Em algum dia do primeiro semestre de 2019 os quatro membros da família se reuniram para uma discussão séria. Era uma manhã de sol.
Sou Reinaldo, viúvo pela segunda vez e pai do restante na reunião.
Pai biológico do Ricardo, aposentado por invalidez. Esquizofrenia moderada.
A noite eu preparava os medicamentos de nosso filho.
Minha primeira esposa se chamava Custódia. Embriagada, morreu num acidente.
Algumas noites eu queria sair para festejar; e podia?
A segunda esposa, Edna, já falecida no dia dessa reunião, teve um filho do primeiro casamento. E o garoto se chama Ignis.
A mãe se separara do primeiro marido quando se cansou de apanhar.
"Era um dia de sol." Costumava dizer.
Três anos após a separação, Edna e eu nos conhecemos e em pouco tempo passamos a morar no mesmo apartamento e a gente se casou no cartório de Registro Civil, na Rua Belo Horizonte, Centro de Ipatinga. Foi uma manhã de chuva.
Nós quatro vivemos juntos por três anos.
Nesses três anos o garoto me tratava como intruso e protetor da mãe; sempre com medo dela apanhar de novo.
Irritante, mas nunca realmente desaforado, causava coceiras em minhas mãos... Mas nunca chegamos ao ponto...
Com a morte por câncer de Edna, Ignis tornou-se oficialmente filho.
Algumas noites eu queria sair para festejar, mas...
Após um dia de sol, depois da morte de Edna, nosso relacionamento melhorou.
Parte pelo fim do medo de ver a mãe machucada. Parte por eu ter ficado com ele, mesmo tendo já dezesseis anos.
Com dezoito anos Ignis conheceu Érica e foi assim que voltamos a ser uma família de quatro membros.
Enquanto isso perdi o emprego.
Passamos um ano vivendo da pensão do Ricardo e de meus bicos.
De noite, chorei algumas vezes no meu quarto. De manhã era difícil ter força para levantar, mas ajuntava coragem.
Na reunião que iniciamos esse meu desabafo declarei, mortificado de vergonha, minha incapacidade de mantê-los e necessitava ajuda.
"A gente vai embora para facilitar para o senhor." Disse-me Ignis.
Mas não era o que eu queria ouvir.
Agora que acha que não precisa mais de mim, abandona-me?
Mas me calei.
Dores fortes guardo para mim. Só as pequenas deixo explodir.
Contudo, não foram embora. Não que eu saiba o porquê.
Érica falou algo?
Meu rosto mostrou o que calei?
Ele pensou melhor?
A noite preparei o medicamento do Ricardo.
Três meses depois, numa tarde nublada, arranjei emprego e tudo melhorou.
Algumas noites eu queria sair para festejar.
Érica tinha saído de casa para morar conosco porque apanhava muito da mãe, fazia sozinha todo o serviço da casa e com alguns meses de namoro descobrira que gostava do Ignis. Isso num dia de sol.
Em uma manhã chuvosa de sábado, ao levantar da cama, caí sobre ela respirando nada bem e com o coração acelerado.
Onze da manhã, ao não me verem preparando a comida, foram ver o que estava acontecendo.
Chamaram o SAMU.
No hospital constataram que era um ataque de pânico.
Um psiquiatra diagnosticou que eu sofria de depressão e ansiedade.
O bom foi que com o uso de remédios pude trabalhar sem precisar notificar a empresa.
Não havia mais direitos trabalhistas nesse novo governo.
Eu gostaria de chorar, mas depressão não é tristeza. Contudo, estava sempre sem ânimo e com respiração afoita.
O que disfarçava no trabalho mostrava em casa.
Nós quatro moramos juntos por dois anos após o diagnóstico.
Toda noite eu dava os remédios para Ricardo.
Numa manhã de chuva Ignis me pediu uma bolsa de viagem.
Nessa tarde o sol estava forte; um verdadeiro mormaço. E Ignis me falou que estava indo embora.
Fiquei calado sem saber o que dizer ou perguntar. Só com o coração doendo.
A sete da noite ouvia os trovões enquanto Érica me dizia:
"Mamãe está doente e precisa de mim..."
A velha estava com depressão...
Nesse instante chegou uma caminhonete para levar as coisas deles.
Eu queria chorar, mas raras são as lágrimas para pessoas no meu estado.
Mas o coração não; a dor ultrapassou a depressão.
Sem respirar preparei os medicamentos de Ricardo.
Deitei e dormir sem respirar.
Todavia teria que cuidar do Ricardo. Então no dia seguinte acordei e me levantei de novo.
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Rubem Leite
31 de outubro de 2020.
3 comentários:
Vai e volta do termômetro da depressão. Força! Que vença sempre!
Fatos do cotidiano, parece-me autobiográficos. Realidade local. Texto prosa com formalidade do poema. Trágico, mas não amargo. O humano e as suas questões humanas e sociais, tempos nublados.
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