um bom dia’ não é suficiente. Para mudar a direção da mente, é necessário apreender ‘um raio de luz’ que brilha em nosso cotidiano. Pois nossa vida é criada com o que pensamos a cada momento”³.
- Benito!
- Leonardo! Maximiano! Também vão assistir ao espetáculo? Sentem-se, por favor.
- Que livro é esse? – Mostro e Leonardo continua: Gosto de Álvares de Azevedo, é bom. Vez ou outra eu releio seus poemas. Benito, achei interessante seu comentário no “feicebuque”, mas não concordo que arte é o que se faz pra viver. Arte é a concretização de sentimentos, percepções, impressões, do universo humano que o indivíduo dotado de sensibilidade é incapaz de conter. O que ocorre em torno disso – consumo, profissão, valor monetário sob produtos intelectuais – é mera questão social e política. Quero dizer que o artista não faz arte para viver, ele faz arte porque é inevitável, mas utiliza o produto dela como recurso financeiro. E a isso se infere diversas outras reflexões. Tem gente por ai fazendo “merda” pensando que é arte, e ainda por cima querendo vender... Não rola.
- É uma discussão profunda, Leonardo! Penso parecido, mas não igual, claro. Se pensássemos iguais seríamos não pensantes... – Sorrio. – Eu entendo arte como trabalho. E acho uma – perdão pela má palavra – sacanagem ter que fazer outra coisa para poder sobreviver. O autor do presente cronto que nos tem como personagens e que o leitor(a) esta usufruindo é artista – pelo menos ele se julga tal... Uarrarrá! – artista cênico e, principalmente, literário e ter que fazer bicos ou dar de graça o fruto de seu suor não lhe alegra. Ele ama, muito mesmo, que o leiam, que assistam as peças que dirige e quer também que lhe paguem como pagam os médicos, cozinheiros, advogados, professores e etc. que também gostam que os outros se agradem com o que fazem... Sobre a questão que você disse maravilhosamente “faz arte porque é inevitável” e “Tem gente por ai fazendo ‘merda’ pensando que é arte, e ainda por cima querendo vender”, Rubem fala sempre algo mais ou menos assim: todo artista cênico é ator, mas nem todo ator é artista; todo artista musical é cantor, mas nem todo cantor é artista e o mesmo pode ser dito sobre as variações diretor de teatro, músico instrumental e etc. Ou seja, o artista é um criador e não um imbecil que se acha o tal. E por ser criador, nada mais justo que viva de suas criações. Não sendo apenas homenageado, elogiado e faminto. Viu? Pensamos de modo semelhante.
- Então, Leonardo e Benito, posso dizer que a merda se vende mais que a arte. Outra observação é que os artistas de rua que colocam a arte antes da condição financeira – quando damos dinheiro para um malabarista em um sinal, algum artista que fez seu numero e rodou o chapéu, aquilo não é esmola, pois esmolas damos de graça para alguém... E nossos olhos, ouvidos, tatos, qual seja o sentido, consumiu a arte daquele artista. Exemplo de esmola é o IPVA: damos pro governo, mas as ruas continuam cheias de buraco, as BR perigosas. A diferença entre artista de rua e o pseudo artista é que o primeiro não exclui os que não podem contribuir; este é o valor que a arte tem! E o segundo entulha nossa cabeça de porcaria. Ou tenta atentar...
Risos.
- Penso também parecido com você, Maximiano. Em geral os artistas de rua são artistas mesmo (toda regra tem exceção, claro). Agora nem todos que não vão para rua deixaram de ser artistas por isso. Augusto Boal – terei que pesquisar qual livro, se alguém fizer questão em saber – diz e eu concordo com ele que o artista pode por a vida em serviço da arte, mas que prefere – e eu também – aqueles que põem a arte em serviço da vida. Cada um vive como pode. Alguns indo para as ruas e outros não, mas todos vendendo seus serviços – observação: venda de seus trabalhos-produtos e não suas vidas nem suas artes. – Eu vendo meu trabalho, mas escrevo e dirijo teatro por amor e por ser incapaz de não criar.
- Epa! Primeiro sinal. Vamos? – Diz Leonardo. Pago a conta, levantamo-nos e penso “São tantas sombras e tantas luzes. Aonde ir?”.



Ofereço como presente de aniversário à
João F.B. Araújo, Carla A. Weber, Rochelli Anício, Piria Sindipa, Marcos Teixeira, Luiz Poeta.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 07 e 16 de julho de 2012.

* AZEVEDO, Álvares de – Álvares de Azevedo: poesia \ Maria José da Trindade Negrão – 6ª edição – Rio de Janeiro: Agir, 1984.
² Folder do Espetáculo Para Duas (de Ipatinga MG) – ficha técnica:
    Marcos Loureiro (direção); Ed Anderson Mascarenhas (texto); Luzia di Resende e Helena Santos (atrizes); Leandro Calisto (iluminação); Pedro Bastos (trilha original e design gráfico); Jamil Boali (figurino e cenário); Rubens Sarnento e Márcio Martins (confecções de cenário); Perna de Palco (produção).
³ TANIGUCHI, Junko – Revista Pomba Branca, nº 324, julho 2012 – São Paulo: Seicho-No-Ie, páginas 10 e 11.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

MONTURO


Obax anafisa.


Saio com Haicai, Decidido e Vitório. Ainda trancando o portão: Um poste marca fronteira na escuridão da madrugada. Entre os dois uma chuva verde quase toca um pequeno monturo preto. Mal presto atenção e vou indo com meus cachorrinhos. Do cruzamento entre Uberaba e Sabará
- Dormi gostoso e agora estou pronta para o dia. – A garota envelhecida com um lençol cobrindo cabeça, ombros e tronco fala para seus colegas de vício. – Estava com Juliano.
- Que Juliano? – Questiona uma mulher do grupo envolta por um cobertor marrom.
- O Atleticano. Meninas, e que galo ele tem...
- Huum! Então agora é minha vez de dormi bem.
- Querida! Cama melhor que eu não tem.
Rindo para mim da conversa, continuo meu percurso diário. Vinte minutos depois volto com meus cachorrinhos e o poste ainda marca fronteira na escuridão da madrugada. Entre os dois uma chuva verde quase toca um pequeno monturo preto. Olhando melhor vejo que o monturo debaixo do chorão é um pneu e, dentro, o que deve ser alguém acocorado, envolto completamente por uma escura roupa de frio.
Em verdade eu sou inconstante. Num sol de quase julho atravesso o espaço para parques e circos em Ipatinga. Na rua Araxá, quando eu ia pegar a Uberaba, um desconhecido me chama. Ignoro. Chama outra vez, faço “não” com a mão e sigo. O rapaz vai ao meu encontro numa perpendicular. Caminhamos em silêncio. Eu ouvindo meu mp qualquer número e ele ao meu lado.
- Deixa eu ouvir o que cê tá escutano.
Acho graça e lhe dou um dos fones.
- Quem é?
- Gal Costa.
Silêncio.
- Cê vai querer quantas? Duas!
- Não, obrigado! Não uso.
- Então tá. Cê mora aqui?
- Sim!
- Então tá. – Devolve-me o fone e sigo achando graça. Não deveria.



Ofereço como presente a Wenderson Godoi e Luciano Botelho pelas Bodas de Marfim.
E como presente de aniversário à
Fran Reis, Tania Ribas, Rosangela Santos, Luciana C. Aguiar, Solange Maria, Jean Nascimento e Rosi Sabino.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 29 de junho e 09 de julho de 2012.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O QUE VALERÁ


Obax anafisa.


“No amor basta uma noite para fazer de um homem um Deus”.
(AZEVEDO, 1984)



No escuro o silêncio, um existir com jeito de não existência. Até que gritos violentos de dois traficantezinhos e viciados em craque brigando pelo cachimbo. As ameaças de morte, o ódio nas vozes e os ataques físicos quebram o silêncio tirando-me da inexistência do sono e enricando-me de adrenalina.
Sem poder dormir me levanto para encerrar a madrugada com minhas preces e começar a manhã com meus trabalhos de faculdade. Ó céus! A internete está fora do ar. Ligo então para a Oi Velox. Gravação chata, clicar número, mais gravação, clicar outro número e assim indo até que
- Bom dia! Sou Fulana. Com quem falo?
- Benito!
- O que o senhor deseja?
Resumindo o diálogo: a garota me afirmou “em três dias o problema estará resolvido”. No quarto dia ligo outra vez e Beltrano afirma “o problema está na Central e será preciso mais três dias”. E pelo que vejo hoje será a missa de sétimo dia... E foi! Só me resta o procon. Será que valerá alguma coisa?
Nesse meio tempo, sem internete em casa tenho ido ao Pq. Ipanema. Na volta, os cabelos negros em um corpo moreno deitado sobre a grama sob as árvores. Belo corpo. Seu rosto voltado para o lado contrário de onde venho se mostra refletivo ou vazio. À medida que me aproximo seus olhos se encontram com os meus. Sorri para mim e eu lhe cumprimento. Ao passar-lhe sua voz me pergunta:
- O senhor tem um real?
- Devo ter umas moedas no bolso, não sei.
- Moro em Fabriciano. Estou com preguiça de ir a pé e estou com fome.
- É! Já são mais de onze horas. Estou indo para minha casa fazer meu almoço. Se quiser, venha comigo.
Ante sua hesitação (ou será outra coisa?) explico
- Não estou vendendo comida ou comprando sexo. É apenas convite para almoçar.
- A gente não se conhece...
- Você que sabe. Somos adultos e é só convite para almoçar. Mais nada.
Em meu apartamentinho
- Nó! Quanto livro... O senhor deve gostar de ler.
- Prefiro que me trate por você.
- Posso pegar neles? – Aponta para meus livros.
- Sim, pode.
Escolhe um e lê “minhas professoras co-costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de escrever uma carta, narrar um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para determinado fim o conhecimento que ia ad-adquirindo do poder da expressão contido nos sinais reunidos em palavras. Daí por diante as experiências foram-se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a literatura”².
- Você tem boa leitura.
- É! Eu também gosto de ler. Mas não tenho uma biblioteca, muito menos uma assim, feito a sua.
- Obrigado!
Arroz branco, feijão preto, carne cozida, salada colorida e retiro sua persistente dúvida afirmando “Sexo só faço com quem quero e com quem me quer”. O que você acha V ou F a minha afirmação? Gostaria que você me falasse o que sua imaginação lhe diz. À noite, porém, mais uma vez sozinho e no escuro o silêncio, um existir com jeito de não existência.
- Não me deixe. Eu tinhaaaaaaamooo. – Voz de mulher, nasal, ridícula.
- Para cum issu, mulé!
- Ai, eu tinhaaamoo.
- Para cum issu. Uzomi vão vir aqui.
- Num mimporta. Eu tinhaaamoo. Ai, Deus!
- Vai acordar usvizinhu e ozumi vão vir.
- Num mimporta. Eu quero morrer. Deeeus! Me mata, Deus! Socê num fica cum eu então mi mata. Eu tinhaaaaamooo. Eu quero morrê, Deus! Socê nunqué ficá cum eu então mi mata.– Tum. – Aiiê!
Concomitantemente da janela de meu quarto grito: Vá cantar “nemaquitepá”, peste. Mas bem longe.



Ofereço como presente de aniversário à
Cláudia Turatti, Luiz O. Ferreira, Alano O. Barbosa, Sueli M.B. Silva, Ronalla Kelly, Rita E. Rocha.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você que me lê e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 24 de junho e 02 de julho de 2012.

¹ AZEVEDO, Álvaro de – Poesia / Maria José da Trindade Negrão – 6ª edição – Rio de Janeiro: Agir, 1984 (Nossos Clássicos), página 41.
² ANDRADE, Carlos Drummond – Para Gostar de Ler: crônicas, vol. 04 (diversos autores) – São Paulo: Ática, 1979, página 07.