Duas, quase três horas da tarde nublada e a
vista frontal no ponto de ônibus mais próxima da transversal de quem vai para
os bairros de Timóteo mistura o belo com o feio. Os fundos do Centro de
Economia Informal “Raimundo de Souza Neto Sô Mundico” junto com árvores e matos
descendo uma greta; o barulho do trânsito, gente conversando e pássaros
cantando.
Depois de observar, pego o livro A Língua
de Eulália, de Marcos Bagno e me relaxo com estes versos de João Cabral de Melo
Neto:
Catar feijão se limita com escrever:
Joga-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha do papel;
E depois, joga-se fora o que boiar.
Minha leitura é atravessada pelo barulho
humano.
- Ele gritou comigo.
- Osvaldo sempre te xinga?
- Não. Foi a primeira vez. Já discutimos
antes, é claro. Mas brigar mesmo foi a primeira vez. E não quero uma segunda...
- Ele te xingou de quê? De vadia,
vagabunda, mocreia?...
- Não. De estúpida e grosseira.
- Uai! Então não é Maria da Penha, não.
- Como não? Ele é homem...
- Todo mundo pode xingar. O que não pode é
xingamento sexista, machista, racista... Existe xingamento que é só por estar
nervoso. Vejamos: Se o Osvaldo chamasse alguém de “criolo, urubu” se vê que é
racismo. Se alguém chama outro de algo que não tenha ligação com cor de pele,
tamanho do corpo, gênero... é outra coisa.
- Mas...
- Aí vem nosso ônibus. Lá dentro a gente
continua.
Olhando a vista a frente, abro minha bolsa
e recolho a antologia Identidades, da editora Venas Abiertas. Sinto o que um
dos autores escreveu. Tudo o que dizem é identidade; se não minha é de quem
tenho paridade. Ai, humanidade que odeia igualdade. Quer a desigualdade no
lugar da diversidade. Olha o outro e não se vê.
Às vezes, quantas vezes, o que planto é
colhido...
- Você é agricultor? – Pergunta debochado a
voz do meu adversário interior.
- Não! Sou escritor, professor.
Querem levar não o melhor de mim, mas a
melhor sobre mim. Algumas vezes, como vi em Torto Arado, de Itamar Vieira
Junior¹, consigo impedir que me deixem os restos; conservo para os meus os
maiores e melhores frutos de meus trabalhos. Ah! Tão frequentemente sinto
vontade de deixar tudo apodrecer e perecer por desgosto, por desânimo diante das
constantes batalhas que não existiriam se não fossem egos, vaidades, maldades e
brigas sem porque, só pra ter. Nem é possuir esse ter; é ter desavença. Mas
assim como a terra onde se planta deve ser respeitada, respeito onde germinam
minhas ideias e as turmas com quem trabalho. Se os animais pudessem ler o que
escrevo, aprender o que ensino seriam eles meus destinatários. Estes merecem
meu suor, minhas dores, minhas lágrimas, minhas feridas.
- Desista, Benito! Quantos já te disseram “A
meu gosto meu filho se retiraria de suas aulas; não participaria de nenhuma”.
- Não! Respeito a terra onde planto, cuido
e colho meus trabalhos. E se há quem não me quer; que me aguente como os
aguento. E se há quem me quer, que me aceite como os aceito.
Os leves barulhos a minha volta levantam
minha cabeça. É meu ônibus. Guardo apressado os livros para misturar-me ao
coletivo.
Mas um dia entrarei num trem, num ônibus,
num navio ou num avião só pra ir.
¹ VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019. P.
152. Tenho dois exemplares e ambos emprestados. O que leio foi a mim temporariamente
cedido por Nena de Castro.
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog
literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e
Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do
Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua
Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos
científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e
Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola,
Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e
“Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro
Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens: fotos do autor – os fundos do camelódromo.
Manuscrito em 19 de outubro e trabalhado entre os dias 14 a 28 de
novembro de 2021.