O primeiro surgiu no estacionamento do estádio de futebol
da cidade, o Ipatingão. Subiu a escadaria até a BR 381 onde se encontrou com o
segundo. Atravessaram-na e se encontraram com o terceiro na avenida Santa
Helena, no bairro Novo Cruzeiro. Caminharam pela rua São Marcos onde viram:
Entreolharam-se e continuaram a caminhar. Agora sem
sorrirem e ainda invisíveis às pessoas. Os cães de rua lhe abanavam o rabo e
recebiam um afago que lhes saciava a fome. Fome, ah fome! Apetite sem
esperança.
No Centro as folhas verdes dos oitis, comuns em
muitas cidades do país, estavam cinzas, como é de praxe em Ipatinga. A rua
Sabará estava com seus dois restaurantes vazios por dentro, mas com pequenas
filas para a compra do almoço. O bordel não tinha fila; estavam todos dentro.
Enquanto a gente atravessa a rua vê uma imensa fila
começando no Banco do Brasil, mas indo à Caixa Econômica, na rua de trás. O
auxílio é emergencial para os informais e sem importância para o presidente.
Sentamos no único banco da pracinha em frente ao Banco do Brasil; bem perto do
ipê ainda jovem.
- Quem somos nós? Ninguém. Apenas espectros da vida
observando os aspectos da sociedade e expectorando o ar da Grande Fábrica. – Visibilizam-se
e uma vez alojados no banco chegam dois que se acham alguéns com a camisa da
seleção brasileira. Ele com calça amarela, ela com saia verde e ambos com a
bandeira do Brasil como capa de supervilões¹.
- “A vida das pessoas, a vida real, e não a simples
existência física, começa em momentos diferentes”² e essa vida começa
geralmente em um parto de gêmeos; um de luz e outro de sombra. – Diz o espectro
1. – E quando parece ter nascido uma apenas é porque o outro foi absorvido como
num canibalismo no útero da psique. Quem devora quem?
- Gêmeos? – Diz a boçalnariana. – Mas a maioria dos
nascimentos é de uma pessoa só…
- Atente-se para nossa fala e verá a que parto nos
referimos. – Responde o espectro 2. – Se fosse luz solar a sombra perderia,
pois nada mais é que ausência de luz; não uma existência por si. Mas sendo
psique…
- Sendo psique, mesmo quando uma é devorada continua
existindo na outra. – Fala o espectro 3, um professor inteligente. – Como uma
metade sobressaindo e outra sobressalente…
- Metade?!? – Retoma a fala o espectro 1. – Na
política brasileira mais da metade, por escolha ou por omissão, preferiu as
trevas à luz. Dentre cinco professores universitários, dois engenheiros e um
idiota, elegeram este último. Preferiram o ódio e a ignorância ao amor e a
verdade.
- É… Brasil, América, Mundo.
- No ano dois do atual governo brasileiro um desastre
para o povo se inaugura a cada dia; desde o primeiro dia; desde antes disso, na
verdade. Um raio escuro a obscurecer a aurora. – Pausa para suspirar. – No dia
do idoso foi aprovada a reforma da previdência. Mas prevenido fora o povo de
que viriam deformas e ainda assim escolheram a metade sombria.
- Eu avisei.
- Eu avisei.
- Eu avisei.
Em uníssono exclamaram os espectros. E diante do
silêncio dos bovinos o espectro 2 continua:
- Estamos aqui de máscaras. Porque vocês dois estão
sem?
- Eu não sou inteligente. Meu QI é cento e vinte. Mas
duas coisas eu sei. – Diz o boçalnariano. – A primeira é que esse vírus é
mentira. Não há covid-19.
- Vocês são eleitores do Boçalnato...
- Como você sabe? – Pergunta enquanto ajeita a saia.
Não sabe que suas roupas e falas denunciam.
- Não vim falar de política. Mas se quiser a gente
discute. – Fala dando uma leve coçada no saco por baixo da calça amarela. – A
outra coisa que sei é: Boçalnato é inteligente; sabe o que está fazendo e
protege bem a nação.
- Não há o que discutir. Você disse ser de baixa
inteligência, e provou isso ao falar do covid-19 e do Boçalnato.
- Já nós somos intelectuais.
- Diálogos se tornam impossíveis nesses casos.
Apresentamos fatos e vocês não param para pensar.
A mulher põe a mão no peito, chocada. O homem dá um
passo em nossa direção, com os punhos cerrados. Nós nos levantamos, sérios e
serenos. Ela pega o celular e digita uma mensagem no watzap. O homem fica
imóvel, esperando. Nós sentamos e falamos entre nós.
Aparecem cinco grandões e ficam atrás do casal.
Pegamos nossos livros e eles saem gritando.
Ofereço como presente aos aniversariantes:
Robinson Ayres, Rosângela Sulidade, Beto de Faria, Sinésio Bina,
Geraldo Valentim e Filipe Boanerges.
Recomendo a leitura de:
“Robusta Escassez”, de António MR Martins:
“Palavra 43: Semente”, de Caio Riter:
“Deus Menina”, de Eraldo Maia:
¹ Diquinha de Português – Super e hífen:
O prefixo latino significa: algo tem posição superior ou é excesso. E
somente recebe hífen se a palavra seguinte começa com “-r” ou “-h”. Para as
outras letras não se usa hífen.
Exemplos com “-r” e “-h”: super-homem, super-herói, super-realista.
Exemplos com outras letras: superalimentação, supervilão, superlotado.
² KING, Stephen. A Metade Sombria. [Trad. Regiane Winariki].
Rio de Janeiro: Suma, 2019. P. 13.
Rubem Leite é escritor,
poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA
aRTEIRO.
É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.
É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do
Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua
Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.
Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente
em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em
Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte
da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”.
Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG
(representando a Literatura).
Imagens: fotos tiradas pelo autor.
Manuscrito em 04 de outubro de 2019. Trabalhado entre os dias 27 de
março e 17 de maio de 2020.
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