"Meus ancestrais me trouxeram até aqui e minha descendência me levará adiante"¹.
O que fazer se não deixo descendência? Nunca tive, não tenho e nem terei.
Não quero deixar a ninguém a miséria humana; a miséria da condição humana. Já basta as que há.
O máximo a que me permito é amenizar a humanidade dos que já estão aqui.
É duro, não belo ser humano.
Espero que os que cuido não me culpem por continuarem aqui. Da mesma forma que não culpo meus ancestrais. Simplesmente seguiram seus instintos a anelos de bons frutos.
E eu?
Ignoro meus instintos, não sexuais. Só os reprodutivos. E conservo o anelo de suavizar a humanidade dos meus descendentes de outros genes.
"El día se me echa encima con su sentencia: habrá que levantarse y afrontar el trabajo diario, los saludos matinales, las sonrisas torcidas"².
_ Bom dia, professor Benito. - Duas coisas me dão muito, muito medo: Sorriso e palavras gentis. Principalmente, mas não somente, de quem não me fez/faz bem.
- Bom dia, diretora.
_ Pra quem está sempre com uma bengala... - um risinho silencioso de deboche - vejo você sempre de cócoras...
Respondo ou não?
_ Se fosse porque acho elegante usaria uma de madeira, pois artesanal me agrada. Minhas ossatura e musculatura estão boas. E já lhe disse o motivo deste apoio. Se a senhora não ouviu...
A pedagoga que a acompanha intervém:
_ O professor tem labirintite. Assim tem baixo equilíbrio.
Toca o sinal para o início das aulas. - Com licença. - Levanto-me e vou pra sala de aula.
_ Professor! - Um estudante me diz: Nós queremos uma educação para ajudar a pensar e não que nós ensine a obedecer.
_ Nós quem?
_ A turma...
_ Não! No geral a maioria aqui não passa de aluno. Em toda esta escola há pouquíssimos estudantes. E sobre pensar o senhor não me viu batalhar o ano inteiro para conduzi-los à reflexão? Todo o ano letivo ouvi dos alunos "Macumba, Exu, bruxaria etc." como coisas más? E todo o ano letivo dizendo-lhes "meu direito termina quando começa o do outro", "ouçam para compreender, não para apenas responder". Ninguém teme Loki ou Hades. Por quê? Porque estes são europeus, brancos. Enquanto os orixas são dos povos negros do continente - continente, não um só país, mas muitos países com culturas e religiões diferentes -. Os senhores temem as bruxas que eram as sábias e intelectuais da época. As equivalentes de hoje a médicas, biólogas, químicas, conselheiras, praticamente juízas. Mas não têm medo das religiões que as prenderam, censuram, torturam e as mataram das formas mais sofridas que conseguiram imaginar.
_ O senhor vive falando mal do cristianismo...
_ Não critico o cristianismo. Respeito muitíssimo a Jesus Cristo. Eu digo é dos cristãos, pois seus comportamentos comprovam o quanto duvidam de Jesus; e dos que acreditam... o quanto odeiam a Cristo.
Fica um silêncio que Benito aproveita para olhar nos olhos dos presentes. Foram poucos segundos. A aula termina, o tempo passa e chega os últimos minutos da quinta aula.
_ Graças a Deus estou livre desse inferno.
Com a faca traspassada em seu coração:
_ O senhor me acha um demônio?...
_ Não, professor. É que...
_ No inferno só há demônios e diabos. O senhor crê que é isso que professores vêm fazer na escola? Infernizar aluno? Não é para compartilhar conhecimentos? Fazer pensar, refletir?
_ Não foi isso que quis falar.
_ Mas foi o que disse.
Segurando as lágrimas tolas que queriam sair:
_ Ah. Como quero fazer isso: ensinar a ver o que olham, escutar o que ouvem. A compreenderem o que sentem. Ah. Quantos professores querem praticar isso. Mas três coisas nos impedem: as religiões, a política e as famílias moldadas pelas religiões.
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Texto e fotos do autor: Rubem Leite.
¹ BOTELHO, Denise. Quadro negro de recordações. NEGRAS (In)CONFIDÊNCIAS. [Org. Benilda Brito e Valdecir Nascimento]. Belo Horizonte: Mazza Edições. 2013. P. 39.
² PAZ, Octavio. Trabajos del poeta ¿ÁGUILA O SOL? D.F. México: Tezontle, 2001. P. 24.
Escrito e trabalhado entre 05 e 11 de novembro de 2022.
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