domingo, 19 de abril de 2020

O MONSTRO E A MOCINHA



Era um final de tarde. Pelas ruas da cidade, a mocinha, dessas dos filmes dos anos sessenta, setenta. Com seus cabelos loiros compridos. As luxuosas roupas recatadas. A mocinha corria pelas ruas gritando:
- Socorro, socorro. Help me. Salvem-me.
E atrás dela: monstros. Dezenas, centenas, milhares.
- Grrr. Raurrr. – Movendo suas terríveis garras assustadoras.
E ela correndo com seus cabelos loiros ao vento. Passando pelas ruas com prédios de quatro, seis, dez andares; um ao lado do outro. Poucas árvores nas ruas. E ela gritando:
- Socorro, socorro. Help me. Salvem-me.
E correndo, correndo, correndo com seus cabelos loiros ao vento nas ruas desertas e os monstros atrás com suas mandíbulas escancaradas:
- Grrr. Raurrr.
E ela: “Aiiiiiiiiii. Aiiiiiiiiiiiiiiiiiii.”. – Correndo, correndo, correndo, correndo, correndo, correndo. Passando pelas ruas pedindo socorro. Mas ninguém a ajuda. Todos estavam dentro de seus apartamentos morrendo de medo, preocupados, protegendo-se. E ela gritando:
- Socorro, socoooooorro. Help me. Salvem-me.
E correndo, correndo. E os monstros atrás:
- Grrrr. Raurrrrrr.
Finalmente ela chega a sua rua. Rua com mansões. Só mansões. E ela gritando e os monstros atrás e ela correndo.
Na hora que ela chega na frente da casa onde morava começa a bater na porta: “Socooorro. Deixa-me entraaaaaar.”. Na sacada do terceiro andar chega uma pessoa. De roupão negro, olhos negros, cabelos negros úmidos pelo delicioso banho quente que acabara de tomar.
De cima olha para a mocinha na rua.
Embaixo, a mocinha vê sua empregada e lhe grita:
- Socorro. Abre a porta. Deixa-me entrar.
Essa pessoa, com um suave riso maligno:
- Sabe aquele papel em branco que assinou? Pois bem. Você passou para mim toda a sua riqueza. Todos os seus bens. Todas as suas propriedades. Tudo! Esta mansão agora é minha. Meu bem.
E os monstros se aproximam.
- Mas… Mas somos amigas. – Sem entender nem o sorriso e nem o brilho dos olhos da ex-empregada, continua: Deixa-me entrar. Salve-me. Heeelp me.
E os monstros se aproximam cada vez mais.
Com o seu negro roupão felpudo naquele frio fim de tarde segura um xícara de chocolate quente. No agora seu quarto lhe espera a taça de champagne. E a nova proprietária com seus cabelos negros úmidos de prazer, digo, de delicioso banho diz:
- Tá achando o quê? Coronavírus é brincadeira para estar na rua? Eu lhe disse: Não vote no Boçalnato… Moro não é herói… Fique em casa!
Enquanto isso, os monstros covid-19 agarram a mocinha e ela: “Aaaaaaii”.
- Tome esse vidro de cloroquina. – E rindo lhe joga o frasco.
A mocinha, feliz com o remédio receitado pelo Mito, toma o comprimido. Seus olhos escurecem, seu fígado deixa de funcionar, seu coração sofre uma parada.
Facilitado pela cloroquina o covid-19 devora a ex-mocinha de filme hollywoodiano.


Em seu roupão negro e sorrindo docemente no alto da sacada a jovem pergunta a você, sim a você que está lendo este cronto:
- Tem-se mantido em quarentena?
-
- Quer um pouco de cloroquina? Tenho mais.
-
- Tenho uma folha em branco… Assine-a, por favor, meu bem.




Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.
É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.
É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.
Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”.
Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagem do autor pelo autor.

Criado no final de tarde de 09 de abril de 2020. Trabalhado entre os dias 13 e 19 do mesmo mês e ano.

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