Leitura do cronto pelo autor no canal aRTISTA aRTEIRO:
Noite. Nem lua
nem estrelas. Só nuvens escuras na noite; coisas que não se sentem sem ver.
Desde três dias tem andando sem pausa. Aguentou os pés cansados. Depois não os
sentiu mais. Uma nova dor surge. Úmida. Vermelha.
Diante de um
hotel imundo – Califórnia Hotel – entra e pede um quarto. Olha pra cama, mas se
senta à mesa e escreve em papel que tinha esquecido no bolso. Na cabeça, sua
voz. Rouca e cansada. Escreve:
Olá! Vou tentar contar minha história.
Visito um meu irmão; não me recebe de braços abertos.
Buzina de
carros na madrugada ao meio mal chegam aos seus ouvidos.
A filha de meu irmão diz para a família que era meu
aniversário. Sabia, pois tinha visto no... Não entendi onde.
Meu irmão me diz: “Não deveria visitar os outros no
dia do aniversário. Não deveria me visitar em seu aniversário. Não comprei nada
para você.”.
A resposta, claro, foi: “Não vim para te ver pensando
em presentes. Vim para te ver, só isso.”.
“Tenho que sair”, disse me convidando a ir embora.
“Te dou carona até o Centro”.
O gemido da
janela ao vento corta a ele e a noite.
No carro havia um grande embrulho. Presente para a
irmã de minha cunhada. Não se lembra de mim, mas não se esquece da cunhada. Não
deixo de pensar. Mas não era isso que queria; o que me surpreende – e não
deveria – são as falas e o gesto.
Chego a minha casa e minha mãe se prepara para
viajar. “Cuide da sua avó. Não tardo a voltar.” Estou sem dinheiro e tenho que
trabalhar, mas cuido da casa e da avó.
Sem dinheiro para ir ao serviço terei que caminhar; longe,
em outra cidade. Anoitece, durmo, levanto, preparo o café. Saio cedo para
chegar ao trabalho no início da tarde.
A janela geme
com as buzinas e com minha voz rouca em minha cabeça.
Sem dinheiro e sem poder faltar à aula vou andando.
Vou andando, andando, andando, andando. Chego aos limites urbanos da cidade. Depois
um espaço verde, sem casas. Os limites urbanos da outra cidade. Vou andando,
andando, andando, andando, andando, andando. Duas horas da tarde percebo que
ainda estou longe.
Minha voz rouca
sai da cabeça e geme com as janelas. Ninguém nos ouve. Pela janela à noite sem
luz.
Minha infância na escola foi de risos dos colegas. Não
volto para minha cidade. Continuo a andar. Andarandarandarandarandarandarandarandarandarandarandarandar.
Três dias de sol forte. Três noites sem luz.
Cansando. Com fome. Sem dinheiro. Minhas pernas doem.
A alguém peço um rumo. A alguma pessoa numa igreja. O
sujeito me indica o caminho.
Sigo.
Não sei se não compreendi, se ele se enganou ou se me
iludiu.
Fui parar em uma chácara.
Entrei.
Quis voltar, mas bodes e cabras me impedem o retorno.
Grandes cães aparecem à frente e com eles um
estrangeiro surdo e de mau português. “O que está fazendo aqui?”, pergunta-me
com uma arma.
- Eu me perdi.
- Que está fazendo aqui?
- Procurando emprego. Preciso de dinheiro. Busco uma
entrevista.
- Entrevista? É jornalista?
- Não! Entrevista de emprego... Sou professor.
Atira-me. Mas estou aqui.
É noite sem luz, buzinas na rua, gemido da janela,
voz rouca, cabeça ruidosa. Estudante agredido. Professor agredido. Uma dor
vermelha e úmida na cabeça no Hotel Califórnia.
Ofereço como presente aos aniversariantes:
Alexandre Farah, Marileuza Lopes, Celma Anacleto, Iuri Cupertino,
Isaac Andrade, Andriza G. Souza N., Ronalto S. Galvão, Rodrigo C. Andrade, Raul
F.M. Leite, Monica Cuba e Graça Costa.
Recomendo a leitura de
“Manifesto em Apoio ao Presidente Lula”, de Josué da Silva
Brito:
“O Excedente Ilusório ou ‘Que Tiro Foi Esse, Viado?’”, de
Sued:
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve e
publica neste seu blog literário aRTISTA aRTEIRO todo domingo e colabora no Ad
Substantiam às quintas-feiras. É
professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. E em breve também
professor de História. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em
“Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”,
“Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor
dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”,
“Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua
Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do
Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões,
Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagem de Jeferson Adriano.
Escrito na manhã de 23 de outubro de 2017; partindo de um
sonho que me acordou às três e meia da manhã. Trabalhado entre os dias 25 a 28
de janeiro de 2018.