domingo, 3 de fevereiro de 2019

DAS VANTAGENS DE SER HOMEM – parte 03


ou ONDE ESTOU
ou ainda ARTERRESILIÊNCIA


“Todo dia algo é acrescentado ao nosso saber,
desde que suportemos as dores.”.
Samuel Beckett.

Ay de nosotros se no fueran las artes. Las palabras de las artes, las imágenes de las artes, las músicas de las artes, las escenas de las artes. Arte es lo que nos consuela, expurga, fortalece. Arte es resiliencia.


Pingos de tinta cinza com azuis celeste e marinho formavam o céu daquele fim de tarde.
- Libriano, é terrível que ninguém no Vale do Aço se manifestou até agora contra o acidente em Brumadinho.
- Watzap, o que é manifestar, você sabe?
- Ham...
- Segundo o Michaelis manifestar tem três significados básicos: 1. Ato ou efeito de manifestar(-se); 2. Expressão, revelação; 3. Expressão pública e coletiva de opiniões ou sentimentos. Nesse último sentido, que é também o mais reconhecido e valorizado, a primeira manifestação – o importante “ato performático: quanto VALE a vida?” – foi organizada pela atriz e artesã Denise Silva com o apoio do artista Sinésio Bina; e aconteceu no sétimo dia do crime ambiental cometido pela Vale.
- Legal! Pelo menos alguém está fazendo alguma coisa pelo acidente em Brumadinho.
- Não foi acidente; foi crime ambiental e humano. É a tragédia da Vale; não da cidade porque ela não tem culpa de nada.
- Porém os artistas pediram apoio a políticos e sindicatos, né?
- Não, claro que não. Foi uma manifestação feita por artistas e pelo povo. Mas não buscamos apoio de entidades nem de políticos. Não os rejeitamos, claro, mas é manifestação dos artistas, não deles. Outra coisa mais, não se esqueça dos primeiros significados de “manifestação”: expressão, revelação e ato de manifestar. Veja que as primeiras manifestações no Vale do Aço foram feitas pelos escritores. Nena de Castro fez vários poemas sobre o Crime da Vale em Brumadinho. O autor deste cronto fez várias aldravias e quadras. Flávia Frazão também não se calou. E também outros jardineiros da palavra igualmente lamentaram o lixo tóxico a destruir toda a região, denunciaram a Vale e apoiaram as vítimas e seus familiares através de suas literaturas. Watzap, saiba que artista  – e não apenas, cantor, poeta, pintor etc. –, mas artista de verdade é sempre engajado e nunca coadjuvante na sociedade.
- Mas literatura não conta. Ninguém lê...
- Se é o que você pensa, então tchau, Watzap. Agora tenho que voltar à escrita e aos planos de aula.
A olhar pela porta da sala, Libriano pensa no conteúdo de duas de suas aldravias.
  
A primeira lhe produziu a reflexão:
Ai de nós se não fossem as artes. As palavras das artes, as imagens das artes, as músicas das artes, as cenas e danças das artes. Arte é o que nos consola, expurga, fortalece. Arte é resiliência.
Interessante como algumas músicas, poemas ou outras artes podem comunicar-se conosco. A música “Retrato em Branco e Preto”, na voz de Ney Matogrosso serviu para exorcizar de mim a amargura de um fim de relacionamento. E a música “Carinhoso”, de Pixinguinha foi cantada por minha mãe para meu padrinho enquanto ele falecia. Linda a imagem dele tocando uma imaginária clarineta ‘acompanhando’ a música e o repouso das mãos segundos antes do desencarne.
Enquanto a segunda aldravia lhe disse:
É um poema pensando em Janos, em aulas de História e a “retrospectiva do futuro”...
No último dia de janeiro – cujo nome vem do titã que tinha duas caras, uma na frente do rosto e outra atrás; vendo o porvir e o antevir. – pensei no paralelo entre a História utilizar-se do passado para mostrar o futuro.

Enquanto isso, em outro canto da cidade:
- Vou embora.
- Para onde?
- Por aqui mesmo, no Vale do Aço. Sabe que sou maluco. Quando me dá gana, eu me perco no mundo.
- Tchau. Que você se encontre. Adeus.
As ideias de Adulto e de Moço nunca se esbarraram. O coração, sim. Mas por curto momento. Mas como não há bem que nunca acabe... Moço veio e se foi outras vezes. E brigaram outras tantas.
Uma semana, duas. Três meses, quatro.
O companheiro lhe telefonou três vezes. Na primeira zombou da derrota de seu time de futebol; na segunda para preparar algo que alguém buscará e na terceira para perguntar se pegaram.
Nada mais se interessou.
Num final de tarde nublada chega de suas viagens rave.
Pega sua chave, abre o portão. Estranha a porta da sala trancada; destranca e entra.
Vazio.
De gente, vazia. Os móveis nos lugares e só. A geladeira desligada. Olha no armário e encontra feijão.
Enquanto o cozinha toma um banho e depois liga o computador. Sonha com a cama onde dormirá até a chegada do Adulto. Tempera o feijão e enquanto come se pergunta se ele viajara. Pouco curioso em saber onde fora, pensa: “Pouco provável. Ele não gosta de viajar.” e dorme.
Acorda no dia seguinte. E nenhum sinal do namorado.
Sai para a rua. Uma vizinha enxerida:
- Uai! Oncetava?
- Por aí. Sabe onde meu amigo está?
- Não está sabendo? – Pausa para o estranhamento do Moço. – Ele morreu já tem quase um mês.
- O quê?
- Você passou todo esse tempão sem procurar conversar com ele?

Sem sequer perguntar de que morrera, deixa a indignada e vai ao cemitério. Mas não me encontro ali. É do além que conto o ocorrido. A propósito, calculo que já percebeu que o narrador sou eu, o Adulto. E se falei na terceira pessoa foi para promover um singelo mistério. – Rirri. – E falando do futuro visto pelo passado conto mais:
Do Cemitério, Moço volta ao apartamento e fica até ser convidado a retirar-se por minha família. Nesse meio tempo se encontra com Libriano no Feirarte.
- Você continuará com Janice?
- Nunca namoramos.
- Até parece. Como todo Libriano, você tem uma longa “lista de espera” e vai ficar sem sexo?
A resposta é olhar uma árvore enquanto bebe seu coquetel.
- Com quem está dormindo, então?
- Comigo.
- Não se aproveita dela?
No lugar de responder pensa nos seus livros que têm muito mais a dizer. Moço dá uma pausa, fala baixo e em tom grave:
- Posso dormir em sua casa? Você sabe que meu namorado morreu e terei que ir para outro lugar.
Antes de responder pensa nos seus livros e no que têm a dizer. No céu daquele meio de tarde há pingos de tinta cinza com azuis celeste e marinho.


Ofereço como presente aos aniversariantes:
Marcos Vaz e Fernando Freitas.

Recomendo a leitura de “Infrequências”, de António MR Martins:

 Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve ao Ad Substantiam ocasionalmente às quintas-feiras; e todo domingo no seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
 Imagens:
Cartazes – Manifestação em Ipatinga sobre o crime ambiental em Brumadinho (jan 2019).
Foto do Vinícius Siman.

Escrito na noite de 30 de março de 2018; trabalhado inicialmente nos dias 24 de abril e 01 e 03 de maio do mesmo ano. O trabalho final foi entre os dias 29 de janeiro e 03 de fevereiro de 2019.

Um comentário:

MM disse...

Adorei Rubem,Brillante."Não foi crimen ambiental e humano.😢😢😢