domingo, 18 de outubro de 2020

AGORA É COM VOCÊ

 


 

Dia 15 de outubro foi o Dia do Professor.

 

Quem puder, escute a música O Sol, cantada por Jota Quest:

https://www.youtube.com/watch?v=hoNA77ICrr4

 

Outra vez o dia surge. Levanta-se e prepara o café.

- Bom dia, senhor Benito! Favor comparecer a escola amanhã, dia 04 de junho, para uma conversa com o diretor e a equipe pedagógica no horário de oito ao meio dia. Favor confirmar o horário da vinda.

Assim estava na mensagem de watzap e o professor respondeu: “oito horas está bom para mim”.

No dia seguinte, as seis da manhã, sai para a reunião. Na rua onde mora Benito é conhecido pelos usuários de crack como Professor.

- Quero falar com o senhor, Professor. – Diz uma mulher segurando uma garrafinha com cachaça e um “dragão” apagado.

Ai. Não quero falar com ninguém. – Pensa, mas ouve.

- Aquele ali é meu filho.

Aponta para um rapaz a uns cinquenta metros atrás de nós.

- Ele é aquilo ali.

Aponta para nossa frente e só vejo asfalto, calçada, uma árvore, uma casa. Nada fora do normal.

- O senhor tem que salvar ele.

Benito não tem a mínima ideia do que ela fala nem do que espera dele. Abraça a mulher. Abraça forte, apesar do perigo do covid. Ela beija sua testa. Professor não pensa mais no risco de infecção e intensifica o abraço. E se vai.

Às oito horas estavam o professor, o diretor, mas não a equipe pedagógica da escola. No lugar estavam duas representantes da SME (Secretaria Municipal de Educação).

- O senhor está sendo acusado de chamar seus alunos de ignorantes; acusado de dizer que o governo não quer o real aprendizado dos alunos; acusado de tornar público o que acontece.

Acusado!?!

Benito responde as acusações. O diretor replica, as representantes da SME se mostram neutras. Benito responde às réplicas. O diretor insiste. Benito desanimado aponta desmandos da direção. No final tudo se resolve e saem. O frio dos corações e dos brilhos dos olhos se refletem nos sorrisos calorosos...

Em casa, ao ler A Poda Necessária, escrito por Rubem Leite em outubro de 2019, Benito rememora 2018:

Era uma vez um jardineiro que viu uma figueira inútil e com quase trinta anos sem nada produzir, apesar de consumir todos os nutrientes do solo.

Esta figueira, além de inútil e roubalheira, era fofoqueira e encrenqueira. Frutificava asneiras a torto por ser de direita.

Então o jardineiro pensou “isso tem que mudar” e cortou a roseira de flores vermelhas.

Entardeceu, anoiteceu e amanheceu.

No dia seguinte uma estudante do nono ano, portanto não sua aluna, pergunta:

- Oi! O meu professor de português fala muito no quanto o senhor lê e por isso pedi a minha prima, que é sua aluna, o seu número de watzap. É que ganhei um livro chamado Vidas Secas, de um tal de Graciliano Ramos. O livro é bom? É que não estou acostumada a ler...

- Eu li esse livro pela primeira vez quando tinha a sua idade, acho; e não gostei. Eu era de direita e não queria algo que me mostrasse a realidade. Quase trinta anos depois o li pela segunda vez. Eu já era de esquerda e não mais temia os fatos, a verdade. Vidas Secas se mostrou um dos melhores livros que já li.

- Então... Será que vou gostar?

- Não! Se tem medo da realidade e prefere os mitos das igrejas e as regras da direita; apesar de ser pobre.

- Não sou pobre. Sou classe média.

- Filha! Seus pais, se ficarem um ano sem trabalhar, conseguirão manter uma vida confortável?

Ela se cala mordendo os lábios e de olhar voltado para dentro de si.

- Então seus pais, assim como eu, só têm uma coisa para vender: o trabalho. Isso faz com que seja mais fácil diminuir o que temos do que aumentá-lo. Classe média é pobre com um pouco, bem pouco, mais de recursos.

Observa os olhos da garota para continuar:

- Mas, e isso é importante, gostará muitíssimo de Vida Secas se tiver coragem de abrir os olhos para ver o que olha. Você é covarde ou corajosa?

- Professor... Não sei o que pensar... O que sou?

- Converse com o senhor Matheus, seu professor de Português, e com o senhor Emílio, seu professor de História. Eles poderão dizer melhor o que falarei agora. Sem me referir a literatura, mas ao conhecimento científico, digo que a História se modifica de acordo com quem a conta e de como é contada. Vi um filme chamado “Drácula: a história nunca contada”, dirigida por Gary Shore. No filme o príncipe da Transilvânia aparece praticamente como bom; que se sacrificou transformando-se em vampiro para salvar a família e o povo. Por que digo isso? Para que você se pergunte como foi o período colonial e imperial? Quem conta essa história? Como eram os povos nativos? Quem conta essa história? Como era contato, o relacionamento entre nativos, portugueses e africanos? Como essa história é contada? Como foi a transposição para República? Como é contada? Como foi a ditadura? Como foi o período “democrático”? Como é o atual governo? Quem conta? Como são contadas?

Uma pausa e continua:

- Ao ler qualquer livro pergunte quem está contando; foi quem venceu ou foi o outro lado? É preciso ousadia para isso. Você é covarde ou é corajosa? Decida!

E encerra a conversa. Agora é com ela.

Sai de casa e...

- Professor! Meu filho é aquilo ali. Mostra algo invisível.

Benito pensa “O ser humano é autodestrutível. Não exatamente um suicida, mas come o que não deve, bebe, fuma pedra, relaciona-se com as piores escolhas.”. Mas o que faz é outra vez abraçar a mulher. Em silêncio se afasta e entra em casa. Lá escreve: “Ah, se houvesse o soma  /  Não mais sentiria dor  /  Não seria artista ou professor  /  Só uma pedra, um ser em coma”.

 


Olha pela janela e não tendo nada relevante para ver pega um livro. Lá vê pela primeira vez o nome Antonieta de Barros. A ser eleita a um cargo político no Brasil, foi a terceira mulher e a primeira negra. Entre muitas coisas relevantes, criou o Dia do Professor. O que lhe faz pensar nas palavras da professora Janete Reis, que lhe indicou essa leitura: “Ignorarmos o nome dela e todos os seus feitos é uma das muitas injustiças que precisam de correções”.

Marca a página onde parou e larga o livro na cama. Olha pela janela pensando nas eleições municipais daqui a três semanas. O que Ipatinga escolherá? Retroceder conservando o atual prefeito? Ficar como está ao mudar-se para outro de direita? Tentar avançar um passo escolhendo o pt? Esforçar-se para dúzias de passos votando no PCB ou PSOL?

O povo vê o problema na figueira, mas corta a roseira; reconhece os inúteis como patrimônios a serem preservados.

Tão difícil saber o que o povo fará; mas há muitos empenhando em abrir-lhe os olhos. Por isso há livros como Versos Ácidos do Vale do Aço.

 

 

Ofereço como presente aos aniversariantes:

Leila Cunha, Emilio Fleitas, Sarah Silveira, Lucas Portuense e Luiz C. Santana.

 

Recomendo a leitura de:

“O Preço de uma Denúncia” e “Pau-Soja”, ambos de Glaussim:

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeficcaocientifica/7086225?fbclid=IwAR05u4W_FmJc_qWmkD5ZJjzjznz2Qm5-JtDND2cOWu49XnMVBKPMSREnJGc

https://www.youtube.com/watch?v=hoNA77ICrr4

 


Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.

É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.

É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.

Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”.

Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

Versos Ácidos do Vale do Aço: Roberta Rocha.

Pela janela: foto do autor.

Foto do autor pelo autor.

 

Escrito entre abril e outubro de 2020.

Nenhum comentário: