ADVERTÊNCIA:
Doçura de mel aqui pouco, muito pouco verá. O comum será boldo e camomila.
Esta história não tem tempo nem espaço definido. Ou
melhor, seus personagens estão livres ou do tempo ou do espaço. E cabe a quem
lê definir o onde, o quando e quem são as pessoas aqui descritas.
Os poucos cujos nomes aparecem são reais e merecem
respeito; por isso não os omito. Os demais ou são inventados ou indignos de
respeito.
“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com
as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado”.
(ROSA, 1968. P. 18)
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
“É hora de dá um basta nessa tristeza / E
esquecer o passado triste que ficou
/ Já é hora de encontrar Jesus
Cristo, a solução. / Deus conhece os meus problemas e quer me
ajudar.”
Assim cantando passa pela rua Chico Xavier, do bairro
Limoeiro e pouco depois da Casa da Esperança, um homem magro, mas de músculos
definidos, pele marrom claro, rosto bonito, cabelos pretos e crespos, a segurar
forte, rente ao peito, uma mochila preta, faz sinal para o motorista parar.
Ao olhar para o homem, o motorista pensa em
continuar, mas a falta avassaladora de dinheiro o faz mudar de ideia.
- Para onde você vai?
- Pra... Pra... Pra qualquer lugar.
- Mas...
- Vá pro Amaro Lanari.
- Certo. Para qual endereço?
- Ah... Vá... Vá pra Igreja Católica.
- A São José Operário?
- Tem outra?
Pela rispidez do passageiro o motorista se cala. Calou-se,
mas observou que por todo o percurso o mulato, pela janela, olhava nervoso para
trás e para os lados. E isso junto com a pessoa o incomodou.
- O senhor pode ir mais rápido?
- Certo. Vou por no limite máximo.
O motorista tenta puxar conversa, mas o passageiro
responde monossilabicamente.
- Chegamos! São R$45,4...
Mal o motorista começara a falar quando o passageiro
abriu a porta e saiu correndo.
- Hei! Hei!
O motorista vence o espanto e abre a porta enquanto
grita: “Volta aqui, preto safado.” E sai atrás. Mas o passageiro é mais jovem e
o motorista é mais gordinho.
Xingando, volta para o carro. Ninguém na rua faz nada.
Dentro do carro bate as mãos no volante tentando reprimir as lágrimas. Um
engenheiro com mestrado, mas sem nenhum capital para abrir um escritório e
nenhuma empresa contratando nesses dias de desgoverno presidencial piorado pelo
desgoverno estadual. Da rua ninguém olha por ele. Limpa os olhos com as mãos e
pelo retrovisor ver a mochila esquecida pelo passageiro.
Pega a mochila e encontra dinheiro. Muito mais da
metade da mochila repleta de notas de cem. As lágrimas convertidas em risos,
ele canta:
“Está surgindo aqui um novo vencedor / Sou alguém do coração de Deus / Um novo nome ouvirá sobre essa terra / Quem
sabe este nome seja o meu / Esse alguém que o Senhor vai levantar /
Talvez seja o menor que está aqui
/ De repente ele seja o último a
sentar à mesa como fez Davi. Sou alguém do coração de Deus.”
Entra em casa chamando pela mulher. Diz que achou
muito dinheiro e vão para a sala. Ele em pulinhos e ela espantada. Lá abre a
mochila e conta tudo que aconteceu. Não se esquece de falar das músicas que lhe
serviram de oração...
A mulher agarra a mochila e sorri para o marido. Rindo,
ambos vão para o quarto comemorar. A gargalhar jogam as notas para cima para
chovê-las sobre a cama. Rindo moderadamente jogam de novo o dinheiro para cima
para chover sobre eles. Sorrindo se olham, dizem o quanto se amam, beijam-se e
o resto você já sabe.
A noite, no Intertv dos Vales, ouvem a Tia Lúcia, a
fundadora do Núcleo Assistencial Eclético Maria da Cruz ou simplesmente Casa da
Esperança.
- A senhora sabe quem roubou?
- Não, não sei... Ó, meu Deus! – Um soluço a faz
parar. Mas firma-se outra vez e continua: A gente recebeu de doação uma soma
elevada para a reforma que tanto estamos precisando e... – Ela pensa nos
problemas pessoais que não são poucos e nos problemas do NAEMC que são muitos.
Mas resistente como sempre, com os olhos vermelhos, volta a falar firme e forte.
– Por favor, quem pegou esse dinheiro, devolva. Devolva, por favor. É só deixar
aqui que não faremos perguntas e te agradeceremos.
Marido e mulher se olham. Percebem que o dinheiro
deles é, na verdade, da Casa da Esperança. E agora?
Enquanto eles pensam...
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
- Olha o balão, olha o balããão.
Para um carro valendo mais de duzentos mil. O dono
veste um terno cinza; com jeito de ser muito caro. A carona abre sua janela e
conversa com a sexagenária ao seu lado.
- Quanto é?
- Dez reais.
- Só tenho R$25,00 – diz a passageira.
- A gente te dá vinte e você nos dá três balões. –
Intervém o motorista.
- Não posso. Preciso desse dinheiro.
- Porra. Você vai ficar regulando um balãozinho?
- Senhor. Não estou regulando. Estou trabalhando.
- Dá logo esse balão que tamos indo pra Marcha...
- Não posso senhor.
O motorista fala baixinho para a passageira: “Pega
logos os três e fecha a janela”. A carona sorri e obedece.
- Nossa! Como estão pesados esses balões... Desisto.
Abre a janela e os soltam. Nem veem, assim eles
juram, que arrastaram a sexagenária por cem metros no asfalto e cantam quase
gritando enquanto riem:
“Nós vamos profetizar a vida de Deus uns pelos
outros! / Quantos podem profetizar nessa noite /
Levante a mão do seu irmão, e com toda força declare sobre ele a
vida /
Vida, eu profetizo sobre ti a vida
/ Receba sobre ti a vida / Vida
de Deus!”
Um carro a valer mais de duzentos mil reais. Um balão
a valer menos de dez reais. Uma pessoa nada vale. É, para o céu nem balão está
subindo...
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
Marido e mulher discutem o dinheiro encontrado.
- Mas não era do bandidinho...
- Foi você quem roubou?
- Não, claro que não... Foi o mulatinho.
- Então pronto. Você não cometeu o crime.
- Mas e a Casa Esperança?
E assim discutem quase todo o resto da noite.
Marcha, Marcha, Marcha pra Jesus.
Dois empresários caminham pela rua. Um traja terno
cinza e outro, terno verde musgo. Ambos elegantes e cantando:
“... Irmãos,
/ Sua alegria é minha
alegria / Suas lágrimas, choro também / Não
importa o que venha na vida / Irmãos
/ Somos irmãos.”
- Nós que somos homens de bem temos que defender
nossas famílias. – Muda de assunto – Quanto você pagou pelo seu carro?
A poucos metros à frente há um mendigo deitado na
calçada. Fora do cobertor que o enrola só seus cabelos crespos a envolver um magro
rosto marrom-cinza.
- Mais de duzentos mil.
- E aquela menina que veio com você, quem é?
- É amiga... – E ri e o amigo o acompanha. – Jesus
tem que voltar logo pra acabar com as bichas. Domingo vai ter a parada do
orgulho LGBT e sei lá mais o quê.
Ao lado dos empresários está o mendigo adormecido. Ao
passar por ele, o empresário de terno verde o chuta, batendo na cabeça com a
sola do sapato. Surpreso, o de terno cinza olha para trás e ri enquanto os dois
se afastam do aturdido mendigo.
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
Após horas discutindo e de uma soneca, o casal de
sorte continua de onde pararam a conversa.
- Você é engenheiro mais do que capacitado.
- Sim, eu sei. E o que tem isso?
- A gente ficará com o dinheiro e...
- E o ladrão?
- Por acaso ele vai chamar a polícia? – Diz rindo. –
A gente fica com o dinheiro e...
- E a Casa da Esperança?
- Calma que eu chego lá, amor. A gente fica com o
dinheiro, você monta o seu escritório e vá até a Tia Lúcia...
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
Três dias antes da Marcha do Orgulho LGBTQI+ certo
presidente, que é um boçal nato, participa da Marcha pra Jesus.
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
- Amor, a gente fica com o dinheiro, você monta o seu
escritório e vá até a Tia Lúcia e se oferece para fazer a reforma de graça.
- Isso demanda tempo. Não é só chegar e levantar
parede. Tem que fazer a planta e depois comprar os materiais, contratar os
funcionários e aí vai todo o dinheiro.
- Amor, enquanto monta o escritório faça a planta e
diz que é sua doação. E será mesmo; não foi você quem roubou; foi o mulatinho.
Espera alguns meses para a empresa começar a gerar renda; aí você compra um
pouco de material e doa pro NAEMC. Nesse meio tempo você já fez nome entre os
outros empresários e convence a eles doarem o resto do material e a contratarem
os pedreiros.
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
Aí, certo presidente, que um boçal nato, diz na
Marcha pra Jesus:
- Se não tiver uma boa deform... Digo, uma boa
reforma política; e para ser “o bem de todos e felicidade geral ‘danação’,
estou pronto ‘pra danar’! Irmãos, canclamam, concromom, cancro... Ah! Digam ao povo
que fico” mais um mandato. E vamos mostrar para os idiotas úteis que sabemos
tabuada. Quatro mais quatro são... são... – Pergunta baixinho para o casal
Estêvam e Sônia Hernandes, bispo e bispa da Igreja Renascer em Cristo: “quatro
mais quatro é quanto mesmo?” ao receber a resposta continua: Estou aqui para
ficar oito ânus. Estou pronto pra duas gestações, pois Deus me deu a
Presidência para mudar o destino desse abacaxi maravilhoso chamado Brasil. Todos
nós compartilhamos dessa irresponsabilidade. Deus acima de tudo, Brasil acima
de todos.
O dito presidente para e olha para o povo. Parece estar
abarcando a todos com o olhar, mas na verdade está tentando pensar, decidir o
que dizer. Enquanto nada surge em sua cabeça ele faz o gesto que o define.
- O Brasil precisa de um povo que tenha fé e de uma
classe política que tenha fé, pois será juntando nossas fezes que vamos
corrigir os seríssimos problemas de ética, moral e economia. E a reforma da
previdência será o revertério intestinal que colocará o país no local de destaque
que merece. Primeiro Estados Unidos e depois Brasil. Não, não. É a emoção,
gente. Primeiro é “Iu Éssi Ei”, depois Deus. Desculpa, gente. É a emoção que me
deixa sem noção. Primeiro Deus e depois a família respeitada e tradicional
acima de tudo! Meu filho Carlucho é a prova disso.
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
- Olha lá um preto correndo. – Diz um policial gordo
para outro, que é mulato bem claro. – Preto parado é suspeito, correndo é
ladrão e voando é urubu.
- Negro só tem gente os dentes. – Fala para o colega
e grita:
- Parado aí, ô marginal!
É Marcha, é Marcha, é Marcha pra Jesus.
Em um lugar frio, pavoroso há meia dúzia de pessoas. Dois
mulatos amarrados. Machucados; muito. Um era o dono da mochila. O outro era alguém
que passava no lugar errado, na hora errada.
Mulheres um dia terão hora e lugar onde poderão
passar livremente? E negros ou mulatos?
Não, não é marcha pra Jesus.
- Oi! Tudo bem com você?
- Ainda estou respirando...
- Uai! Por quê? Está doente?
Arrependido de ter incomodado:
- Rerrê. Brincadeira, boba. É só terrorismo. É que
sonhei essa noite que cometi um crime hediondo. Planejado até nos mínimos
detalhes. E depois traí meus cúmplices e fique com a pilhagem só pra mim. Você
nem imagina a preciosidade do produto roubado.
- Não imagino mesmo.
- Mel. Rerrê. Toneladas de galões de mel. Viu como
sou um criminoso sem compaixão?
- Poxa, amo mel.
- E precisou de dezenas de caminhões para carregar o
mel. Viu como sou um criminoso sem compaixão?
- Que nada. Você é um Ursinho Poo.
- Ursinho Poo do mal.
- Rerrê.
- Estou vendendo a cem dólares a colher de chá.
- Meu amigo, você é cruel. A humanidade precisa ter
acesso a essa maravilha.
- Concordo que precisa. Mas como bom capetalista...
Cem dólares a colher de chá.
- Pense bem! Seja um pouco socialista agora.
- Aliás, vou mudar para colher de café que é menor.
- Kkkkk. Tá aprendendo rapidinho...
Há maus e maus...
Ofereço como presente aos aniversariantes:
Feliciana Saldanha, Vilma Zeferino e Daniel Cristiano.
ROSA, Guimarães. Grande
Sertão: veredas. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1968.
As músicas gospel que aparecem neste cronto são, na ordem
que aparecem:
PAULO FRANCISCO. Como Está Teu Coração. Disponível https://www.letras.mus.br/rose-nascimento/1305281/
. Acesso 21 Jun 2019.
SILVA, Agaílton. Um Novo Vencedor. Disponível https://www.youtube.com/watch?v=yKykMHwsRHI
. Acesso 21 Jun 2019.
MINISTÉRIO IPIRANGA. Ressuscita Vale dos Ossos Secos.
Disponível https://www.youtube.com/watch?v=Z20KeIWATTo
. Acesso 23 Jun 2019.
VALADÃO, Ana Paula. Irmãos. Disponível https://www.letras.mus.br/ana-paula-valadao/1495796/
. Acesso 23 Jun 2019.
Matérias onde o autor se
embasa para alguns trechos do cronto:
BASILIO, Ana Luiza. Na Marcha pra Jesus, Bolsonaro admite
tentar reeleição em 2022. Disponível https://www.cartacapital.com.br/politica/na-marcha-para-jesus-bolsonaro-admite-tentar-reeleicao-em-2022/
. Acesso 23 Jun 2019.
CARDIM, Nathália. Após depor, mulher arrastada por carro desabafa:
“só quero esquecer”. Disponível https://www.metropoles.com/distrito-federal/apos-depor-idosa-que-foi-arrastada-por-carro-diz-so-quero-esquecer
. Acesso 21 de junho de 2019.
EM. “Negro parado é suspeito, correndo é ladrão, voando é urubu”, diz
alternativa em prova de concurso. Disponível https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2018/01/18/interna_nacional,931958/u201cnegro-parado-e-suspeito-correndo-e-ladrao-voando-e-urubu-u201d.shtml
. Acesso 23 Jun 2019.
NOGUEIRA, Kiko. Na Marcha pra Jesus, Bolsonaro discursa
sobre “ética e moral” ao lado de casal preso nos USA com dinheiro escondido na
Bíblia. Disponível https://www.diariodocentrodomundo.com.br/na-marcha-para-jesus-bolsonaro-discursa-sobre-etica-e-moral-ao-lado-de-casal-preso-nos-eua-com-dinheiro-escondido-na-biblia/
. Acesso 23 Jun 2019.
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo
domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura,
Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em
“Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”,
“Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor
dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”,
“Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua
Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do
Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões,
Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens:
Foto do autor – Vinícius Siman.
Escrito em abril e trabalhado entre os dias 19 e 23 de
junho de 2019.
2 comentários:
Como sempre, dispensa comentários!
Um lindo presente! Muito obrigada.
Viajei no texto. Roubou ou não roubou. Eis a questão.
Postar um comentário