sexta-feira, 20 de julho de 2012

carta de Thiago para mim


Ofereço a carta que recebi de Thiago Domingues, grande poeta e amigo maior ainda, à Solange Maria, diretora da Agência Oz. A missiva é meu voto de que minha querida agente cultural supere o que nela está doendo...
Mulé, mostre-se resiliente. Afinal, você é “sol dos anjos”.



São Bernardo do Campo, 10 de Julho de 2012

Bom amado professor e poeta Rubem Leite, que imensa satisfação corresponder-me com você!
Estimada referência nesta minha curta trajetória no mundo das letras, felicito-me em trazer neste diálogo um assunto que muito me interessa: a Educação.
Em uma de nossas conversas lembro-me de ter dito o quanto me inspiro naquelas pessoas que pintam o mundo com a cor da renovação e da esperança, e você, além de poeta, é uma dessas pessoas que tem deixado o mundo mais colorido.
Entre tantos modelos educacionais, penso que nós dois entendemos a Educação como ferramenta para a liberdade e autonomia, para o desenvolvimento do espírito crítico e reflexivo; aquela educação que consiste em ler o mundo, para em seguida significar as palavras, como preconizava outra grande inspiração minha: Paulo Freire.
Acabo de ler a reportagem do seu projeto teatral que saiu no site do Jornal do Vale do Aço. Simplesmente inspiradora!  
Penso que a Arte tem uma importância nuclear em nossas vidas. Seja com as crianças ou com qualquer idade. Refiro-me à arte em seu sentido pleno, ou seja, a metamorfose das emoções como linguagem essencialmente humana, o êxtase  das nossas potencialidades criadoras. 
É preciso reavivar no homem a relação com os mananciais criativos, inerentes à nossa condição e a Arte é a encubaroda desta potência.  Identifico-me (intimamente com a linguagem da poesia, pois é ela que, no meu caso, oferece este canal fértil de diálogo e aproximação com estas esferas. É  com a linguagem poética que tenho investido algumas práticas aqui, na biblioteca, meu local de trabalho.
Há em nossa cidade um projeto fascinante e no qual me orgulho de fazer parte. É a concepção REBI (Rede Escolar de Bibliotecas Interativas) de Bibliotecas Escolares, criada muito antes da Lei federal 12.244 que dispoe sobre a obrigatoriedade das bibliotecas nas escolas. É uma Rede que possui uma organização específica, condizente com a realidade escolar e que visa atender à ideia de um ambiente favorável aos diferentes modos de expressão e produção. Estimula-se a busca e a seleção da informação em um espaço de  livre acesso,  ou seja, não há barreiras físicas, tampouco psicológicas, que inviabilizam o acesso aos elementos informacionais (livros, fantoches, CDs, etc.) e o usuário. Há alguns princípios que norteiam a utilização do espaço, rompendo com a ideia de um simples “espaço de livros”. É  possível citar a infoeducação (educar para a informação) a leitura, cultura e memória, em que estimula-se um belíssimo trabalho de resgate e restauração das relações da comunidade e o contexto escolar.  Dito isso, não se faz necessário acentuar o papel importante que a biblioteca desempenha aproximando a comunidade da escola, enaltecendo por sua vez, uma educação para além dos muros da escola, parafraseando o grande filme francês¹.
Atuando como um mediador das ações que podem desenvolver neste espaço atendemos o que chamamos de ensino fundamental I, ou seja, as crianças de primeira à quarta série, aqui em São Bernardo do Campo, além da comunidade local ou não.
Recentemente realizei um trabalho com poesias com as “minhas crianças”.  É interessante observar o quanto a sala de aula “absorve” muito dos conteúdos internos do professor, sua dinâmica subjetiva e aspirações.  Em uma visão psicoanalítica é impossível desconsiderar uma neutralidade na relação professor-aluno, um  amplo espectro de relações inter e intra inconsciente.  Disse isso para frisar o quanto aquele famoso axioma “e quem vai educar os educadores?” tem validade.  Em algumas salas em que o professor sentia-se impaciente ou não nutria qualquer interesse por poesia, a atividade ocorria aos trancos, enquanto naquelas turmas em que o professor tinha uma “afinidade” maior com a linguagem poética, indo além do famoso “poesia é  rima” a atividade fluia com uma leveza encantadora!  Por isso, futuramente, antes de trabalhar com as crianças, vou fazer o percurso inverso e começar com os professores...
A atividade foi realizada na biblioteca e tinha por objetivo o diálogo entre  duas paixões que tenho: Poesia e Hip Hop.
Aproximar as crianças do olhar poético, aquele movimento que rompe com a dicotomia de que há apenas possibilidades restritas, entre o “sim e o não ou bem e mal” foi o meu objetivo maior.  O olhar poético surge para mostrar que a poesia pode ser um mundo de infinitas possibilidades e o encorajamento para a descobrir  o que existe de melhor de si, seja a sua melhor contribuição para o mundo.
 O Hip Hop é a linguagem das ruas que possibilitou aproximar os conteúdos programáticos aos conteúdos internos da história de vida de cada um. O Hip Hop como retomada da oralidade (também trabalhamos com a literatura de cordel, o repente e a embolada) e o uso do corpo dentro da escola (através das danças e movimentos típicos dos B.Boys)  foi o caminho que usamos para concretizar a poesia como linguagem comum entre os “pequenos”.  Para isso, nada melhor do que usar o legado dos nossos grandes “poetas-mestres”  como Pessoa, Neruda, Quintana , Drummond e João Cabral para revelar o potencial de  cada um dos nossos “pequenos” e a partir da aproximação poética, incentivar a criação autoral de cada um em diversas plataformas.
O trabalho foi discriminado por cada ano/ciclo e teve desde a realização de saraus temáticos na biblioteca, passando por mini-eventos de improviso ou freestyle  até a elaboração dos trabalhos dos alunos, expostos aqui na biblioteca em formato de cordel ou impressos. Tivemos também belíssimas apresentações de “poemas pintados”( alguns poemas viraram pintura das crianças ou foram retratados em paineis em foram de grafite) ou declamados à la MC (mestre de cerimônia, figura importante do movimento Hip Hop).
Pois é, meu grande amigo,  sou muito feliz no que faço! Peço todo dia, ao acordar, que  eu tenha sempre inspiração e transpiração de sobra para inovar e acreditar sempre no potencial do ser humano.  Se hoje eu sou o que sou, é pelo fato de ter pessoas que acreditaram em mim.
Castro Alves,  certa vez disse que “é preciso ouvir o gênio que borbulha em cada um de nós”, e é com este espírito que busco  moldar o presente para que o amanhã não seja estreito e repetitivo, e o brilho nos olhos não seja privilégio de poucos... Acreditar não mais pela ingenuidade, mas pela certeza.
Inspirações duradouras,

Thiago Domingues.

¹ Entre os muros da escola (Entre les Murs ) é um filme francês do ano de 2008. O diretor Laurent Cantet retrata a realidade escolar francesa e aborda o impacto do sistema educacional nos alunos. Ao direcionar  as críticas ao sistema de ensino local, encontramos no filme também  muito do que o pensador Michel Foucaul (1926-1984) disse sobre a educação, entre eles o caráter “adestrador” do pensamento e as relações de poder exercida neste espaço.

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