Retrato dos corações:
PERIGO!
Este cronto é o último de uma
novena a pensar criticamente a Bíblia. Se isso te amedronta pare por aqui. Está
avisade. Se continuar será por sua conta e risco. Não me responsabilizo pelo
desconforto que sentirá, pois é difícil não ser misantropo quando se tem
neurônios funcionais.
Se o marido provar que não se
casara com uma virgem, levará a jovem até a porta da casa de seu pai e os
homens da cidade a apedrejarão até que morra.
(Deuteronômio 22,
20-21)¹
Dona Júlia é dona de casa. Estudou até o
final do ensino médio e quatro anos depois casou-se com Jorge, de trinta e um
anos na ocasião. Agora, aos trinta, tem oito anos de casada.
Está a maquiar-se com atenção redobrada no
olho esquerdo. Pelo espelho vê a filha sentada na cama:
- Anjinho! – A mãe fala para a menina de
cinco anos. – Fecha as pernas porque moça educada não senta de pernas abertas.
Isso, querida. Agora fica quietinha enquanto a mamãe pega o lacinho cor de rosa
para minha borboletinha.
- Marquinhos! Comporte-se! Ai, não. Você já
sujou a camisa! Meninos são tão irrequietos...
- Mamãe! – Diz a filha, Carolina. – Quero a
camisa do Pawer Ranger...
- Não, amor. Não é para você.
- Mas Marquinhos usa!?!
- Isso é roupa de menino. Menininhas usam
roupas da Barbie.
Rapidinho terminaram de aprontar-se e
saíram para a festinha.
- Mamãe, quero fazer xixi.
- Vai ali, atrás da árvore, Marquinhos.
- Também quero fazer xixi, mamãe.
- Espere um instante querida. Em cinco minutos
chegamos na casa de Mariana e lá você poderá fazer xixi.
- Mas o Marquinhos pode...
- Marquinhos é menino.
A festa foi divertida. Os meninos correndo
uns atrás do outro, derrubando-se uns aos outros no chão e como era uma casa
ainda subiram nas árvores. As meninas correram um pouco, mas disseram as mães,
isso não é comportamento de mocinhas e foram para a varanda brincarem de
bonecas.
O aniversário de quinze anos de Carolina
foi muito bonito. Muitas amigas, muitos rapazes, os amigos dos pais.
Já sei que não será estranho o que virá a
seguir.
Para burlar a vigilância dos pais de
Carolina, Renato subornou Marcos para não contar que ela beberia pela primeira
vez e, claro, às escondidas.
Ao fim da festa Carolina voltou para a casa
com o namorado, rapaz cinco anos mais velho e de boa família. E todo mundo sabe
qual é o verdadeiro sinônimo de boa família...
No carro disse para a garota deixar a
janela aberta que o verdadeiro presente seria uma surpresa que ele daria quando
estivessem a sós no quarto de Carolina.
Um belo quarto rosado, com ursinhos,
bonecas... Uma frescura.
Na porta da pequena mansão, Renato abriu a
porta do carro para Carolina descer e Marcos – sem saber dos planos do...
digamos cunhado – ajudou rindo a irmã entrar em casa para os pais não virem que
estava bêbada.
No quarto, trancou a porta, abriu a janela,
tirou a roupa e deitou para dormir. Ela nem pensava no que viria depois. Embriagada,
não entendia que aquela noite não mais seria virgem.
O jovem cidadão de bem pulou o muro,
brincou com os cachorros, foi à janela da Carolina, entrou, deu um pouco mais
de bebida para a namoradinha que se resguardava pelo medo culturado pela
família. Sem camisinha fez o que quis e foi embora.
Nove meses depois nasceu Ana.
Mas antes:
No primeiro mês Renato foi perdendo o
interesse pela assustada Carolina: Sexo fora do casamento? Puta!
No terceiro mês ele terminou com a
apavorada Carolina.
No quinto mês não tinha mais como esconder
a barriga de sua família. Na mesma semana Renato foi para Estados Unidos. Por que
será?
O pai comprou um apartamento de dois
quartos em outra cidade, bem longe. Para a Vergonha parir e cuidar da criança
sem ficar expondo a cria para todo mundo.
Dona Júlia mandava uma mesada para a
Vergonha e sua cria não passarem necessidade... Amorosa! Assim se sentia quando
ajoelhava para rezar.
Sem ingressar na faculdade, apesar de
terminar o ensino médio, Carolina tornou-se vendedora de uma loja. E com a
mesada completando o seu salário foi sobrevivendo.
Aninha estava sempre limpa, com boa
alimentação, bons materiais escolares na escola pública.
Ana é o nome sem sobrenome paterno e é
assim chamada na escola e na vizinhança. Nunca viu nenhum dos avós nem tios.
Em casa, cada fim de mês, quando chegam a
mesada e o salário, Carolina paga as contas, faz as compras para o mês, guarda
um pouco, quase nada, para isso ou aquilo que venham necessitar, compra alguma
bebida e mais ou menos na metade da garrafa muda o nome da filha para Castigo e
nos dias seguintes ninguém via os roxos em suas costas.
Ana fez quinze anos com uma festinha sem
baile. Também deixou de ser virgem naquela noite. Após uns tapas na cara
terminou a gestação e na casa passaram a morar Carolina, Ana e Luiza.
Thiago, sendo pobre, não teve como fugir e
pagava a pensão estipulada pela justiça e só via filha contra a vontade.
Dona Júlia, Carolina, Ana e Luiza não foram
assassinadas, não morreram, mas estão vivas?
¹ Violência contra a mulher é o ensinamento de Deuteronômio 22,
20-29.
Ofereço como presente aos aniversariantes:
Alex Pontes e Sarah Lombello.
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog
literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e
Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do
Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua
Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos
científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua
Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como
é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e
“Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro
Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens – fotos do autor.
Escrito entre os dias 05 de maio e 18 de julho de 2021.
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