domingo, 23 de junho de 2019

MEU BRASIL BRASILEIRO, MEU MULATO PRISIONEIRO



ADVERTÊNCIA:
Doçura de mel aqui pouco, muito pouco verá. O comum será boldo e camomila.
Esta história não tem tempo nem espaço definido. Ou melhor, seus personagens estão livres ou do tempo ou do espaço. E cabe a quem lê definir o onde, o quando e quem são as pessoas aqui descritas.
Os poucos cujos nomes aparecem são reais e merecem respeito; por isso não os omito. Os demais ou são inventados ou indignos de respeito.



“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado”.
(ROSA, 1968. P. 18)

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.

É hora de dá um basta nessa tristeza  /  E esquecer o passado triste que ficou  /  Já é hora de encontrar Jesus Cristo, a solução.  /  Deus conhece os meus problemas e quer me ajudar.
Assim cantando passa pela rua Chico Xavier, do bairro Limoeiro e pouco depois da Casa da Esperança, um homem magro, mas de músculos definidos, pele marrom claro, rosto bonito, cabelos pretos e crespos, a segurar forte, rente ao peito, uma mochila preta, faz sinal para o motorista parar.
Ao olhar para o homem, o motorista pensa em continuar, mas a falta avassaladora de dinheiro o faz mudar de ideia.
- Para onde você vai?
- Pra... Pra... Pra qualquer lugar.
- Mas...
- Vá pro Amaro Lanari.
- Certo. Para qual endereço?
- Ah... Vá... Vá pra Igreja Católica.
- A São José Operário?
- Tem outra?
Pela rispidez do passageiro o motorista se cala. Calou-se, mas observou que por todo o percurso o mulato, pela janela, olhava nervoso para trás e para os lados. E isso junto com a pessoa o incomodou.
- O senhor pode ir mais rápido?
- Certo. Vou por no limite máximo.
O motorista tenta puxar conversa, mas o passageiro responde monossilabicamente.
- Chegamos! São R$45,4...
Mal o motorista começara a falar quando o passageiro abriu a porta e saiu correndo.
- Hei! Hei!
O motorista vence o espanto e abre a porta enquanto grita: “Volta aqui, preto safado.” E sai atrás. Mas o passageiro é mais jovem e o motorista é mais gordinho.
Xingando, volta para o carro. Ninguém na rua faz nada. Dentro do carro bate as mãos no volante tentando reprimir as lágrimas. Um engenheiro com mestrado, mas sem nenhum capital para abrir um escritório e nenhuma empresa contratando nesses dias de desgoverno presidencial piorado pelo desgoverno estadual. Da rua ninguém olha por ele. Limpa os olhos com as mãos e pelo retrovisor ver a mochila esquecida pelo passageiro.
Pega a mochila e encontra dinheiro. Muito mais da metade da mochila repleta de notas de cem. As lágrimas convertidas em risos, ele canta:
Está surgindo aqui um novo vencedor  / Sou alguém do coração de Deus  / Um novo nome ouvirá sobre essa terra  /  Quem sabe este nome seja o meu  /  Esse alguém que o Senhor vai levantar  /  Talvez seja o menor que está aqui  /  De repente ele seja o último a sentar à mesa como fez Davi. Sou alguém do coração de Deus.
Entra em casa chamando pela mulher. Diz que achou muito dinheiro e vão para a sala. Ele em pulinhos e ela espantada. Lá abre a mochila e conta tudo que aconteceu. Não se esquece de falar das músicas que lhe serviram de oração...
A mulher agarra a mochila e sorri para o marido. Rindo, ambos vão para o quarto comemorar. A gargalhar jogam as notas para cima para chovê-las sobre a cama. Rindo moderadamente jogam de novo o dinheiro para cima para chover sobre eles. Sorrindo se olham, dizem o quanto se amam, beijam-se e o resto você já sabe.
A noite, no Intertv dos Vales, ouvem a Tia Lúcia, a fundadora do Núcleo Assistencial Eclético Maria da Cruz ou simplesmente Casa da Esperança.
- A senhora sabe quem roubou?
- Não, não sei... Ó, meu Deus! – Um soluço a faz parar. Mas firma-se outra vez e continua: A gente recebeu de doação uma soma elevada para a reforma que tanto estamos precisando e... – Ela pensa nos problemas pessoais que não são poucos e nos problemas do NAEMC que são muitos. Mas resistente como sempre, com os olhos vermelhos, volta a falar firme e forte. – Por favor, quem pegou esse dinheiro, devolva. Devolva, por favor. É só deixar aqui que não faremos perguntas e te agradeceremos.
Marido e mulher se olham. Percebem que o dinheiro deles é, na verdade, da Casa da Esperança. E agora?
Enquanto eles pensam...

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.

- Olha o balão, olha o balããão.
Para um carro valendo mais de duzentos mil. O dono veste um terno cinza; com jeito de ser muito caro. A carona abre sua janela e conversa com a sexagenária ao seu lado.
- Quanto é?
- Dez reais.
- Só tenho R$25,00 – diz a passageira.
- A gente te dá vinte e você nos dá três balões. – Intervém o motorista.
- Não posso. Preciso desse dinheiro.
- Porra. Você vai ficar regulando um balãozinho?
- Senhor. Não estou regulando. Estou trabalhando.
- Dá logo esse balão que tamos indo pra Marcha...
- Não posso senhor.
O motorista fala baixinho para a passageira: “Pega logos os três e fecha a janela”. A carona sorri e obedece.
- Nossa! Como estão pesados esses balões... Desisto.
Abre a janela e os soltam. Nem veem, assim eles juram, que arrastaram a sexagenária por cem metros no asfalto e cantam quase gritando enquanto riem:
Nós vamos profetizar a vida de Deus uns pelos outros!  /  Quantos podem profetizar nessa noite  /  Levante a mão do seu irmão, e com toda força declare sobre ele a vida  /  Vida, eu profetizo sobre ti a vida  /  Receba sobre ti a vida  /  Vida de Deus!
Um carro a valer mais de duzentos mil reais. Um balão a valer menos de dez reais. Uma pessoa nada vale. É, para o céu nem balão está subindo...

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.

Marido e mulher discutem o dinheiro encontrado.
- Mas não era do bandidinho...
- Foi você quem roubou?
- Não, claro que não... Foi o mulatinho.
- Então pronto. Você não cometeu o crime.
- Mas e a Casa Esperança?
E assim discutem quase todo o resto da noite.

Marcha, Marcha, Marcha pra Jesus.

Dois empresários caminham pela rua. Um traja terno cinza e outro, terno verde musgo. Ambos elegantes e cantando:
... Irmãos,  /  Sua alegria é minha alegria  /  Suas lágrimas, choro também  /  Não importa o que venha na vida  /  Irmãos  /  Somos irmãos.
- Nós que somos homens de bem temos que defender nossas famílias. – Muda de assunto – Quanto você pagou pelo seu carro?
A poucos metros à frente há um mendigo deitado na calçada. Fora do cobertor que o enrola só seus cabelos crespos a envolver um magro rosto marrom-cinza.
- Mais de duzentos mil.
- E aquela menina que veio com você, quem é?
- É amiga... – E ri e o amigo o acompanha. – Jesus tem que voltar logo pra acabar com as bichas. Domingo vai ter a parada do orgulho LGBT e sei lá mais o quê.
Ao lado dos empresários está o mendigo adormecido. Ao passar por ele, o empresário de terno verde o chuta, batendo na cabeça com a sola do sapato. Surpreso, o de terno cinza olha para trás e ri enquanto os dois se afastam do aturdido mendigo.

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.

Após horas discutindo e de uma soneca, o casal de sorte continua de onde pararam a conversa.
- Você é engenheiro mais do que capacitado.
- Sim, eu sei. E o que tem isso?
- A gente ficará com o dinheiro e...
- E o ladrão?
- Por acaso ele vai chamar a polícia? – Diz rindo. – A gente fica com o dinheiro e...
- E a Casa da Esperança?
- Calma que eu chego lá, amor. A gente fica com o dinheiro, você monta o seu escritório e vá até a Tia Lúcia...

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
Três dias antes da Marcha do Orgulho LGBTQI+ certo presidente, que é um boçal nato, participa da Marcha pra Jesus.
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.

- Amor, a gente fica com o dinheiro, você monta o seu escritório e vá até a Tia Lúcia e se oferece para fazer a reforma de graça.
- Isso demanda tempo. Não é só chegar e levantar parede. Tem que fazer a planta e depois comprar os materiais, contratar os funcionários e aí vai todo o dinheiro.
- Amor, enquanto monta o escritório faça a planta e diz que é sua doação. E será mesmo; não foi você quem roubou; foi o mulatinho. Espera alguns meses para a empresa começar a gerar renda; aí você compra um pouco de material e doa pro NAEMC. Nesse meio tempo você já fez nome entre os outros empresários e convence a eles doarem o resto do material e a contratarem os pedreiros.

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
Aí, certo presidente, que um boçal nato, diz na Marcha pra Jesus:
- Se não tiver uma boa deform... Digo, uma boa reforma política; e para ser “o bem de todos e felicidade geral ‘danação’, estou pronto ‘pra danar’! Irmãos, canclamam, concromom, cancro... Ah! Digam ao povo que fico” mais um mandato. E vamos mostrar para os idiotas úteis que sabemos tabuada. Quatro mais quatro são... são... – Pergunta baixinho para o casal Estêvam e Sônia Hernandes, bispo e bispa da Igreja Renascer em Cristo: “quatro mais quatro é quanto mesmo?” ao receber a resposta continua: Estou aqui para ficar oito ânus. Estou pronto pra duas gestações, pois Deus me deu a Presidência para mudar o destino desse abacaxi maravilhoso chamado Brasil. Todos nós compartilhamos dessa irresponsabilidade. Deus acima de tudo, Brasil acima de todos.
O dito presidente para e olha para o povo. Parece estar abarcando a todos com o olhar, mas na verdade está tentando pensar, decidir o que dizer. Enquanto nada surge em sua cabeça ele faz o gesto que o define.

- O Brasil precisa de um povo que tenha fé e de uma classe política que tenha fé, pois será juntando nossas fezes que vamos corrigir os seríssimos problemas de ética, moral e economia. E a reforma da previdência será o revertério intestinal que colocará o país no local de destaque que merece. Primeiro Estados Unidos e depois Brasil. Não, não. É a emoção, gente. Primeiro é “Iu Éssi Ei”, depois Deus. Desculpa, gente. É a emoção que me deixa sem noção. Primeiro Deus e depois a família respeitada e tradicional acima de tudo! Meu filho Carlucho é a prova disso.

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.

- Olha lá um preto correndo. – Diz um policial gordo para outro, que é mulato bem claro. – Preto parado é suspeito, correndo é ladrão e voando é urubu.
- Negro só tem gente os dentes. – Fala para o colega e grita:
- Parado aí, ô marginal!

É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.

Em um lugar frio, pavoroso há meia dúzia de pessoas. Dois mulatos amarrados. Machucados; muito. Um era o dono da mochila. O outro era alguém que passava no lugar errado, na hora errada.
Mulheres um dia terão hora e lugar onde poderão passar livremente? E negros ou mulatos?

Não, não é marcha pra Jesus.

- Oi! Tudo bem com você?
- Ainda estou respirando...
- Uai! Por quê? Está doente?
Arrependido de ter incomodado:
- Rerrê. Brincadeira, boba. É só terrorismo. É que sonhei essa noite que cometi um crime hediondo. Planejado até nos mínimos detalhes. E depois traí meus cúmplices e fique com a pilhagem só pra mim. Você nem imagina a preciosidade do produto roubado.
- Não imagino mesmo.
- Mel. Rerrê. Toneladas de galões de mel. Viu como sou um criminoso sem compaixão?
- Poxa, amo mel.
- E precisou de dezenas de caminhões para carregar o mel. Viu como sou um criminoso sem compaixão?
- Que nada. Você é um Ursinho Poo.
- Ursinho Poo do mal.
- Rerrê.
- Estou vendendo a cem dólares a colher de chá.
- Meu amigo, você é cruel. A humanidade precisa ter acesso a essa maravilha.
- Concordo que precisa. Mas como bom capetalista... Cem dólares a colher de chá.
- Pense bem! Seja um pouco socialista agora.
- Aliás, vou mudar para colher de café que é menor.
- Kkkkk. Tá aprendendo rapidinho...

Há maus e maus...


Ofereço como presente aos aniversariantes:
Feliciana Saldanha, Vilma Zeferino e Daniel Cristiano.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: veredas. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1968.

As músicas gospel que aparecem neste cronto são, na ordem que aparecem:
PAULO FRANCISCO. Como Está Teu Coração. Disponível https://www.letras.mus.br/rose-nascimento/1305281/ . Acesso 21 Jun 2019.
SILVA, Agaílton. Um Novo Vencedor. Disponível https://www.youtube.com/watch?v=yKykMHwsRHI . Acesso 21 Jun 2019.
MINISTÉRIO IPIRANGA. Ressuscita Vale dos Ossos Secos. Disponível https://www.youtube.com/watch?v=Z20KeIWATTo . Acesso 23 Jun 2019.
VALADÃO, Ana Paula. Irmãos. Disponível https://www.letras.mus.br/ana-paula-valadao/1495796/ . Acesso 23 Jun 2019.

Matérias onde o autor se embasa para alguns trechos do cronto:
BASILIO, Ana Luiza. Na Marcha pra Jesus, Bolsonaro admite tentar reeleição em 2022. Disponível https://www.cartacapital.com.br/politica/na-marcha-para-jesus-bolsonaro-admite-tentar-reeleicao-em-2022/ . Acesso 23 Jun 2019.
CARDIM, Nathália. Após depor, mulher arrastada por carro desabafa: “só quero esquecer”. Disponível https://www.metropoles.com/distrito-federal/apos-depor-idosa-que-foi-arrastada-por-carro-diz-so-quero-esquecer . Acesso 21 de junho de 2019.
EM. “Negro parado é suspeito, correndo é ladrão, voando é urubu”, diz alternativa em prova de concurso. Disponível https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2018/01/18/interna_nacional,931958/u201cnegro-parado-e-suspeito-correndo-e-ladrao-voando-e-urubu-u201d.shtml . Acesso 23 Jun 2019.
NOGUEIRA, Kiko. Na Marcha pra Jesus, Bolsonaro discursa sobre “ética e moral” ao lado de casal preso nos USA com dinheiro escondido na Bíblia. Disponível https://www.diariodocentrodomundo.com.br/na-marcha-para-jesus-bolsonaro-discursa-sobre-etica-e-moral-ao-lado-de-casal-preso-nos-eua-com-dinheiro-escondido-na-biblia/ . Acesso 23 Jun 2019.

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens:
Foto do autor – Vinícius Siman.

Escrito em abril e trabalhado entre os dias 19 e 23 de junho de 2019.

domingo, 16 de junho de 2019

O PRINCÍPIO DO FIM



Êpa Babá! Axé Babá! Olá, Ancestral dos Ancestrais!
Espírito mais antigo e elevado, abaixo apenas do próprio Pai, Olorum. Eu te peço, Oxalá:
Cubra a todos nós com bênçãos, sob seu manto branco de pureza, paz e harmonia. Axé Babá! Salve, Cristo Jesus!

Saluba Nanã! Salve, Senhora da Lama sob as Águas! Nós nos refugiamos na Senhora. Eu te peço, Nanã:
Abençoe os idosos de minha família e que cuide de todos aqueles que não têm um teto ou uma boa alma em sua etapa final de vida. Tenha misericórdia, mamãe. Saluba Nanã! Nós nos refugiamos em Sant’Ana, avô de Jesus.
                                  
Larôyê Exu! Exu é Mojubá! A vós, Mensageiro Exu, meus respeitos! Eu te peço, Exu:
Mensageiro dos Orixás e do próprio Olorum, proteja-me da inveja e do olho gordo; mantenha meus caminhos abertos no amor e nas finanças; oriente minhas palavras escritas e faladas. Larôiê Exu! A vós, Santo Antônio, meus respeitos!

A grama onde ele está sentado está bem verde, mal aparada e com folhas secas que o vento trouxe das árvores; ipês rosa na maioria.
A grama onde está sentado, apesar de verde, está seca, empoeirada e com falhas mostrando a terra amarelada.
- Poeta?!?
Meu filho é identificado por uma filha de Iansã e a ele entrega o coquetel de limão siciliano que pedira ao Marcelo. Enquanto bebe, tira de sua bolsa alguns livros e um caderno.
Por baixo das folhas da grama ele e eu pudemos ver papel de bala, colherinhas de plástico, envelopinhos de açúcar e de sal, guardanapos, toco de cigarros, papelões rasgados e outros restos humanos. Quanta diferença dos restos das árvores. E quantas diferenças humanas.

Enquanto meu filho bebia e lia algumas páginas observei um cachorro amarrado a sua esquerda latir querendo seus companheiros humanos. À direita uma mulher fala:
- Benhê! Queiro uma porçãom com bêincom. Nãão mim tráigam torreismo, por favór. Odéio essa coinsam gurdureintam.
Meu menino terminara o coquetel, levantara-se para comprar uma cerveja artesanal da Off Road e voltou aonde estava. Aliás, um pouco de propaganda gratuita. Recomendo essa cerveja. Pode ser encontrado no Feirarte.
- Benhê! – Tenta falar baixo sem conseguir de fato. – Olha aqueile hôomeim. Têim caraam de macumbeinrom. Olha as roupans denle. Jesúis, Maria e Jusé.
Vestia calça preta e camisa vermelha. Trazia no pescoço um longo cordão de contas preta, branca, preta e vermelha. As minhas cores na religião que estuda e pratica, a Umbanda.
- Geinteim feitum enle nãão podeim ser do beim. Essas côinsas afrincaanas só podeim ser o diámbum. Olha, olha aqueilas contas penduradas no peiscooço Teim cara de adorador daquele diámbum, o Exum. Minha Nossa Senhora!
Remexo-me no galho do ipê onde estou sentado. “Vou brincar com ela...”. E meu filho pensa rindo:
Nossa! Que tola! Exu é a ligação do humano aos Orixás e destes conosco; é o nosso protetor astral e por isso responsável por nossas almas. A quem lhe pede e aos seus filhos e filhas ele é o autor das bênçãos de prosperidade, fartura e boa sorte nos negócios e empreendimentos. Por ser o Rei dos encantos terrestres favorece no amor e na fertilidade masculina aos seus filhos e filhas e também a quem lhe pede, pois é o responsável pela procriação humana.
De tudo, é o princípio e o transformador. Em todos, é o ócio e ação.
Exu é o pai da comunicação. Ela, como católica que se diz ser, deveria ter respeito, pois no sincretismo com o catolicismo é visto como Santo Antônio de Pádua, pois este, assim como Exu, é possuidor de grande cultura e de imensurável saber. 

Exu é ação.
No Éden nada havia o que mudar ou a fazer e para o homem cumprir o preceito bíblico “lavrem a terra, façam realidade tudo que desejarem (deem nome) e se multipliquem e frutifiquem” a ação deste Orixá se fez necessária. Então, em sentido figurado, ele é a “serpente do Paraíso”; porém não na concepção negativa apontada na Bíblia, mas sim o transformador.
Exu é ócio.
É aquele que ‘para para’¹ pensar, pois só assim se edificarão as ideias. É o ócio criativo. Assim, quem deseja bons resultados deve a ele, antes de iniciar o que quer que seja, pedir a bênção e orientação.
A histriônica continua:
- Benhê, geinteim feitum enle nãão podeim ser do beim. Acreditam em orixás como se fôsseim dêusiis. Mas essas côinsas de preto só podeim ser o diámbu.
Tola. Duas vezes tola. – Continua a pensar e a encher-me de orgulho. – A Umbanda crê em um único Deus, Olorum. E dentre os Orixás o mais elevado é Oxalá, o criador dos seres humanos. Todavia, Nanã é a Orixá mais antiga do mundo; é da pré-história, antes mesmo da Idade do Ferro. Ela é o que se encontra no centro da terra, a raiz e a água da vida e da morte.
O guerreiro termina de beber sua cerveja e pede ao Marcelo mais um coquetel. Dessa vez de tangerina. A mulher volta a falar.
- Benhê, veija! Os livros dele são de marxistas. Olha! Um é do Paulo Freinre... Só pode ser petralhaam. Um comunistaam macumbeinro.

Silenciosamente ele e eu rimos de quem lhe julga.
- Inteindo que esteija com livros. Pois teinho meu quarto de leituram. Mas não inteindo porque teim geinte que ler qualquer coisam; eim qualqueir lungaar.
Meu filho pensa na criação da humanidade tentando entender como foram criadas pessoas como aquela mulher. O faço recordar:
Oxalá é o criador da humanidade, porém só Olorum tem o poder de dar a vida. Olorum concedeu o sopro da vida às criações que Oxalá fez da lama que fica sob as águas – a essência – de Nanã, a Senhora do Portal da Vida e da Morte.
Oxalá tentou fazer o homem de ar, mas este se esvaneceu. Depois experimentou fazer de madeira, mas era inarticulado. Pensou a pedra, mas era ainda mais duro. Experimentou o fogo, mas este consumiu a si mesmo. Foi aí que Nanã socorreu o marido, dando-lhe o que fica em seu leito de águas: a argila.
- Exu, – Disse-me Nanã. – por ordem de Olorum, Pai de todos, o senhor foi a Terra ver se poderia ser ocupada por nós e pela humanidade. E o que de lá nunca mais quis sair. É chegada a hora da criação humana. Vá ao meu leito e recolha o barro que lá está e o traga para Oxalá.
Obedeci e com a lama a disposição de Oxalá a criação humana se inicia.
Olorum proibira Oxalá de bebê vinho de palmeiras. Mas foi desobedecido e embriagado criara pessoas disformes. Faltando pernas ou braços, lesões na coluna ou que saíram cedo demais do “forno da criação” e por isso a cabeça não funciona direito.
Porém, depois de sóbrio, a criação deu certo. Contudo, um dia a lama do qual foram criados irá desfazer-se para voltarem à essência de Nanã: as águas.
- Moço!?! – Duas meninas se aproximam curiosas com o homem na grama com chapéu de palha na cabeça, livros ao redor e seu caderno nas mãos. “Ah! Os erês...”. – O que o senhor está fazendo? 

- Estou escrevendo uma história. Quer ouvir uma?
Dizem sim com a cabeça. Então ao meu filho inspiro:
Olorum, o Grande Pai, confiara a sua filha Nanã a guarda do Portal dos Saberes sobre os Nascimentos, as Mortes e os Renascimentos. E Nanã estipulou:
- Ordeno que somente o feminino possa entrar e sair pelo Portal do Saber sobre a Vida e a Morte. Ao masculino proíbo atravessá-lo; nem por uma só vez.
Porém, Oxalá curioso para conhecer o outro lado do Portal vestiu-se de branco, cobriu completamente o rosto e enfeitou-se de mulher. Porém não enganara a esposa, que lhe disse:
- Já que Oxalá se vestiu de branco e de feminino para conhecer o que não é incumbência do masculino, de hoje em diante não mais se vestirá de masculino e só comerá das oferendas ao feminino. Contudo, por ter antevisto o princípio do fim será o senhor absoluto do conhecimento do Início da Morte e de todos os seus mistérios; o conhecedor dos segredos do quando e como a morte se principia e do quando e como o fim começa.
O senhor não deveria falar de morte para crianças. As crianças devem ouvir somente coisas felizes e bonitas.”. Dentre os leem que este cronto, a estes pensamentos ouço. E lhes digo que essa ideia vem da mesma fonte de “meninos vestem azul e meninas vestem rosa...”. A Oxalá podem buscá-lO na goiabeira plantada no centro do mundo plano. Este lugar não existe, enquanto é real o sofrimento infantil.
E as meninas se vão acompanhadas por um casal de Erês. Estes aconselham àquelas a amarem incondicionalmente, pois essa é a natureza de qualquer erê; seja deste mundo ou de outro.
Enquanto os quatro erês se afastam meu guerreiro contador de histórias percebe: a mulher de voz cômica e de ideias tontas é uma das que saíram antes da hora do “forno da criação”. Nós dois rimos alto. Mas sem perceber ela continua:
- Eum pêinsum que a liteiraturam é para pouncos. Só para queim pode comprar... Nãão para qualquer um.
Meu filho pensa “ela não percebe que sua voz é deselegante?”. Respondo a ele: “O tolo não se como é.”.
Longe, no lago do Parque Ipanema, como se bailasse, um peixe pula alto e retorna às águas. O belo e às vezes sério Logunedé de mim se aproxima com a meiguice herdada de sua mãe, a delicada Oxóssi, e com a agilidade herdada de seu pai, o solitário Oxum.
Neste instante a energia acaba no Feirarte; o que silencia a banda que tocava. É que queremos ouvir meu outro filho, Oli. Este também filho de Logunedé.
Oli estava em uma mesa não muito distante. E aproveitando-se do silêncio ele canta a música que lhe dei A Hora Retorna ao Futuro:
Querem ouvir minha voz.
Mas meu poema é o mundo.
Em um galho próximo, um pássaro levanta voo e com ele vai Logunedé. Neste instante, debaixo da árvore onde estou, passam duas pessoas. Provavelmente com mais de setenta anos.
- Perolina! Há tanta gente aqui. Devemos vir mais vezes, amor.
- Zu. Também estou gostando. Acho que...
Infelizmente perco o resto da conversa. Sopro palavras ao meu filho e este escreve:
Perolina...
Nome bonito
Para uns, ridículo
Para outros, batido
Para mim...
Pérola e neblina.
E Zu é o azul do firmamento.
Finalmente! Agora chegou a hora de brincar. A mulher histriônica da direita perde a voz. Um pouco de silêncio quem sabe não lhe faz bem...
O cão da esquerda encontra os seus, as duas meninas com seus pais e se vão embora.
Meu poeta guerreiro pega o livro O Sol na Cabeça, de Giovani Martins, e lê “Encare os olhares do rato”. Aquela ali não é nada. Melhor é a que vem.
- Moço, quer comprar bombons?
- Ô, filha! O que trouxe só dá pra pagar o que estou bebendo... Mas qual é seu nome?
- Cleide.
- Cleide e seus bombons. Falarei da senhora em uma breve história no blog aRTISTA aRTEIRO.
Falam amenidades até que ela diz:
- Minha mãe morreu nesse janeiro e perguntei a minha avó se devia deixar Júlia Sofia, minha filha, vê o corpo da mamãe. Ela me disse “Deixe a menina decidir se quer vê-la ou não. Pois hoje você pode mostrar, mas amanhã não.”.
- Que Nanã olhe por sua avó e que sua mãe esteja com Nanã.
Depois disso os dois se calam e eu também, para levar os pedidos para Nanã.
E você que está a ler-me, vai se calar ou vai dizer alguma coisa. Na vida, omitirá ou agirá?


Ofereço como presente aos aniversariantes:
Faire (Amnon K. Oliveira), Salomão A. Costa e Alexis Senshi.

Agradecimento especial ao Ogã Rubens Ramalho que bem me orientou sobre Exu.

Recomendo a leitura de:
“Socos e Alívios”, de Girvany de Morais. Pode ser adquirido girvanyaparecido@yahoo.com.br – watzap: 033.99104.2299.
“Guerra de Soldados Valientes y Oficiales Cobardes”, de Javier Villanueba:

¹ Diquinha de Português:
Acento Diferencial.
Na escrita a sua função é permitir identificar mais facilmente as palavras com mesma pronúncia, mas hoje existem apenas dois casos do uso desse acento (As exceções são a crase e acento em mesóclise ou ênclise, mas esses são assuntos para outro momento):
Pôde – pode
“O ladrão pôde fugir porque a polícia foi subornada”. Pôde é a terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo.
“Com suborno, é claro que ele pode fugir”. Pode é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo.
Pôr – por
“A senhora não deve pôr o livro na bolsa”.
‘Pôr’ é verbo enquanto ‘por’ é preposição.
“Não vá por aí, sua tonta. O caminho é este”.

No passado, distinguia-se a forma verbal “pára” da preposição “para” através do acento agudo no verbo. Acreditava-se: enquanto o verbo tinha forma tônica a preposição, átona; ou seja, a forma verbal se fala com força enquanto a preposição não tem força de pronúncia. Mas o Acordo Ortográfico de 2008 aboliu o acento diferencial nesse caso.
Exemplos:
a) “De supetão ela para no meio da faixa de pedestre” (3ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo parar); “Siga as instruções para não errar o jogo” (preposição).
b) Aquele que ‘para para’ pensar (verbo + preposição).

COSTA, José Maria da. Pára ou Para?. Disponível https://www.migalhas.com.br/Gramatigalhas/10,MI127876,101048-Para+ou+Para . Acesso 14 Jun 2019.
NOVA ESCOLA: Novo Acordo Ortográfico: acento diferencial. Disponível https://novaescola.org.br/conteudo/323/novo-acordo-ortografico-acento-diferencial . Acesso 14 Jun 2019.
SÓ PORTUGUÊS. Acento Diferencial. Disponível https://www.soportugues.com.br/secoes/fono/fono13.php . Acesso 14 Jun 2019.

CAROL. Saiba Mais Sobre Exu, o Orixá Protetor e Guia da Felicidade. Disponível https://www.iquilibrio.com/blog/espiritualidade/umbanda-candomble/exu-orixa/ . Acesso 14 Jun 2019.
_______. Tudo Sobre Logunedé – o Orixá da pesca e da caça. Disponível https://www.iquilibrio.com/blog/espiritualidade/umbanda-candomble/tudo-sobre-logunede/ . Acesso 15 Jun 2019.
RAIZES ESPIRITUAIS. Orixás. Disponível https://www.raizesespirituais.com.br/orixas/ . Acesso 11 Jun 2019.
_______. Ibeji, Erês e Cosme Damião – O mistério da infância na Umbanda e Candomblé. Disponível https://www.raizesespirituais.com.br/ibeji-eres-e-cosme-e-damiao/ . Acesso  15 Jun 2019.

 Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
 Imagens:
Diferenças Humanas – foto do autor.
Santo Antônio – autor desconhecido;
Livros e Bebidas – foto do autor;
Rubem de chapéu – foto de Vinícius Siman;
Rubem Dando Bandeira  foto de Vinícius Siman.

Manuscritos dos dias 20 e 26 de maio; 09 de junho. E trabalhado entre os dias 11 a 16 de junho. Tudo em 2019.

domingo, 9 de junho de 2019

corpos E CORPOS



cuerpos Y CUERPOS


Se compreenderdes que todos os seres são irmãos, que todas as vidas são irmãs, que todas as criaturas formam um todo indivisível e que Deus é pai de todos os seres, brotará espontaneamente em vós o sentimento de amor e louvor ao próximo.
Portanto, não vos prendais à aparência do corpo físico nem discrimineis vossos irmãos segundo a aparência.
Aparência nada mais é que reflexo de vosso pensamento.
(TANIGUCHI, 1988. P. 83).




Em português

“Não seja baleia,
seja sereia”
Assim gritava um outdoor
Mas, contudo, entretanto e todavia
Baleias são gentis
Sereias, hostis.

corpo
de
dança
corpo
que
dança

Céu cinza azulado
Corpo fino bailado
Corpo grosso bailado
Eu cinza azulado


En español

“No sea ballena,
Sea sirena”
Así gritaba un outdoor
Pero, a pesar de, mientras y sin embargo
Ballenas son gentiles
Sirenas, hostiles.

cuerpo
de
danza
cuerpo
que
danza

Cielo gris azulado
Cuerpo fino bailado
Cuerpo groso bailado
Yo gris azulado


Ofereço como presente aos aniversariantes:
Luciano A. Maciel, João Pimentel, Claudiane Dias, Sandra O. Silva e Mª Silva Bueno.

Recomendo a leitura de:
“Qué Pena, Gardel, Qué Pena...”, de Javier Villabuena:
“Rua das Pedras Esquecidas”, de António MR Martins:
Socos e Alívios”, de Girvany de Morais.
LANÇAMENTO: 19 horas do dia 12 de junho de 2019; no Salão do Livro Vale do Aço; Café Literário; Centro Cultural Usiminas

TANIGUCHI, Masaharu. Palavras do Anjo. São Paulo: Seicho-No-Ie, 1988.

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens:
Não aceite o diferente – foto do autor;
Rubem de chapéu – foto de Vinícius Siman.

Versos escritos em 09 de maio de 2019, mas trabalhados no mês seguinte, entre os dias 04 e 09.