Obax anafisa.
A vida passa por nós tantas vezes que ficamos ultrapassados. Então, às vezes fico triste por uma amizade que se vai por causa de religião. Outras, porque ambos se julgam com razão. E estão. Mas não sabendo abrir mão da nossa valorizamos mais a própria posição do que o irmão. Fico triste, choro, sinto frio por dentro, sensação de fome. Levanto e começo o dia. Olho com leve sorriso para a folha e para flores que se desprendem ao vento. Melhor que aquelas que ficam, não largam ou são mantidas. Enfeiando. Olho para a árvore, para o arbusto, para a moitinha. São bem mais lindas. Sorrio e continuo o meu dia, satisfeito porque choveu a noite. Não deu para dormir ouvindo-a, mas refrescou o dia de hoje. O problema é que meus olhos teimam em ver que “tristeza não tem fim. Alegria sim”¹ e confesso, claro, tristeza abunda, mas percebo: há alegrias. Acho que quero sorrir. O que posso fazer para sorrir inteligentemente? Huuum! “A bunda, que engraçada. \ Está sempre sorrindo, nunca é trágica \ Não lhe importa o que vai \ Pela frente do corpo. A bunda basta-se. \ Existe algo mais? Talvez os seios. \ Ora – murmura bunda – esses garotos \ Ainda lhes falta muito que estudar. \ A bunda são duas luas gêmeas \ Em rotundo meneio. Anda por si \ Na cadência mimosa, no milagre \ De ser duas em uma, plenamente. \ A bunda se diverte \ Por conta própria. E ama. \ Na cama agita-se. Montanhas \ Avolumam-se, descem. Ondas batendo \ Numa praia infinita. \ Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz \ Na carícia de ser e balançar. \ Esferas harmoniosas sobre o caos. \ A bunda é a bunda, \ Redunda”². Sorrindo paro na Estação Memória para ver o que está sendo exposto. Antes de entrar ouço o dono da funerária, ao ver um motoqueiro na rua: “chega mais cliente. Temos descontos especiais”. Suspiro para o nada, para ninguém e entro. Na estação, não na funerária. Uarrarrá! Minutos vendo as pinturas e algumas me agradam; pensando nelas saio e sento no jardim vendo os carros indo, os pedestres vindo e indo. Ninguém a minha direita. À esquerda ninguém que conheço. Penso na minha bunda sem graça. Olho minhas mãos. Que lindas! Amo olhá-las. Massageio uma na outra. Passo-as em meu rosto. Se tivesse em casa faria outra coisa com a direita. Publicamente, olho e sorrio! Do cartório um casal vem para a praça tirar fotos. Só os dois, com os pais, padrinhos. Olho-os! Sorrindo, levanto. Vou para casa. Na Primeiro de Maio um hippie pergunta se não quero lhe comprar uma bijuteria. Não vendeu nada o dia todo. Está com fome. Ele com fome e eu só.
- Está com alguém?
- Um amigo!
- Moro aqui. – aponto para um prédio – Em uns vinte minutos você o encontra? Trarei algo para comermos na praça.
O garotão me olha espantado.
- Não o levo para minha casa porque não o conheço e não quero estranhos lá. Desculpe!
- Tudo bem! O senhor vai mesmo trazer algo para nós?
- Minha idade é próxima da sua, então me chame pelo nome. Benito, a seu dispor. E trarei algo para nós três. Não estou a fim de comer sozinho. Se não importarem, claro! Qual é seu nome?
- Campos. E meu amigo, Carmo.
- Daqui a vinte minutos, então.
Entro no apartamento sem olhar se ele vai à procura ou não de seu amigo. Volto com dois cachos de uva roxa, sanduíches de pão integral, salaminho e queijo minas, vinho e copo descartável. Os cumprimentos habituais e nos pomos a comer. Falamos dos cento e quatro anos do GAAALOOOOO, de mulher, de literatura. A bela voz de Carmito me apresentou a poesia do Uruguai, seu país natal, e achei linda: “Nada de aquello que perdura a los ojos \ sobreviverá \ tal vez se muestre de otra forma \ o asome entre las sábanas del viento \ o mientras crece \ se reúna al sol \ con los espejos”³. Conversamos, comemos, bebemos até sentir a hora de me recolher. Gostaria de levá-los à minha casa, queria passar o resto da noite com eles, mas não ousei, e ainda tinha que me levantar cedo. Desculpei-me, entrei no prédio levando o que havia restado para a lixeira. Da janela de meu quarto com luzes apagadas os vi se ajeitando sob o monumento. Deitei. Não dormi.
Ofereço como presente de aniversário à
Tiago Fernandes, Liliane L. Melo, Claudinei Souza, Glaciel Farias, Maíto Chagas e Mara Coutinho.
Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.
Escrito entre 15 e 26 de março de 2012.
¹ A Felicidade, de Tom Jobim;
² A Bunda, de Carlos Drummond de Andrade;
³ Nada, de Roberto Bianchi, poeta uruguaio – http://banzeirotextual.blogspot.com.br/2012/01/roberto-bianchi-poeta-uruguaio-poema.html.
Um comentário:
poxa fui lé este texto hoje muito bom mesmo
e oferecimento especial para o aniversariante . brigado mesmo continue sempre sempre assim
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