domingo, 26 de fevereiro de 2023

SER LIVRE OU ESTAR MORTO

Manhã de domingo. Abro a porta e a janela.

Admiro o céu num belo tom cinza, antes dele tem uma mata a cobrir um morro. Na frente um amontoado de casas, mais perto de mim a pequena mata, na minha frente barrancos e escombros produzidos através das chuvas de janeiro de 2023.

 

Pelo buraco no meu escombro vejo que as chuvas não são culpadas. O desastre não veio pelas chuvas, mas através delas. Não por elas.

A natureza nunca é culpada. Não é boa nem má. Ela é só... forças agindo, sempre a modificar-se. Qualquer mal provocado por meio da natureza é a realização das pessoas de bem.

Depois de colocar um pouco de leite num café bem forte e amargo o saboreio lendo uma ou duas páginas de alguns livros.

A manhã está bonita. Escolho alguns companheiros para irem comigo à pracinha com maquinários para exercícios. Na avenida Pinheiros, próximo a rotatória que separa Limoeiro de Recanto Verde. Sento na grama e retorno a conversar com minhas companhias¹: Limite Branco, Outra Educação é Possível, Rumores da Cidade e Dracul.

Dois de meus estudantes me veem e vêm até mim. Caio e André.

Caio é magro, pele clara café com leite, cabelos pretos cacheados, olhos brilhantes, de voz baixa, mas agradável e audível.

André é também magro, os braços mais escuros pelo sol do que o resto do corpo. Seus dentes naturalmente alinhados dão ao rapaz agradáveis sorrisos.

São bonitos, cada qual com suas características.

Depois de um tempo André muda o assunto para conversa séria. A política municipal. A próxima eleição será a sua primeira vez.

_ "Ter tirado meu título de eleitor me fez começar a pensar sobre meu poder de votar naquele que representa melhor o que eu acredito".

_ O que o senhor pensa disso, professor?

Penso um pouco sobre o que disse André e respondo a Caio:

_ Existe esse poder? O que acredito é real? O eleito fará o que deve, pensando primeiro no bem de toda população? Votar em quem se crer é poder?

Óbvio que me olham sem compreender. Por que fiz mais perguntas no lugar de simples responder?

_ Saíram dos bairros Limoeiro e Recanto Verde e foram aos bairros mais importantes de Timóteo? - Fazem que sim com a cabeça. - Aqueles bairros igualmente padeceram com as chuvas. Repararam? - Outra vez respondem com o movimento da cabeça. - Mas para problemas iguais reações desiguais.

Talvez um minuto a pensarmos; Caio comenta e André completa:

_ Para o lado de lá máquinas e operários. Mas neste lado...

_ Apareceu e desapareceu a Defesa Civil. E mais nada.

_ Noam Chomsky, já falei dele na turma. Chomsky diz no livro "Quem Manda no Mundo?" que mesmo nos países que se denominam democráticos, e até acreditam nisso... - não passa de ilusão a crença "o poder emana do povo".

_ Mas o senhor é professor. Deve nos ensinar o que pensar.

Um fala, o outro assente e eu continuo o raciocínio:

_ Lancei perguntas pra você e pro Caio analisarem, pesquisarem, filosofarem. Não dei respostas, André. Porque o importante é cada qual pensar por si. Não para pensarem como eu. Não para pensarem o que mandam pensar nas religiões, nas escolas, na sociedade. Mas para vocês olharem ao redor, questionar o que lhe dizem, lerem ainda mais do que leem, discutirem com argumentos e, que Deus-Olorum-Alá atenda meu desejo, que voces ajam com cérebro, coração e coragem onde viverem. E nunca parem de repensarem e agirem pro e no coletivo porque é lá, no coletivo, que estamos todos. Querendo ou não...

Já cansado de gente, mesmo daqueles que gosto, pego meus livros e me despeço.

_ Professor, o senhor pode me emprestar o livro Limite Branco? Gostei do autor e eu termos o mesmo nome.

_ Já eu me interessei pelo Dracul. Parece ser algo de terror, de Drácula.

_ Não, não emprestarei, mas na próxima segunda-feira, sem ser amanhã, darei um exemplar de presente para vocês.

_ Legal! - Os dois dizem contentes, e eu sorrio.

Atravesso a rua e observo os jovens caminhando, falando ou talvez conversando. André e Caio ainda não perceberam, mas se querem e quando souberem... Sei o que suas famílias farão.

Os pais de Caio dirão: "coisas do demônio" e o chafurdará na igreja. O André será levado a psiquiatras ou "clínicas de recuperação".

Mais alguns anos depois poderão ser o que são; ou então vão se esconder e quando não aguentarem mais fingir hão de apodrecer-se e em seguida voltarão a atuar como os personagens obrigados a interpretar.

Cansado, retorno ao meu escombro. Revejo no celular as fotos dos amanheceres da semana que ontem terminou e me fixo em uma.

Vejo e repenso: Amo o meu cantinho. Se tem um lugar bom para ser misantropo é aqui. É bonito demais da conta.

No livro Dracul, de um parente colateral de Bram Stoker, a menina Matilda repete o que aprendera na Igreja: como e o porquê deve-se escolher manter o sofrer no lugar de morrer.

Encho a metade de um cálice de vinho para beber ao fazer o almoço. Enquanto cozinho o arroz bem condimentado chamo por watzap o meu filho na Argentina. Sem atendimento chamo a mãe do garotão. Após umas falas educadamente insossas pergunto o que realmente quero saber.

_ Ele não está aqui. Está viajando e não quer conversar comigo nem com os irmãos e principalmente com você. Un padre que conoció por un año. Solamente dos veces de seis meses.

_ Não me culpe. Você só me disse que eu era pai quatro anos atrás. E eu quis muito me aproximar.

_ El pibe quiere silencio y quedarse solo por largo rato. Estoy ansiosa. Mas ele quer apenas silêncio e solidão.

Um pouco mais de conversa amena e nos despedimos. E falo para os cachorros e gatos:

_ Espero que onde meu filho esteja seja um lugar para gostar da misantropia e não um lugar de amargura.

_ Mas você não está num lugar amargo? Escombros!

Ouço o comentário de quem me lê e respondo:

_ Não. Dos escombros vou reerguendo um novo cantinho de sossego e beleza.

A comida está pronta.

_ Com licença, pessoas. Mas agora vou comer e voltar a amada soledade. Até a próxima.

Fecho a porta e pela janela me encanto com o jardim enquanto como.


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Rubem Leite: Cronto e fotos.


¹ Livros citados e alguns participam do cronto:

ABREU, Caio Fernando de. Limite Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

ROCHA, Lucas. Rumores da Cidade. Rio de Janeiro: Globo Alt, 2022. P. 26 e 27, 34 e 35.

STOKER, Drake. Dracul: a origem de um monstro. [Trad. Marcia Blasques]. São Paulo: Planeta, 2018. P. 20.

TOLENTINO, Luana. Outra Educação é Possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula. Belo Horizonte: Mazza, 2018.


Escrito entre 23 e 26 de fevereiro de 2023.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

MORAL DA HISTÓRIA: ZEJUS NÃO É JESUS

Zejus se acerca da goiabeira:

Sai daí que vai cair.

Jesus nos Ianomâmis

É o fim da ladeira:

Sai daí se não vou cair.

Era uma vez num reino muito, muito distante. Tão distante que o tempo demora a chegar e a voltar.

Debaixo de uma goiabeira vivia uma linda sapinha que queria ser gente.

Numa bela manhã ela conheceu um sapo mexicano do Deserto de Sonora. Bufo Alvarius era assim que se chamava a paixonite de nossa linda sapinha.

A heroína de nossa história deu um beijinho no Bufo, achou interessante, deu uma lambidinha. Mas o que ela não sabia era que Bufo Alvarius era na verdade da cabeça louca dela um bruxo. E ele deu no pé porque ninguém merece uma sapa louca.

E o que aconteceu?

A linda sapinha passou a ver coisas esquisofrên... digo ver coisas esquisitas.

Primeiro ela viu Hitler, Mussolini e aprendeu muitos ensinamentos.

Em seguida viu Zejus no alto da goiabeira e gritou: "sai daí, minínu. Se não ocê vai cair".

A aparição, digo: a alucinação comovida com a preocupação da linda sapinha disse com voz alta, mas baixa, perto, mas distante, sonora, mas silenciosa; pois só acontecia na cabeça dela.

_ Se você ler sete vezes tudo que Olavo de Carvalho escreveu você se transformará em gente.

E a linda sapa louca acreditou no Zejus. Leu sete vezes os livros e adivinha o que aconteceu?

Ela se transformou numa feia menina e passou a se chamar Doidamales. Cresceu, virou pastora, ministra do desgoverno Boçalnato e disse:

_ Pastor moçambicano quis fazer o jejum de Jesus e morre de anemia e insuficiência dos órgãos digestivo. Só não é santo porque se é queimadinho veio lááá de baixo.

_ Queria eu fazer piada do que você disse, Doidamales. E também do referido pastor. Mas são tão ridículas a sua fala assim como essa morte que minha piada ficaria mais fraquinha que a saúde e sanidade de vocês dois.

_ Benito, esse também não é motivo de piada. Não? - Cráudia Diézus entra na conversa. - Só falta debochar das carpinhas da Micheque.

_ Cráudia, se puder entender o que direi ficarei agradecido. Minha piada não seria a morte em si. Nunca a perda de alguém é engraçada. Meu humor seria sobre a vaidade, a arrogância, a estupidez humana em se ver melhor ou superior aos outros. Ele quis seguir o exemplo do Profeta, do Filósofo Jesus no amor, na solidariedade, na sabedoria? Não! Ele quis mostrar-se uma espécie de super-herói. Mas o corpo não suporta tanto tempo sem água. Não há dignidade na causa de sua morte; foi apenas ridícula.

Benito suspira e continua:

_ Toda morte humana me dói. Em algumas exalo essa dor com poemas. Em outras, com humor. Pois humor é uma das mais perfeitas formas de denunciar os horrores. Mas esse pastor não há como denunciar horror. Sua morte só foi vaidosa e tola.

Como a Cráudia Diézus teceu duas loucuras, Benito da uma pausa antes de ser mordaz:

_ A Micheque Boçalnato esvaziou o laguinho, conhecido por espelho d'água, do Palácio da Alvorada para tirar as moedas e doar a uma casa de caridade dirigida pelo Pastor Capeta. E disse, com a çabiduria do Isprítu Çântu: "É normal peixe morrer quando é tirado d'água".


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Rubem Leite: texto.

Imagens tiradas do Caralivro.

Escrito entre 30 de janeiro e 19 de fevereiro de 2023.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

SONS

Sonoridades - sons e barulhos - é o que te ofereço para conversarmos.


A chuva da realidade cai no morro da pretensão e este desliza soterrando o raciocínio.

Morre-se de medo ou satisfação?

Conversando sobre o genocídio Yanomami.

Apresentamos fatos e argumentos diverdos.

O interlocutor simplesmente repete (mudando palavras) o mesmo e único "inargurmento".

É fobia de ver que errou ou prazer em ser ruim?


Sonoridades é o que te ofereço.

Trinta e dois dias no futuro, escrevo num ponto de ônibus em frente ao Depósito Lamacon (Limoeiro Timóteo) onde costumo comprar com meu genro materiais de construção. Parece propaganda, mas é só satisfação e bom atendimento. Sou professor e escritor, não agente de propaganda.

No ponto, esperava a hora de conhecer a nova escola, no bairro Macuco. A E.M. Clarindo Carlos Miranda, onde trabalharei duas manhãs 🌄 e meia. Lá verei bom atendimento dos funcionários e estudantes.

Até agora nada falei de conflito. Será que não mesmo?

As fortes chuvas - tidas como rés, mas o crime é humano - derrubaram o muro de arrimo, barranco e partes do piso e da casa onde moro. Mas não porei fotos 📷 porque não faltaram em outros crontos meus.

Disse casa onde moro, mas o certo seria toca onde hiberno.

Antes dessa madrugada de 08 de janeiro de 2023, as fortes chuvas não me soavam mal; até ninavam meus sonos. Agora as escuto, assusto e volto a dormir.

Na noite após os trinta e dois dias da queda acordei com os barulhos da chuva e de coisas pesadas caindo. Mas se eu tiver que ir, irei. Faça eu o que faça. Como a uma ex-aluna:

Adolescente foge da cidade

para não desaparecer pela

morte por um traficante.

Na cidade onde se escondeu

a morte a encontrou

num desabamento por chuva.

Em casa 🏠, o sol ainda a decidir se abre ou não os olhos. Sem esperá-lo, levanto, faço um café solitário.

Solidão é silêncio, sossego, serenidade.

Da varanda-área de serviço vejo na calçada um homem elegante, cabelos, olhos, roupas pretas e bem alto me olha.

Com a indecisão do sol, se brilha ou chove, e vendo-o úmido:

_ Entre!

_ Obrigado! Amei o convite.

_ Aaaai! O que você está fazendo?

_ Estou a chupar seu sangue. Uarrarrá.

Semidesperto sonhei que iria reencontrar a velha diretoria, onde passarei duas manhãs e meia. Mas no momento não serei "gentilmente atacado"; vou para o Macuco lecionar a outra metade das manhãs.

Mais acordado, na varanda-área de serviço o chão de cimento grosso cinza tem caído um grande filtro dos sonhos, sombrinha e panelas.

Os sonoros da madrugada foram os gatos, não a chuva à derrubar os objetos.

Enfim ver o começo do ano letivo: Enquanto espero o transporte escuto os sons do meu discreto riso ao lembrar a saída de casa, o restinho de chuva nas árvores 🌳, os bem-te-vis; e no ponto de ônibus o som que me deu esse cronto: o batuque da água na calha.

Até então tranquilo momento. Mas aí vem crescente: pedestres, ciclistas, motos, carros, caminhões...

E o que tenho para enfrentá-los ou simplesmente proteger-me? Os pássaros, o vento nas árvores, meus pensamentos e o livro:

Silêncio

Ouço-o mudo ou sinfônico.


Não há nada

Junto ao medo, o desespero;

Só há sossego depois da Histrionia.

Mudo.


Há natureza,

Os bons sons da casa

Uma boa melodia no vizinho

Frequente serenidade

Sinfonia.


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Rubem Leite: textos e fotos.

Dos manuscritos de 24/01/23 ao trabalhado em 12/02/23.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

MINHAS PENAS, MEUS PRAZERES. JÁ NÃO OS NECESSITO.


Cantava baixinho uma versão em português de Non, je ne regrette rien e alguém lhe segura o braço. Não se espanta com o inesperado. Só ouve.
_ Você pode jogar fora tudo que te dei, mas o que te fiz você não desfará.
_ Nada joguei fora. Pode pegá-los. O que é de outros deixo no quartinho de despejo. Lembra onde fica? Não sei bem onde estão, mas devem estar empoeirados. Marque o dia e minha empregada te devolverá.
_ Mas o que te fiz você não esquecerá.
_ O que me fez tá passado, empoeirado. Só não sei onde está. Se perdeu enegrecido.
_ Tãão nobre.
Dá de ombros, pede licença e se vai. O jardim está lindo a seus olhos. Pensa "não sou alegre nem triste. Só irmão das coisas fugidias"¹ e cantarola quase afinado, mas sem irritar Edith Piaf:
"Não, nada de nada. Nem o bem que me fizeram. Nem o mal, tudo isso me dá igual"

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Rubem Leite: cronto e fotos.
¹ Motivo, de Cecília Meireles.
Escrito entre 05 e 06 de fevereiro de 2023.