Raymundo Magalhães
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A primeira bodega que se abria, na feira do Jacaré, era a de seu Bento. Logo muito cedo, mal o dia começava a raiar, ele saía de casa, embrulhado num cobertor de lã, por causa do frio cortante, escancarava as duas portas da frente, ia à ancoreta de cachaça pousada em cima do balcão, tomava um tronco, para esquentar o corpo e ficava, por algum tempo, passeando dentro do quarto, à espera dos primeiros fregueses. Estes não demoravam a chegar. Eram, de ordinário, os mesmos:  seu Valdivino,  marchante,  dono do açougue vizinho,  conversador inesgotável e cacete, depois da terceira golada;  o capitão Mosqueiro, espírito alegre e vivo, grande   contador   de   anedotas   picantes,   que,   apesar   de   muito   repetidas,   arrancavam formidáveis   gargalhadas;   seu   Doca,   o   mais   moço   de   todos,   prosador   e   poeta,   que assombrava a terra com os seus violentos artigos políticos nos jornais da capital e já era uma celebridade consagrada pelo  Almanaque de Lembranças...  Tivera estudos.  Toda a gente o
considerava um moço preparado.  Fazia graça de um grosseiro materialismo e, de vez em quando, atracava-se em polêmica com o vigário da freguesia, um santo homem, que tomava a peito converter o herege... Só mais tarde chegavam o Baé, o Januário, o Zé Preto, o velho Macedo, o Caboquim, e outros negociantes das imediações, que formavam uma grande roda, aplicada, toda a manhã, até à hora do almoço, a beber copinhos de cachaça e a falar da vida alheia...
Quando seu  Bento abria  a porta,  vinha de dentro do  quarto  um bafo  morno,  nauseante complexo, em que se misturava o cheiro de mil coisas heterogêneas: sardinhas secas, jacas, rapaduras,   fumo   de   corda,   álcool,   drogas,   plantas  medicinais,   queijos,   alhos   e   cebolas brancas, bananas, atas, avoantes. . . Além de negociante de gêneros alimentícios, seu Bento era também muito entendido em assuntos de medicina caseira.  Como na terra não havia médico nem boticário, ele desempenhava o papel de curioso: com o auxilio do seu bojudo Chernoviz,  aconselhava   remédios  a quantos   recorriam à  sua experiência,  e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa para estes, batata para aqueles outros, eram os seus remédios prediletos. Se não fizessem bem, não podiam fazer mal. Custavam pouco,  mas  esse pouco  lhe bastava para  ir  vivendo  folgadamente,  em meio à sua vasta
clientela.
Seu  Bento era um belo  tipo de homem,  muito branco,  de nariz aquilino,  com uma barba cerrada  e  longa,   cujas  pontas   tinha  o hábito  de  retorcer,  com arrogância.  Andava pelos setenta anos, mas   estava   forte,   esperando   viver,   pelo  menos,   o   dobro...  Extremamente desasseado, sempre de corrimboque em punho, a fungar pitadas de tabaco, com um enorme lenço de ganga sobre um dos ombros, era uma figura pitoresca pelo seu modo de vestir. Quer de verão,  quer de  inverno,  calçava  tamancos e o seu traje compunha-se de uma calça de riscado e de uma camisa de madapolão com as fraldas soltas que lhe alcançavam os joelhos. Nada neste mundo o obrigaria a passar os panos ou a enfiar um paletó. Ia assim a toda parte, à igreja como ao mercado,  e,  mesmo quando se faziam eleições,  era em fralda de camisa que dava o seu voto ao governo.
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