domingo, 30 de janeiro de 2022

A BANALIDADE DO MAL É O DESPREZO À CIÊNCIA AO BEM E AO BELO

De cócoras observo meu jardim. Borboletas voam sobre as flores. Uma tem preta a moldura das asas e todo o cento é verde néon. Nunca tinha visto uma assim.

Do alto das árvores sou observado pelas aves e elas me reconhecem pelo que sou - árvore - e em mim fazem ninhos.

De um ninho em mim um pássaro me pergunta:

- O que você escreve, Benito? Sobre o quê?

- Através das palavras faço retratos de rostos e da cidade. Busco ligar-me a quem e ao que vejo.

- E como você os desenha?

- Do jeito que são aos meus olhos; mas só após muito pensar, pesquisar, analisar, filosofar.

- O que você tem visto e ouvido?

- Olhar e escutar são muitas as coisas, mas para ver dou preferência aos olhos das pessoas; para ouvir prefiro o vento nos meus galhos, aos cantos e pensamentos pássaros, e a voz de quem sabe o que tem a dizer.

- Quem você tem ouvido, o que tem refletido?

- Belo pássaro de linda voz que ecoa triste no meu cérebro. O que me atormenta estes dias é:

- Adolf Eichmann foi o burocrata alemão responsável pela prisão e morte de milhões de Judeus. Com o fim do nazismo fugiu para a Argentina e lá trabalhou numa fábrica por quinze anos até ser descoberto em 1960.

Fecho os olhos para reter a vontade de beber.

- A filósofa Hannah Arendt após ler as milhares de páginas do processo - acusação e defesa - de Eichmann descobriu algo desconhecido sobre a psique humana. A Banalidade do Mal.

- O mal pode ser banal, Benito?

- Ah, pássaro! A humanidade pode tanto... Veja:

- Eichmann era um homem comum. Respeitava a esposa, acompanhava os estudos dos filhos; um bom cidadão. Então como ele pode ser um burocrata nazista? Para isso vamos entender a teoria filosófica A Banalidade do Mal:

"O pior mal é cometido pelo cidadão comum que perdeu ou não desenvolveu a capacidade de análise crítica, de dizer não, de indignar-se perante a falta de ética do sistema onde a maldade é difundida de todas as formas e por todos os lados. Fazendo esse cidadão tornar-se um monstro sem se dar conta disso nem dos absurdos do sistema".

O vento baila as árvores e me toca num consolo.

- Pássaro, Eichmann morreu acreditando-se inocente por ser apenas uma peça do sistema e que os verdadeiros criminosos eram os governantes. Isso é a banalização do mal. A incapacidade dos malfeitores em perceber a gravidade de seus atos. E a descoberta de Arendt promoveu nas universidades a importância não só de passar conhecimentos, mas também ensinar a análise crítica dos discursos e a valorizar a diversidade e pluralidade de ideias.

Após dizer isso, ouço, não do pássaro, mas de muita gente no mundo:

- Não digo que ele não sabia o que fazia. O problema da teoria é afirmar que ele não se sentia responsável pelos resultados. Isso foi apenas uma estratégia defensiva. Se ele não se sentisse responsável, não teria fugido para a Argentina, vivendo como um desconhecido e com falsa identidade. Mais esperto foi Albert Speer em Nuremberg, o qual evitou não só ser condenado à morte, como ser condenado à prisão perpétua...

- Gente, seu ponto de vista é muito relevante para um bom diálogo.

- Obrigado!

- Algo banal é algo corriqueiro. - Argumento. - No período escravagista as pessoas não percebiam que aquilo era mal, pois era o normal. Se fossem ameaçados de serem presos iriam fugir por medo da prisão e não por perceberem o mal que fizeram. Essa é a questão. - Silencio-me para ouvir o vento e as aves que têm mais a dizer do que a maioria das pessoas. Depois continuo: Quando eu era criança... Hoje tenho cinquenta e três anos... eram comuns "piadas/brincadeiras" racistas e homofóbicas e isso aprendíamos com os adultos que aprenderam quando meninos. Não percebíamos como males nem que eram preconceitos. - Engulo minha vergonha e confesso:

- Há também o medo como condutor. Sou membro da comunidade LGBTQI+ nunca época que, muito mais que hoje, perseguia pessoas como eu. Por isso tentei muito ser o que não era. Fiz piadas homofóbicas para dissimular. Fingir interesse por mulheres. Pisoteei meu ser. O medo me fez mentir sobre mim, agredir verbalmente pessoas audaciosas, enganar mulheres ao fazê-las acreditar que as queria num relacionamento hétero.

Outros pássaros que acompanham a conversa cantam tão docemente que deixo sair uma lágrima libertadora antes de continuar.

- Foram três décadas horríveis a me fazer um homem horrível. E por quê? Porque o racismo e a homofobia eram males banalizados. Ou, você Gente, crê que eu não sofria pressão e agressão social e religiosa em casa, na vizinhança, na escola etc.?

- Seria sorte, escolha, possibilidade, acesso? Não discutirei isso; não agora. Mas como gosto de estudar e tive a sorte de conviver com artistas e intelectuais fui observando o mal que ignorava e aí sim fui capaz de refletir e mudar de comportamento.

- Qual é sua postura hoje? - Pergunta o pássaro no ninho em mim.

- Minha postura é: Sou o que sou. Não quer ver pessoas como eu? Então que fique cego. Duro, não? Mas é fato. Eu e meus semelhantes estamos aqui para não banalizar o mal.

Mas Gente parece não entender. Por isso continuo a dizer ao pássaro e se alguma gente puder e quiser entender, que compreenda. Caso contrário, lamento.

- Pássaro, não sou negro, mas qualquer desrespeito aos negros me afeta porque somos humanos. Não sou mulher, mas qualquer desrespeito às mulheres me afeta porque somos humanos. Não sou gordo, não tenho deficiência física ou intelectual, não sou da Umbanda, nem do Candomblé, nem sou judeu, ou cristão, ou muçulmano ou ateu. Mas qualquer agressão a essas é outras pessoas/comunidades me afeta porque somos humanos.

- Pássaro, não estou só no mundo, mas sou só. É claro, têm muitas pessoas que gosto e algumas eu amo. Talvez haja quem me ame, mas é certo que alguns gostam de mim.

Ao íntimo ninguém adentra.

Num silêncio só ouvido pelo pássaro no ninho na árvore que sou analiso uma boa conversa tida com o máximo minecontista Girvany de Morais,  pois amigos e escritores somos nós dois.

Disse ele a Benito para depois escutar:

- No meu velório, que, creio, vai demorar, quero uma multidão.

- Não quero velório. Não quero ninguém acompanhando. Quero ir direto pra sepultura.

Benito morreu primeiro. Muito depois foi a vez do outro.

Primeiro falemos do velório do último.

Cem pessoas ou mais.

Quinze sofreram a perda. Vinte e cinco choraram arrependidas pelas mágoas sofridas, pelas provocadas e pelas mágoas mútuas. Dez disfarçaram os antegosos com pesadas lágrimas. A outra metade pouco sentia; fosse bom ou fosse mau. Uma lágrima aqui e ali; pouco sentidas. E muitos causos e piadas durante o féretro.

Enterro do primeiro:

Sem pessoas.

Ninguém sofrendo amargas lágrimas. Ninguém antegozando com lágrimas de crocodilo. Ninguém contando causos e piadas. Ninguém com falsas lagrimas.

Paz.


_____

Rubem Leite.

Parte da Inspiração de meu cronto veio de um texto de Joel Paviotti. A página dele no Caralivro se chama Iconografia da História.

O conteúdo do meu cronto é ficcional, mas como toda boa mentira tem sua base na verdade. O texto tem sido pensado desde o outubro passado, mas escrito entre os dias 27 a 30 de janeiro de 2022 e postado neste último dia.

domingo, 23 de janeiro de 2022

BORBOLETAS, VENHAM!

O que quero:

Que minha manhã acabe, meu dia acabe; a noite acabe sem começar outro dia. Não quero que acabe o mundo para os querem continuar.

O que tenho:

Canto de galos 🐓 e pássaros 🐦, flores 💐, nascer e pôr do sol 🌞, vento nos galhos das árvores 🌳. Tudo para, suave, me animar. Tenho também as pessoas - brutas, todas ou tantas brutas - para me desanimar.

O que faço:

Escrevo, leciono, leio e aprendo a ouvir em silêncio. Espero o que quero. Agradeço aos suaves ânimos (obrigado!). Abrando meu coração de carne com a brutalidade.

Há penumbra, mas não treva. Os livros atrás de mim, a escrita à mão, os cachorros 🐕 que não veem... estes fortalecem meus ombros pesados e minha cabeça se ergue. Em silêncio vejo, ouço e penso.

Cláudio Letro disse-me o que escrevo com minhas palavras a produção da escrita é mais um sentido de cura e o processo é mais rico que o produto - o palpável e comunicável livro 📖 -. Contudo o nascimento do livro interessa mais ao povo enquanto este não se interessa pela pessoa-artista.

Do que Cláudio me ensinou vejo a construção mais importante que o produto; e olha que o livro é fascinante. E venho pensando na diferença entre escritor e fofoqueiro. O escritor fala de si enquanto o fofoqueiro, do outro. Se uma situação política, religiosa, social ou pessoal incomoda o escritor, o operário das letras fala do seu desconforto.

Até por isso usamos de ficção [pessoas inexistentes, monstros etc. (As pessoas são inexistentes, mas não os fatos)]. O fofoqueiro fala mais das pessoas que dos fatos. Mais reclama e xinga do que protesta e denuncia. Mais do que o outro fez do que sentiu (de fato).

Em silêncio ouço, e penso no que vejo.

A taturana saiu do jardim ao amanhecer. Subiu a rampa de cimento baixo o forte sol da manhã de janeiro. Meio-dia fixou-se no degrau para minha casa. Duas horas depois ainda estava lá.

Peguei um pedaço de madeira para servir de suporte e uma sacola plástica para ser minha luva. Coloquei a taturana na madeira e a soltei numa folha, por acaso, bem furada de mamona.

Não sei. Não sei. O que sei?

Fora-lhe bom? Fora-lhe mau? Nem bem nem mal fiz? Fui-lhe indiferente à vida?

O que sei? Nada, nada sei.

Virão as borboletas 🦋.

Se essa lagarta há de transformar ou não por minha intromissão ou minha ação não lhe causou sério impacto para o bem ou para o mal não hei de conhecer.

Uma só pessoa afeta muito pouco o planeta - parece tão óbvio - mas o grupo humano afeta demais - parece tão óbvio, mas não é ou é desimportante.

Que venham as borboletas.

Que a velocidade da tartaruga 🐢 dê mais prazer que a velocidade do míssil, sugere Manoel de Barros.



Rubem Leite

O que tenho pensado objetivamente desde o domingo passado e subjetivamente não sei por quanto tempo ponho a público.

Foto: de Erika Aviles.

23 de janeiro de 2022.

domingo, 16 de janeiro de 2022

PERSONAGENS E PESSOAS

Li, não me recordo de qual autor, algo como "pessoas que escreveram livros: Napoleão Bonaparte, Carlos Drummond de Andrade, Darwin e outros. Pessoas que não escreveram livros: os soldados de Napoleão, a cozinheira de Drummond, os acompanhantes de Darwin e tantos outros". Não foi exatamente isso que disse, mas essa é a ideia.

Pelo meio de janeiro do ano passado, mais ou menos nessa ocasião, comprei dois pés de antúrio e os coloquei num só vaso. Isso para "plantar" o umbigo de uma criança que estava para chegar.

"Plantar o umbigo" junto a raiz de uma planta dá boa sorte na vida do recém-nascido diz a crença, ou a superstição ou a sabedoria popular; como queira pensar.

Sete meses depois do nascimento me mudei de Ipatinga para Timóteo. E antúrios não gostam de mudança; preferem o sossego; o que os abalou. E poucas semanas depois, pra piorar, o vaso caiu.

Quase morreram as plantas. As folhas ficaram muito lastimadas e se quebraram quase todas. Uma até acho que morreu mesmo. Pelo menos até agora não deu sinal de vida... Mas a outra, assim como a irmã, ficou com duas ou três folhas. Porém esta vigorou. Pouco a pouco; numa convalescença de meses.

Uma folha morreu, outra também e a terceira está até hoje. Com cicatrizes, mas deu força para que nascessem outras folhas. Mais bonitas que a ferida.

Folhas bonitas e personagens históricos, literários.

Folhas machucadas e pessoas anônimas.

Livros, músicas contam histórias, mas não valem a vida de qualquer pessoa. Canta Elis Regina.

Mas sem arte a vida nada ou pouco vale.

A folha ferida não escreveu nem cantou. E foi ela que às outras desencantou para que servissem de registro. Inspirar para não expirar.

Quem a olha o que vê? Se é que a vê.

Ah, personagem, o destino te leva pra cima e fica a espera assistindo a queda que te deixará - igual as demais pessoas - na horizontal e com terra por cima. Canta Dolores Duram.

Será que a gente um dia aprenderá que ninguém é especial?

Somos tudo coisa em outra coisa rotando e trasladando ao redor de outra coisa num cantinho lá nos fundos de outra coisa a rodar com milhares ou milhões de outras iguais numa coisa que talvez seja apenas uma entre outras coisas...



Rubem Leite

Por semanas, a pensar nisso,  a ler livros, a conversar com inteligentes, reparou no antúrio e dois, três dias depois - 16/01/2022 - escreveu o que, por enquanto e só por agora, concluiu. Ainda não estou pronto. Só não sei quando vou acabar. Mas até lá continue lendo o que publico, indique a outros. E não parem depois.

domingo, 9 de janeiro de 2022

ENTRE O BALANÇO DOS RABOS E OS CUMPRIMENTOS DAS PESSOAS

                    Caminha o dia

                    A vida não é tranquila.

                    A observar os tempos

                    Árvores e ventos

                                       Bailam.


- Não sei se a culpa é mais minha ou se é mais sua. Mas comumente tenho pouco interesse em descobrir quem errou. Prefiro resolver o problema. - Minhas falas não têm raiva; sequer têm interesse no que lhe provoco e continuo. - Talvez eu muito me engane, mas creio que você me machucou muito mais e por longo tempo. Não sei. Mas meu único erro - posso estar enganado porque tendemos a ser permissivos conosco, mas minha impressão é estar certo. - como dizia: creio que meu erro é ter tornado público uma discussão que deveria estar privada. - Paro um pouco para olhar o balanço dos galhos de árvores e penso 'Esteja eu ou ele errado não me interessa. Não quero mais a amizade do rapaz'. Continuo: Somos vizinhos e só assim conviveremos.

Ele responde:

- 😡😈🤬💀👿☠🦂🐍🦎🪓🔪😡🤬

Sem paciência, mas também sem raiva eu me levantei e disse: "Seus cachorros gostam de mim, mas os meus não gostam de você..." Dei as costas e saí.



Rubem Leite.

Escrito entre 02 e 09 de janeiro de 2022.

domingo, 2 de janeiro de 2022

POR UM FIO

 


Sono.

Fecho os olhos.

Vejo um lugar em penumbra. Teias de aranha em muitos cantos.

Em cada uma há alguém.

Um rapaz está trêmulo de ansiedade, de pavor, de desejo.

Uma grande aranha, muito maior que o jovem, com seu modo assustador anda pelo lugar, sobe na teia.

Ele teme, mas o desejo é maior.

A aranha pica o moço.

Este sorri e se agita. Desprende-se da teia, exceto por um fio.

Vê o universo e outras maravilhas.

Tempos depois – apavorado, desesperado, ansiando, desejando – volta para seu lugar na teia e se prende à espera da próxima aranha a picá-lo.

 

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagem: Aranha – foto do autor de um artesanato ganho alguns anos atrás de um mochileiro.


Não registrei a data de escrita.