segunda-feira, 9 de setembro de 2013

MISSIVAS

Obax anafisa.


Ipatinga, dia d do mês m do ano a.


Caríssimo Thiago,


Como tem passado? Aqui o tempo está indeciso entre calor e frio, mas tenho observado nos últimos anos que praticamente todo o segundo semestre é assim. Penso, sem saber, se é ou não por causa das chuvas.
Sabe! Inversamente ao que me falou sobre os pais de alunos da escola onde você trabalha ou à Vida Maria minha mãe e suas irmãs foram impulsionadas a estudarem pelos pais delas. Todos os filhos (homens) formaram no que hoje seria Técnico em Contabilidade e todas as filhas formaram em Magistério. Minha mãe teve os dois cursos. E para terem uma ideia do quão inusitado basta saber que minha mãe tem oitenta e quatro anos. Meu avô dizia que elas não precisariam casar para se sustentarem porque elas já tinham marido (o diploma).
E assim como você eu me sinto muito ferido ou ao menos desconfortável em ver o curral que vivemos. E praticamente todos satisfeitos em ser um boizinho, uma vaquinha. Vez ou outra algum muge,  mas retorna ao pasto. E me sinto muito satisfeito em morar em Ipatinga, lugar onde os artistas são abundantes em quantidade e qualidade e se movem não sendo apenas “... uma gente que ri \ quando deve chorar \ e não vive, apenas agüenta”, de Fernando Brant e Milton Nascimento. Aliás, é por isso que escrevo meu crontos.
Mas não ser gado é difícil quando se é abordado por policiais que já saem da viatura com arma na mão para te revistar simplesmente porque te viu na rua. Ou te perguntam grosseiramente onde você mora. Ou depois de 20 minutos olhando interrompem uma aula de teatro (acho que sabe que eu sou professor de teatro) feita em uma rotatória porque, não tenho dúvida, faltando o que fazer atrapalham quem tem. Fazer o quê, argumentar? Contra armas, gritos e falta do que fazer não há diálogo. Se se vive assim uma vida toda não se perde tempo com o infrutífero. Eu reajo como posso: na arte, pela arte, com arte. Escrita, principalmente.


Abraços,
Benito!


São Bernardo do Campo, outro dia d dos mesmos mês m do ano a


Benito,

É noiz! Aqui também o clima está estranho, mas acho que mais frio que aí e para me aquecer... um pãozim de queijim vegano com café.
É sempre bom ler os seus crontos. Até mesmo quando tem menos conflito que história... como cartas, por exemplo.
Meu bisavô, morando na roça, chegava a manter a professora na casa dele, para que as crianças do local tivessem escola, e assim seus filhos conseguiram ter a quarta série primária do tempo deles. Meu avô se tornou ferreiro e sonhava que os filhos estudassem, mas a escola fechou. Então o homem os ensinava em casa, mas não viveu para ver um filho sequer tirar a quarta série. Os filhos, por sua vez, não desistiram de buscar um pouco de estudo como podiam. Foi assim que meu pai, mesmo tendo estudado pouco, foi metalúrgico e agora “velho” está fazendo um curso superior. E nós, seus filhos, já estamos nos graduando e buscamos outras graduações. Prova de que a semente de cultura que começou com meu bisavô tem rendido frutos. E se ele também achasse (como mostra o filme Vida Maria) que estudar era perda de tempo?
E minha mãe? A mãe dela também foi um exemplo de superação para mim, pois apesar das adversidades e pobreza ela era e é, na minha visão, uma verdadeira professora, incentivadora, criativa. A minha avó ficou órfã de pai e mãe criança ainda e foi criada pela sua madrinha. E como empregada na casa aprendeu muito com as filhas dela que eram professoras e sem ir à escola aprendeu a ler e escrever. Mais tarde entrou para a escola e se formou professora.
Já meu avô foi super rígido e não deixava minha mãe e meus tios estudarem, dizendo que era coisa de malandro, de quem não queria trabalhar e os espancava muito. Mas minha avó sabiamente ensinou os filhos... O tempo passou, nos nascemos e quando ficávamos em sua casa nas férias nos colocava para brincar de aulinha, o quadro negro era a porta do quarto e usava como giz um pedaço de carvão tirado do fogão a lenha. Para nós, seus netos não havia coisa melhor e passávamos todas as férias ao lado de minha avó, enquanto nos ensinava as tarefas, bordados para as meninas e aos meninos cuidar dos bichos e da horta. Fazia biscoitos... Mas a parte melhor era participar das aulinhas e no final ter o lanche maravilhoso que ela fazia.
Imagina se minha avó obedecesse ao meu avô e não deixasse minha mãe e seus irmãos aprenderem? Mesmo debaixo de tanta surra ela lhes deu a maior herança que alguém poderia receber; a chance de aprender e “desenhar” as letras, números e as palavras.


Thiago


Ofereço como presente de aniversário:
Mônica Novais, Emília Domingues, Ben-Hur C. Prates, Wantuil J. Sousa, Jamilboali Mattar, Wagner Gomes, Lucy Cristina, Jéferson Santos, Wiliam Garcia e whêsdras Henrique.

Estou contente! Em breve o ebook bilingue (espanhol-português) de poemas URDIDUMBRE – URDUME, pela editora Círculo de Artes. Espero que adquira e creio que vai gostar.


Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.


Escrito entre 07 de fevereiro e 09 de setembro de 2013.

Um comentário:

Monica Novaes disse...

Uaus...
Texto magnífico, retrata muito minha personalidade e esta constante inconformidade com a inércia do rebanho. Viva os bons frutos semeados e que continuem a florir espécies raras como ti, meu amigo!

Um grande beijo e muito obrigada pelo presente!