Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?
Senhor Cidadão, de Tom Zé.
A melhor pessoa deita comigo.
Saí de casa e me encontrei.
Olhos Tristes, de Gabriel Miguel.
O sol mal deu as caras e me obriguei a levantar pra
ir ao banheiro e depois fazer café que tomei comendo pão de ontem. Saí sem fome
e sem vigor. As casas de minha rua podem ser bonitas. Talvez não mansões. Com
certeza não mansões. Há rebocadas, há pintadas. Tem uma com pálida tinta verde.
As ruas vizinhas têm casas pintadas tipo a minha.
Saí ao Posto de Saúde no bairro vizinho e estava de
férias. No dia seguinte fui à Unidade de Saúde de outro bairro e a consulta
seria para daqui a vinte dias. Melhor seria esperar o fim das férias. Mas não tive
vigor pra ir. Quando pude, estava fechado; pra sempre. Voltei pra casa. Dia seguinte
minha energia estava fraca. Pensando: Pra
ir não precisa pensar em ir ou querer ir; basta ir. Levantar sem pensar ou
desejar; basta levantar e ir. Força? Não espere força. Vá. Meu Deus, como
pode ser tão difícil? No posto de saúde aguardei na fila lendo Jessé Souza e
Noam Chomsky. O portão se abriu. Entramos. Sentei. A funcionária: “Toda
quinta-feira o atendimento é só pra gestante. Não marcamos consulta em hipótese
nenhuma; exceto em casos de emergência e mesmo assim só depois da última
grávida ter sido atendida”. Sem ânimo sequer para chorar, levantei e voltei pra
casa.
Na entrada do bairro sentei no meio fio, debaixo de
uma árvore. Os ruídos do trânsito, das pessoas, dos rádios não ouvi. Mas havia
ararinhas verdes na árvore e a elas escutei me exaltando a levantar e ir.
A igreja católica de meu bairro é consagrada a Nossa
Senhora dos Bons Costumes. Lá o padre me diz com voz lenta, morna:
- Por Nossa Senhora! A falta de pagar o Dízimo é o
egoísmo que nos afasta de Deus.
- Não pode ser realidade que é o dinheiro que nos
aproxima de Deus.
- Jesus, Maria e José! Não é o dinheiro, filho. É a
doação do amor...
- Eu dou amor a quem encontro.
- Virgem Maria! É pouco. Tem que dá dinheiro ou vai
para o purgatório.
Na rua olhei o céu. Moedas tilintavam no interior da
Casa Paroquial. Que santa música saía pela janela às ruas do bairro. Da arvore
bem-te-vis me consolam.
Em um muro, a propaganda da Funerária Nova Aliança
diz: “Velório Online”. Ah! A modernidade em seus avanços tecnológicos. Nem se
precisa mais sair de casa para velar o insigne partinte e confortar a cada
insigne ficante.
O pastor da ‘Igreja Assembleia de Deus é Amor
Universal da Maranata dos Batistas’ declara com voz gritante, falsamente
calorosa:
- Amém, Jesus! O não pagar o Dízimo é a falta de fé
que nos afasta de Deus.
- Por que só quem paga tem fé?
- Ô, glória! A fé exige entrega...
- Mas fé não se compra nem se paga...
- Aleluia! Ou paga o dízimo ou vai para o inferno.
Na rua olhei o céu. Moedas tilintavam no interior da
secretaria da igreja. Que angélica música saía pela janela às ruas do bairro. Da
árvore bem-te-vis me consolam enquanto os oitis na rua deixam suas folhas
conhecerem o asfalto e as calçadas dando cores verde, amarela e marrom ao cinza
dos chãos das ruas.
Em casa minha mãe disse:
- Vá trabalhá, fi. Isso de livros é só pra escola. E...
E já chega distudá. Tá véi pra isso.
Varri o quintal sem ela precisar mandar.
No banheiro mijei e lavei as mãos.
No meu quarto brinquei alguns minutos com minha mão
direita. Quando relaxado, dormi um pouco. Acordei, peguei um livro e deitei
tranquilo. Ao fim da tarde tomei meu banho pra escola.
Após as aulas fui com três colegas à pracinha do
bairro. Cada qual se encontrou com sua garota sem mais ouvirmos uns aos outros.
Só beijos e mãos.
Voltando a casa deitei comigo e com Caio Fernando
Abreu.
Sorri a pensar em seiva. Dormi... Seiva branca,
quente.
O sol brilhava fora da janela e eu só olhava a luz
crescendo no quintal. Até que não pude mais. Então: Levantar; banheiro; café;
alimentar-me.
- Vai procurá sirvíçu, meu fi. Estudá num é procê.
Varri o quintal, lavei banheiro, fui ao quarto
estudar.
Almoçando:
- Vai procurá sirvíçu. Seja hômi.
Saí a procurar serviço. Não encontrei.
Em casa tomei banho pra escola.
No recreio:
GTM matou LHC e se matou. Em idade, o menor matou o
maior. Mas antes mataram e feriram, a tiros e machadadas, alunos e funcionários.
E nenhuma escola pública do Brasil está segura; fruto da imitação brasileira
aos Estados Unidos.
Os nomes dos assassinos não merecem ficar na
história, mas Silmara Morais é digna. Ela e uma colega, ambas encarregadas da
merenda, abrigaram na cantina meio cento de alunos e fizeram barricada na porta
com o frízer. Em outro lugar das escolas uma professora fez barricada com o
próprio corpo na porta de sua sala; salvando a si e a sua turma. Há também a adolescente Rhyllary Barbosa,
faixa branca em jiu-jitsu. Superando o medo lutou contra LHC e conseguiu abrir
um portão para ela e outros alunos escaparem.
Agora estou deitado olhando o céu com nuvens claras e
escuras. Ao meu lado, com a mão esquerda debaixo do meu pescoço e acariciando
meus cabelos com a outra mão, está a melhor companhia e ela me incentiva a
levantar para acompanhá-la.
Olho minhas mãos e vejo minha seiva... Sorrio. Uma
seiva diferente dá que estou acostumado a tirar no meu quarto.
Ouço ararinhas me chamando de longe. Não, não são
histriônicas. Barulhentas, mas harmônicas. Pela primeira vez em muito tempo não
me sinto desanimado ou ansioso. Confortável é como me sinto.
Eu e ela nos levantamos. A acompanho escutando
ararinhas e bem-te-vis. Vejo folhas dos oitis forrarem meu caminho de verde,
amarelo e marrom.
Ofereço como presente aos aniversariantes:
Jeferson Adriano, Rafah Strobino, Maria Cloenes e Aléxia
Silva.
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo
domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura,
Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em
“Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”,
“Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor
dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”,
“Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua
Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do
Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões,
Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens:
Amanhecer na rua Uberaba – foto do autor.
Rubem de chapéu – foto de Vinícius Siman.
Manuscrito na tarde do dia dez e trabalhado entre os dias
15 e 17. Tudo em março de 2019.
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