Rubem Leite
04 a 08 de dezembro de 2009
Ofereço à Marília Siqueira, como presente de aniversário.
Abaixo escrevo ouvindo “La Cigarra”, de Renato Teixeira.
- Bom dia! Eu sou Ruy Prado e estou querendo falar com Dr. Ferracine Ferraz.
- Bom dia, senhor! Ele não se encontra. Está viajando pelas ilhas Canárias.
- Como assim não está. Ele marcou de me receber hoje.
- Simplesmente ele não se encontra e só voltará daqui a três semanas. Sugiro então que o senhor volte dia 23.
- Mas não posso esperar tanto assim. Gastei tudo que tinha vindo para cá.
Aqui, obviamente, a moça fez uma cara nada simpática para o desprovido.
- Sinto muito.
- Mas não posso esperar tanto assim.
- Se você não se retirar agora chamarei o segurança.
Sai. E fora, o sol lhe bate na cara tirando-lhe uma lágrima e entre essa e outra lágrima, agora de fúria, volta a pé para a rodoviária. Compra a passagem. Próximo ônibus, 23 horas. Em seu bolso nem R$10,00. Senta numa praça até o estômago reclamar sua atenção. Anda pelas ruas; 13 horas. Passa por um shopping; 13:20 horas. Uma rua só de lojinhas; 13:50 horas. Outra praça; 14 horas. 14:15 horas. 14:30 horas. 14:40 horas. 15 horas. 15:10 horas. ... 16 horas e não agüentando, come uma cochinha a seco. 17:10 horas. 17:30 horas. 17:53 horas. ... 22 horas compra uma cerveja, bebe e volta para a rodoviária. Outra cerveja. Embarca. Ao lado, separados pelo corredor, uma mulher de lenço na cabeça com um bebê. De suas coisas um cheiro de salgados e frauda suja. De sua poltrona à janela aspira que ninguém tenha comprado a do corredor para ele poder esquecer por um tempinho.
Abaixo escrevo ouvindo o poema Quadrilha, de Drummond,
e Samba em Prelúdio, de Baden Powell e Vinícius de Moraes.
- Oi! Com licença, por favor.
Um homem alto, negro retinto, diz num misto de voz grave e suave. Nosso amigo pensa “já vai meu sono”, mas diz:
- Boa noite! Sente-se, por favor.
- Sou Chico Guerra. E você?
- Ah! Sou Ruy.
- Bom.
Depois de um curto silêncio agradável, Chico continua:
- Eu faço jiu-jitsu e ontem venci um adversário, agora que o campeonato acabou volto para casa. E você, faz o quê?
- Engenharia. Sou engenheiro. Estava na capital para um garantido emprego e agora que a entrevista acabou volto para casa.
- Ah!?
Depois do monólogo do Chico e umas choradinhas do bebê finalmente nosso herói consegue cochilar até que o ônibus para num lugar desagradavelmente iluminado.
- Que aconteceu?
- Para mim, fim da linha. Para você, Ruy, é só uma pausinha de minutos para depois a viagem continuar.
Descem ambos. Sem possibilidade de dormir e esquecer continuam a conversa.
- Onde estamos?
- Numa cidade industrial. Siderúrgica.
- É mesmo? Poxa. Não consegui emprego na capital, quem sabe não será aqui que poderei me estabelecer.
- É mesmo. Você é engenheiro. Mas conhece alguém que pode te indicar?
- Não!
- Huuuum! Então não será tão fácil assim. A empresa já tem sua estrutura, né?
- Preciso tanto de um emprego...
- Precisa muito, fará qualquer serviço que queiram?
Pensa e responde:
- Sim! Sou engenheiro, mas até conseguir o que quero, não me importo em fazer o que for necessário.
- Posso te apresentar para um sujeito. Foi ele quem conseguiu que a indústria me patrocinasse.
- Legal!
- Bem! Te levo para dormir em minha casa e amanhã te levarei até ele. Tenho um quartinho nos fundos, se você não se importar em se ajeitar num quartinho de despejo...
- Nessa altura do campeonato um quartinho de despejo é um apartamento.
Ambos riem enquanto começam a andar e Chico explica a natureza do trabalho.
Abaixo escrevo ouvindo Eu Sei Que Vou Te Amar (em castelhano) e Elis Regina.
Par de pés a cinco centímetros de outro par de pés. Mãos nas cinturas. Lábios rígidos quase encontrados. Olhares encontrados. A fúria ultrapassando suas alturas, esticando em muito seus corpos. Foi assim a aproximação de Chico e Ruy no jogo, em times diferentes. Depois da noite que se conheceram e dos três para quatro meses seguintes os dois se afastaram com raiva. Ruy pensando “Foi para isso que vim aqui? Sou engenheiro. Não um”. E Chico pensando “Foi para isso que veio aqui? Dei abrigo. Apresentei um que lhe deu emprego e agora é engenheiro”.
E quando o empregador ou outro pergunta para Ruy se não sente falta do amigo a resposta é sempre “Não! Não preciso de gente daquele tipo. Eu me mantenho”. Mas nunca lhe perguntaram isso enquanto dormia. E a resposta seria “Sim. Sim. Sim”. Mas nunca perguntaram. E os dois não se falaram.
Foi assim: Quando se conheceram, Chico Guerra levou o amigo para um homem que poderia contratá-lo mediante algumas noites de sexo. Mas não foi fácil, apesar da beleza de Ruy, o “benfeitor” não era tolo e um emprego importante como engenheiro é um preço muito alto para uma noite. Ruy tinha que ser bom e ficar com ele muitas noites. No início o rapaz se sentiu nervoso, mas descobriu que era prazeroso. E uma noite dormiu com Chico. Com o “benfeitor” era um trabalho. Mas se chocou quando descobriu que com Chico era amor. Era amor. E quis ser só do Chico e que Chico fosse só dele. Não foi aceito. A dor matou o amor. Mas eu me pergunto se era amor ou paixão o sentimento de Ruy. Mas o caso é que o tempo passa. Que emoções e lembranças, assim dizem, não sei, sedimentam. E Ruy conheceu uma jovem. Amou a jovem. Filha de quem o empregou. Casaram contra a vontade do, agora, ex-benfeitor. E o tempo passa. Emoções mudam. Carinho aumenta. Confiança evolui. E o tempo passa muito.
Abaixo escrevo ouvindo Enrique Granados tocando Villanesca.
E o tempo passa. E o tempo passa muito.
- É preciso coragem, meu véio.
Ruy encostado à parede nada diz, apenas olha a esposa levantando a parede dentro do quarto do casal.
- Não temos mais dinheiro e como o seguro cobre desaparecimentos...
Já estando quase tudo coberto, faltando o quê, um metro para fechar toda a parede?
- Eu te amo, véio, você sabe. Foram mais de cinqüenta anos de felicidade, mas eu preciso fazer isso. Esse dinheiro é fundamental.
A parede tem o quê? Um metro de largura pelos velhos conhecidos quatro de comprimento?
- Ninguém que não conhece nosso quarto vai perceber a diminuição. E quem o conhecia? Nunca trouxemos estranhos para cá e os empregados foram embora, já que não podemos mais pagá-los.
Oprimido e encostado à parede Ruy olha com medo para a esposa.
- É preciso coragem, meu amor. Você tem que entender. É preciso fazer isso. Depois bastará pintar... colocar o guarda roupa aqui. Ninguém vai perceber o emparedamento. E continuaremos um fazendo companhia para o outro. Você aí e eu aqui.
Um suspiro é a resposta de Ruy. Ele quer pedir à esposa amada que não faça isso. Ele a ama. Quer pergunta “Você não me ama? O dinheiro vale mais que eu? Que nós?”. Mas apenas suspira.
- Sem dinheiro não dá para vivermos. Então, adeus, meu véio. Um tem que desaparecer.
Ruy manda um beijo e Adélia cimenta os últimos tijolos. Ele suspira. Tem um resto de tempo para pensar na vida. Mas só lembra com saudade de Chico Guerra e no triste amor pela Adélia. E sai para comprar a tinta.