domingo, 29 de maio de 2022

UM AO LADO DOS DEMAIS

 

  

Solo soy una mariposa en el capullo pero solo ven el capullo.

O vento toca árvores e sua melodia é como o beira-mar ou a chuva. Nesse embalo leio duas preces e de cada uma fica uma oração que me poetiza.

 

“Deus abrange o meu ser”*

Olho pro Sol, pra Lua, Flores

Sinto-me a mim tecer

Vejo gente, tantos indecentes

E tantos socioindigentes

Chego a esmorecer

Todavia ainda há livros

 

“Tenho alma destemida”*

Mesmo sendo gente

Minh’alma não é empedernida

Apesar dos seres humanos

Difícil manter cabeça erguida

Força tenho nos livros e bichos

 

Tento sorrir; compartir meus pensamentos. Ainda não sei ser silêncio onde não querem diálogo. Conversam para ouvirresponder, não para compreender.

- E tem um livro muito interessante e importante para ler: a Bíblia. Experimente; você não vai se arrepender. É um manual de vida.

- Li a Bíblia por vinte anos; algo em torno de sete estudos: três anos para completar cada estudo...

- É ler ao longo da vida, tentar implementar em nossas vidas, refletir a Bíblia. E, acima de tudo, ler, orar e esperar a resposta de Deus todos os dias. Volto a repetir: é nosso manual de vida.

Não respondo. Melhor conversar com os bichos e livros, mas penso: A diferença entre religião e ciência: Esta reconhece quando erra e por isso aprende. Enquanto a religião apenas aprende a dar desculpas melhores. Ciência não é crença. Ciência é o conhecimento adquirido através de pesquisa metodológica. Crença não vem de pesquisa nem de método.

Melhor calar.

Não sei se é uma fase ou se será permanente; talvez só um período, não sei. Mas estou fazendo as coisas; o que posso, o que aguento e quase o que quero. Faço para o nós.

Se me agradecem ou retribuem fico próximo a contente; não supervaloro. Se não me agradecem ou, digamos, me incomodam fico próximo a triste; não supervaloro.

Aprendi tempos atrás que os que nos elogiam hoje quase sempre, quase todos são os que nos abandonam ou jogam pedras.

Solo soy un colibrí apagando fuego. Una mariposa en el capullo.

 

 

Rubem leite.

* Sutra em Trinta Capítulos para Leitura Diário; Seicho-No-Ie.

Imagem do autor.

Escrito entre 16 e 29 de maio de 2022.

domingo, 22 de maio de 2022

O PROFESSOR DO BANHEIRO E O GAROTO DO BEBEDOURO

 

1978

Em agosto, faltando trinta dias para eu completar dez anos, morri!

Foi assim:

Garoto magro, educado e, segundo meus coleguinhas, com jeito de menininha. O acosso era diário. Sim, vou dizer acosso e não bulling.

Mas antes de falar de mim falarei do professor Frederico. Um velho magro de bengala e muito bravo. Eu e uns poucos gostava dele, mas outros o odiavam.

O bairro era violento e tanto eu quanto o professor a gente morava perto da escola.

A manhã estava ensolarada, mas fazia frio. Os quatro alunos que mais me provocavam saíram da sala sem serem vistos pelo professor a quem desrespeitavam.

- Professor! Breno, Bryan, Kauã e Kaike foram lá pra fora.

Com um suspiro de desa... desa... desalento. Isso, desalento. O professor pegou a bengala e foi ao banheiro dos meninos para brigar com eles. Mas o que aconteceu foi diferente. Enquanto o professor brigava os quatro começaram a empurrar o professor pra lá e pra cá fazendo o coração do professor querer parar e quando perdeu o equilíbrio bateu a cabeça na pia.

Os quatro ficaram com medo e saíram disfarçadamente do banheiro. Ao ver os colegas com ar assustado e sem o professor fui à diretora falar que o professor tinha ido ao banheiro brigar com os meus colegas e ainda não voltou apesar deles já estarem na sala.

Acharam o professor caído perto da pia com a bengala em sua mão.

 

Dois meses depois, quando os colegas voltaram da suspensão. Sim! Eles foram apenas suspensos e não expulsos. Era só a morte de um velho professor que escorregou no banheiro e a vida de quatro meninos; filhos de pais perigosos.

O bebedouro perto das salas de aula estava com defeito outra vez e fui ao bebedouro da quadra de esportes. E lá estavam Kaike, Kauã, Bryan e Breno.

Foram só cinco minutos.

Bryan me segurou, Kauã me deu uns tapas bem doídos, Kaike ria falando Julinho bichinha, Julinho viadinho, Julinha mulherzinha. E Breno queria fazer um experimento. O que aconteceria se alguém bebesse Diabo Verde? Com a dor quis gritar, mas Kaike tentou tampar a minha boca, mas sua mão queimou e quando me soltou eu já não podia gritar. Fiquei caído espumando e confusionando. 


Os quatro pularam o muro porque não podiam voltar para sala com a mão um pouco corroída de Kaike.

Quem me encontrou primeiro foi o professor Frederico. Me ajudou a levantar e fomos conversar.

No final das aulas apareceu uma funcionária para catar o lixo e aos berros chamou a atenção da escola.

Mas não aconteceu nada. Era, de um lado, só a morte de uma mariquinha preta e pobre e do outro lado a vida de quatro meninos brancos; filhos de pais perigosos.

 

Eu e professor decidimos guardar a escola.

 

2018 a 2022 e nos tempos que hão de vir.

Alan é um mau aluno que maltrata os mais fracos e no dia que foi ao banheiro sem permissão... – risada assustadora do Professor do Banheiro que estava ao meu lado – Ele escutou três vezes o toc-toc de uma bengala, mas não viu nada. Porém, quando terminou... uma bengala cortou o ar arrancando-lhe a cabeça.

- Mas como uma bengala pode arrancar uma cabeça?

- É uma bengala assombrada...

Depois o Professor do Banheiro pegou a cabeça pelos cabelos e com o gancho da bengala prendeu o corpo pelo sovaco. E os enfiou dentro da privada, deu a descarga enquanto socava com a bengala até desaparecer no redemoinho que leva as porcarias pro esgoto.

- E como uma privada pode levar inteiros uma cabeça e um corpo?

- O Professor do Banheiro é assombração. Pode muitas coisas...

Uma semana depois acharam o que restava do Alan num córrego onde desaguava o esgoto da cidade.

Nikolly também fugiu da sala e foi ao banheiro fumar. O Professor do Banheiro bateu com a bengala na porta do banheiro: toc-toc-toc; parou, bateu outra vez: toc-toc-toc; parou, bateu pela terceira e última vez: toc-toc-toc. Assim que ela saiu, ainda com um pé no corredor e o outro no banheiro, a bengala cortou o ar arrancando-lhe a cabeça. Pegou-a pelos cabelos e com o gancho da bengala a arrastou invisível até o banheiro dos garotos. Enfiou-a na privada e deu a descarga socando tudo para atravessar o encanamento e desaguar no esgoto municipal onde antes encontram Alan.

E eu?

Todos os acossadores, quando estão a sós bebendo água, vou empurrando pelo ralo à medida que vão se dissolvendo com o diabo verde que me tornei.

E desde então todos maus alunos que saem sem permissão... – Frederico, o Professor do Banheiro, e eu, o Garoto do Bebedouro, protegemos a escola.

 

 

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Rubem Leite

Imagem retirada da internete.

Escrito entre 18 e 20 de maio de 2022.

domingo, 15 de maio de 2022

FORA DO CAMPO DE FLORES AMARELAS

Van Gogh e seu campo de girassóis

Eu e meu morro de flores amarelas

Não vejo coisas invisíveis

Vejo a realidade que corrói

Com livros combato as esparrelas. 

O quanto e quanto já foi dito "amanhece, entardece e anoitece; janeiro, fevereiro ... novembro e dezembro; tempo de chuva com calor e tempo de seca com frio; tudo que é vivo morre".

Tudo repetindo.

Nada, surgimento, vida, morte, ressurgimento, vida, morte, ressurreição...

O rio corre entre a terra até chegar a outro rio ou ao mar. A terra se move entre os oceanos.

- E o que tem isso, meu Deus?!?

- Tem que numa mesa cinco discutem se o correto é dizer negro, preto ou moreninho. E todos os cinco são bem branquinhos. É outra vez o eurobrasileiro querendo definir a sorte do afrobrasileiro.

Silêncio para olhar nos olhos.

- Tem que outra vida é corrompida pelo desafeto familiar, pelo desinteresse político-social até ser interrompida pelo traficante ou policial.

Olhos nos olhos silenciosos.

- Tem que ao dizer "Umbanda, Candomblé, Macumba, orixás" ainda se ouve "credo; tá queimado, sangue de Jesus tem poder... são do diabo, são demônios". E quando perguntados se já assistiram alguma cerimônia ou leram suas doutrinas negam. Alguns afirmam que sim, conhecem ou viram. E quando se questiona como são as cerimônias e o que dizem suas doutrinas se calam ou respondem mentiras. Tal qual boçalnarianos "e o Lula, hem?!?".

- Ééé. A Terra não é plana, mas o mundo é chato.

- Enquanto gira o planeta e circula o cotidiano a gente lê, bebe, escreve, dorme, trepa, trabalha, canta, dança, encena, pinta.

- Desses, muitos tecnisam e vegetam.

- E desses, poucos artistam em protestos:

Uma boca morta abre centímetro a centímetro.

É o globalismo capitalista investindo.

Diverte-se o pobre com sua tranqueira nova.

Ignorante ignorado caminha centímetro a centímetro para sua cova.


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Rubem Leite

Foto do autor: vista da janela da cozinha.

Escrito entre 12 e 15 de maio de 2022.

domingo, 8 de maio de 2022

OBSERVÂNCIAS

 "Última flor do lácio, inculta e bela [...] Amo-te, ó rude e doloroso idioma [...] Em que da voz materna ouvi: Meu filho".

(Língua Portuguesa, de Olavo Bilac).


Aos onze anos, na antevéspera do Dia das Mães, uma das estudantes chora. Não tem para quem escrever um cartão.

Sem saber o que fazer, em separado, improvisa uma conversa:

- Você acredita que a pessoa continua viva após a morte do corpo? Como alma...

- Não.

- Penso parecido. Tem hora que acredito, mas duvido em outra. Então decidi esperar o dia de minha morte para saber... Mas enquanto isso, no Dia das Mães e no Dia dos Pais falo para eles, lá no meu quarto o que gostaria de dizer-lhes. O pior que pode acontecer é nada acontecer. Mas se tiverem "vivos" falei com eles.

- O que devo fazer?

- Que tal fazer um lindo cartão; escrever tudo o que sente e domingo, assim que acordar, ler o cartão para sua mãe!?!

E o cartão foi feito com esmero.

Em casa no sábado um amigo diz:

- Tive vontade de ir na casa de minha mãe. Mas me machucou muito... É. Ela já me ajudou muito, mas também me agrediu demais. E como ela não me aceita como sou... Não vou não.

- Também não irei até minha mãe...

- Claro. Ela já morreu.

E riram. O professor com tristeza e o amigo parecendo refletir.

- Na próxima semana terei que ir perto da casa dela então passarei lá.

Domingo, na casa em frente.

- Vai tomar no cu, peste. Faz tudo errado.

Grita a mãe pra filha de quatro anos.





Em sua varanda o professor fica de cócoras, toma café com leite e observa seu jardim. Junto-me a ele e admiramos a folhagem, as flores, as aranhas em suas teias, as borboletas e beija-flores.

É no silêncio que a gente ouve. É no parar que pensamos.

Olhamos a outrora flor branca caída no chão; avançou seu processo de arrosear-se. Isso em seu de fenecer antecipado. Quem sabe se seu filosófico significado um dia, imóvel e calado, talvez possamos ver.


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Rubem Leite.

Fotos do autor.


Vivido e pensado nos dias 05 a 07 de maio de 2022 e trabalhado na manhã do dia seguinte.