segunda-feira, 9 de abril de 2012

SILÊNCIO

Obax anafisa.

Veja os crontos “Ultrapassado!” e “Anjinho da Clarineta”,

postados aqui, no aRTISTA e aRTEIRO, nas duas semanas anteriores.

Escrevo ouvindo Outono, de Vivaldi, e Silêncio, de Beethoven.

Assim como outras músicas dos dois.

E se puder ler ouvindo-as talvez a gente converse melhor.


No meu apartamento peguei o comer e beber e desci à praça para encontrar os meus amigos hippies. Ouvimos Campos cantar, Carmito nos falar do Uruguai, recitar poemas e eu contar minha história. Queria que eles fossem para meu apartamento comigo, mas temi o dia seguinte. Eu, Benito, até eu temi o amanhã. E perdi talvez uma oportunidade de crescer amigos. Mas um dia ainda conseguirei não estar de corpo para estar presente. Um dia serei silêncio.

Quem é Campos? Ele é “Às onze da manhã o sol ardia. Com o paletó no braço, Fabián foi caminhando para o rio. Quando enfim chegou, deitou na grama, entre dois pinheiros ainda vigorosos. Esse rio, que quase não corria, tinha contudo seu encanto. Talvez porque quisesse ser um lago e não era. Seu movimento só era visível na margem, onde de vez em quando vinha lamber a escassa areia”¹.

Amanheceu. Campos e Carmo se levantaram do monumento onde dormiram e foram procurar meios de vender seus artesanatos. Mas o que sei de Campos? Nada. Ou tão pouco.

Cinco anos. Com essa idade Vivaldinho sabe pegar ônibus. Não sabe ler, mas sabe reconhecer os “desenhos” na placa do itinerário para andar na cidade.

Vivaldi Campos é de Joinville e de Santa Catarina se tornou do mundo.

Numa Sexta-Feira da Paixão saiu para comprar pão e um sujeito magro lhe pede dinheiro para comprar cigarros e fósforo. Interessante, que o cara nem tentou disfarçar o uso do dinheiro. Foi sincero e isso, talvez, o cativou em parte.

- Eu não fumo, mas vem comigo à padaria, que lá eu lhe compro.

O pedinte aponta para direção contrária e diz querer ir para lá.

- Não tenho trocado. Terei que comprar meu pão para lhe dar o que quer.

Sem outra opção, concorda e caminham lado a lado. Campos ouvindo o cara se dizer satisfeito por não ter-lhe recusado o aperto de mão. Parece que muita gente não aceita tocar-lhe, como se fosse algo pestilento.

O estranho dá uma estacada por ver no chão uma nota de R$10,00. Pega sorrindo e diz que Campos lhe deu sorte.

- Qual é seu nome? – Pergunta ao outro se afastar. A resposta é um sorriso – Eu sou Campos. Vivaldi Campos. E você?

O rapaz responde e com o nome dele na cabeça, o nosso jovem pensa que seria legal se tornarem recém conhecidos. Quem sabe futuros amigos.




Carmo é “Um preso sonhou que estava preso. No chão do sonho corria uma lagartixa; no chão de verdade um rato o fitava. (...) Depois de incontáveis sonhos e vigílias, chegou uma tarde em que, dormindo, foi sacudido sem a brutalidade habitual, e um guarda o mandou levantar porque lhe haviam concedido a liberdade. (...) Na rua ninguém o esperava. Começou a andar. Andou por dois dias, dormindo à beira da estrada ou entre as árvores. Quando por fim chegou à casa da irmã, ela quase desmaiou com a surpresa. Ficaram abraçados uns dez minutos. Depois de chorar um pouco, ela perguntou o que estava pensando fazer. Agora, tomar um banho e dormir, estou completamente arrebentado. Depois do banho, ela o levou até um desvão onde havia uma cama. Não um catre imundo, mas uma cama limpa, macia e decente. Dormiu mais de doze horas seguidas. Curiosamente, durante esse longo descanso, o ex-preso sonhou que estava preso. Com lagartixa e tudo”².

Amanheceu. Campos e Carmo se levantaram do monumento onde dormiram e foram procurar meios de vender seus artesanatos. Mas o que sei de Carmito? Nada. Ou tão pouco.

Irma del Carmen numa praça olha para os céus. Enquanto isso a pocinha à sua frente se ascende sem ela se dá conta. Olha para o papel que lhe mareja os olhos. Olha para sua barriga e sorri. Com a última gota que sobe, desce sua última lágrima do dia. Ela se levanta e o sol se deita.

Era uma casinha. Sala, dois quartos, cozinha. Os móveis, as roupas, as pessoas, as almas, as alegrias. Tudo pequeno, mas nada era pouco. Tinham fartura ou pelo menos não havia carência. As palavras eram ilhas pequenas cercadas de muito silêncio.

Vez ou outra Irma ficava ereta, na ponta dos pés, movimentava sua mão direita, depois a esquerda e todo o corpo bailava o silêncio. Em sua cabeça Vivaldi, Beethoven, Villa Lobos.

No início Carmito dançava na mãe, depois em seu colo e logo após com ela. Assim ele crescia. Dançando e lendo Eduardo Galeano, Mario Benedetti, Juana de Ibarbourou, Horácio Quiroga, Constancio Vigil, Monteiro Lobato, Ruth Rocha. “Cantaré lo mismo: ‘Mis manos florecen. \ Rosas, rosas, rosas a mis dedos crecen’. \ ¡Y toda mi celda tendrá la fragancia \ de un inmenso ramo de rosas de Francia!”³.

- ¡No! É pecado inmundo...

- Madre...

- Fique como digo o vas como é.

- Tengo medo...

- Fique como digo, entonces.

- ¿Madre?

- Entonces, vas como usted é.

Na Praça Nereu Ramos, no Centro de Joinville, Carmito está sentado diante do palco vazio com um cigarro aceso, olhando seus pés.

- Oi!

Carmito levanta o rosto para a voz. Não sorri para o sorriso do outro.

- Lembra-se de mim? A gente se viu hoje e...

- ¡Si! Yo me lembro.

- Posso me sentar?

- La plaza é pública.

- Coincidência nos encontrarmos.

- Si usted dices…

- Ah! Desculpa. Se estou incomodando…

- ¡No! ¡Perdóname! Fiques por favor. – Sorri para o sorriso do outro.

Observo o tempo. Carmito e Campos eu observo no tempo.

Em minha cama penso até adormecer num artista Estátua Viva me agradecer com mensagens num papelote. Então com pássaros cantando eu acordo. O que eu quero? Quero um dia ainda conseguir ser silêncio. Não precisar falar para me comunicar. Não estar de corpo para estar presente. Um dia serei silêncio. Por enquanto, treino.

Alimentado saio para rua. Vivo o dia e, voltando para casa, três hippies me oferecem seu artesanato. Compro um pingente e ofereço-lhes comida.

- Eu sou Benito e vocês?

- Eu sou Thiago. Com th. Eles são Letícia e Tiago, sem th.

- Se vocês esperarem uns minutos trarei algo para nós quatro.

A surpresa deles se transforma em sorrisos. Tiago e Letícia estão se tornando pais juntos e Thiago os acompanha desde a Bahia. Creio que nossa amizade se formará ao Luar.


Ofereço como presente de aniversário à

Marcos Inter, Demétrio N. Gualberto, Thayná Macedo, Jeová P. Jesus.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 01 e 09 de abril de 2012.

Importante dizer:

A ilustração é de Tiago Costa, meu parceiro no CRONISTA DE 5ª.

O trabalho foi feito para outro texto, mas devido a alguns desencontros acabou não chegando a tempo. Observando a obra dele (recomendo que se atente para a riqueza dos detalhes. Aliás, como deve ser feito com tudo que ele faz); mas como ia dizendo, admirando o trabalho do Tiago vi que ele tem muita ligação com o encerramento das três estórias de Benito, Campos e Carmito.

¹ BENEDETTI, Mario – Correio do Tempo: tradução de Rubia P. Goldoni – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007 – conto Ausências. ² Idem – conto Sonhou que estava preso.

³ IBARBOUROU, Juana – poema El Dulce Milagro – http://www.taringa.net/posts/arte/3690381/Poemas-de-Juana-de-Ibarbourou.html

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