ou FALO DE MIM, NÃO DE VOCÊ
Um dia ainda hei de ser silêncio.
É tão difícil dizer o que fala
Não o que me sentem pretenso
Ah, boca! Vê se te cala.
- ... se você que parecer que é jovem...
- Não gosto da juventude. - Olha-me escandalizada - Não quero ser jovem.
Queria silêncio, mas era o que não tinha nas proximidades.
- Faço e ajo como me sinto bem sem ferir ninguém. E se machuco não é intencional. É cuidar de mim... ou tentar!
- Não gosta dos jovens?!?
- O que não gosto é da estupidez de quem se acha sabido. - Transfiro meu olhar dos olhos dela para ver a platinha no pequeno vaso sem paralisar minha fala. - Quando jovem sabia de minha ignorância pela falta de vivência, mas não me era possível deixar de agir com a presunção juvenil. - Meus olhos voltam aos dela. - O que eram fome... miséria... pele preta... ser mulher... ser rico... ser intelectual... ser plebe... ser elite... Nada sabia e agia como se soubesse.
Ai, como queria silêncio. Sossego.
- Hoje sinto mais dores e mais cansaço. Pouco aprendi nesse passar de anos, mas vivi e vi muitas realidades. Minha estupidez é menor.
- Os alunos da sala... não gostam de você. Reclama. que não entendem nada que você fala. - Sorri. - Desse jeito vou removê-lo para outra escola.
- Não, não vai. Não sou seu funcionário, mas da prefeitura. E é fácil resolver esse problema. Se a turma não me quer é só ligar para a Secretaria Municipal de Educação e pedir para a próxima segunda-feira um novo professor de Português para ela.
- Calma, professor. Também não é assim. Não precisamos exagerar...
- Estou calmo. Só não faço questão de nada ou de ninguém.
Sábado e domingo.
Cansado, fraco, sonolento. A espera do tudo outra vez.
- Vamos ler em casa o livro...
- Num leio nem na prova... Acha que vou lê incasa?
Outro dia e a mesma coisa.
- Vamos começar na próxima semana a Operação Tartaruga.
- Tartaruga Ninja? - Diz uma que não sabe ouvir; apenas falar sem nunca dizer. Continuo como se não a ouvira.
- As aulas serão de meia hora, terminando na hora do recreio.
Gritaria de festejo; sem nada de compreensão.
- Desse modo serão dias letivos; menores, mas sem obrigação de reposição.
Mais gritaria vã.
- Nosso objetivo é combater o descaso da prefeitura com a Educação. Estamos lutando não só por nós, professores efetivos, mas também pelos contratados porque...
Calo-me porque não me escutam; sequer ouvem. Quando abaixam a voz o suficiente para eu poder continuar:
- Lutamos pelos contratados porque não têm a nossa estabilidade; pelo pessoal da limpeza, da merenda, por vocês...
A vozeria retorna e me calo, cansado. Quando possível:
- Lutamos pelo cumprimento do nosso piso salarial, pela infraestrutura da educação e...
Fecho minha boca por não ser ouvido.
- Faz parte da infraestrutura ter tinta para pincel, que frequentemente percebem que não tenho; melhoria nos ônibus escolares; merenda...
- Vai ter feijoada? - Fala outra incapaz sequer de escutar.
- Gente! Isso não é festa, feriado ou férias. Não é diversão. É luta...
Mais barulho.
- É luta. E mesmo quando paramos não deixamos de ensinar. Na Operação Tartaruga, numa paralisação ou numa greve estamos ensinando a se defenderem. Daqui a alguns anos estarão trabalhando e se não aprenderem terão que aceitar qualquer coisa. NUNCA ganhamos direitos. SEMPRE o conquistamos.
Mais barulhos. Calo-me cansado. Alguns rostos irritados com os colegas. É hora de mudar de sala. Onde consigo dizer para quase todos.
Em casa.
- A família não se compra com simpatia e os "amigos" se vendem por conveniência.
Gosto dessa fala e o que digo a seguir foi mal compreendido ou não soube expressar:
- Não busco amizade de ninguém. Não sou de recusar amizade. Gosta de mim? Bom. Não gosta? Bom. Sou árvore. Não dou nada a ninguém nem tomo. Recebo sol, água. Produzo flores e frutas. Se me admiram: consomem minhas frutas, admiram minhas flores, deleitam-se com minha sombra tanto faz. Produzo por ser minha natureza. Se me desprezam não tem importância. Há outras árvores por aí para se abrigarem. Vão em paz. Estou sereno.
Ignorada minha explicação peço licença e vou pro meu quarto.
Leio no Caralivro "O aspecto mais perigoso da religião é sua tendência a glorificar o absurdo e a justificar o abominável". Dizem ser de Stilfyn Emerys.
- Estes têm feito suas reuniões dominicais e outras durante a semana para louvar e engrandecer o deus da mentira que dá testemunho de prosperidade, comprando imóveis com dinheiro vivo. E os comunistas? O que tem feito para conscientizar as pessoas? Estou preocupada!
- Companheira de luta, não sou comunista, socialista e ainda menos capitalista. No máximo posso dizer que sou de esquerda. Mesmo que muitas vezes me percebo um zero à esquerda. Sendo escritor procuro apresentar histórias para pensarem. Sendo professor procuro promover reflexões. Mas o número de igrejas supera em muito o número de alunos (nem digo turmas...) que tenho. O Benito professor e o Benito escritor oferecem o que pensar enquanto religiões impõem o que pensar. Creio que outros professores e escritores passam pelo mesmo problema. Mas de políticos, desconfio.
- Benito, eu deveria ter colocado aspas na palavra comunista, para ser mais clara, pois é assim que os extremistas da direita nos chamam. Concordo com você e creio que a arte é a forma de militância mais eficaz. Mas continuo muito preocupada.
- Irmã de luta na verdade entendi sua fala. O que quis dizer foi que os lutadores pelo bem comum ou os que "não praticam o que é aceito/exigido" têm pouco espaço para falar. Estou desde o início do ano escolar explicando a importância de respeitar a diversidade, as religiões de matrizes africanas/indígenas e até hoje ainda falam mal dessas pessoas.
Após sua compreensão vou ao jardim. Lá concluo:
Da insignificância
Sonhos falsos
Para a cura
Arvorear-se
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Rubem Leite
Foto também do autor.
Escrito entre 20 de agosto e 04 de setembro de 2022.
3 comentários:
Boa tarde. Parabéns pela iniciativa. Deus o abençoe sempre.
Excelente reflexão.
Professor Ronaldo Ribeiro Gonzaga, Escola Estadual Professora Hilda de Araújo Osório Zauza.
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