domingo, 6 de fevereiro de 2022

ESTA NÃO É A ÚLTIMA CARTA


Queria que fosse a derradeira, mas estou preso.

Não a você, mas a outro e a única escapatória seria abandoná-lo a uma "casa de repouso"; ou à minha minha irmã já muito mais cansada que eu, apesar de sua força; ou ao outro irmão que o empurraria a uma casa de repouso.

Mas ele não merece tal fim. Não ele.


É tudo tão tedioso como se vê em trechos do capítulo 01 de Eclesiastes.

Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece.

Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu.

O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.

Aquilo que é torto não se pode endireitar; aquilo que falta não se pode calcular.

Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor.


Ah, como queria escrever a minha última carta porque:

É morto um congolês por cobrar seu "salário" (R$200,00) atrasado.

Pastor/ministro diz que as "causas" de existirem gays são famílias desajustadas e por não terem "experimentado" mulher. Então cálculo que se é hétero por ter experimentado homem.

Mulher é agredida e crer que isso é normal.


Nasce o sol. As vezes a manhã é colorida, outras são prateadas (e prefiro prata ao ouro), outras são chuvosas e em algumas manhãs de chuvas nos enriquecemos com "Corpos: poemas":



"O que foi isso é o que há de ser". "Quem aumenta em sabedoria aumenta em dor".


As cartas que escrevi, quantos leram? Quantos a analisaram? Quantos a reenviaram a outros?

Aos que leram, obrigado. Aos que refletiram, muito obrigado.

Aos que reenviaram nada digo porque não o fizeram.


Escola:

Religião a ensinar: é verdade uma mulher conversava com cobra.

esquizofrenia.

Um super-herói com seus poderes no cabelo. Cortaram suas melenas e venceram os vilões. Como se o contrário acontecesse fora dos filmes.

Fantasia.

Uma virgem teve um caso com um velho Deus, uma pomba e um homem. Quem é o pai da criança?

BLASFÊMIA, me gritam.

Muçulmanos são terroristas, mas esqueçam as desgraceiras que fizemos a eles, na América, África e onde mais puseram seus podres pés

Judeus mataram o menino, já crescido, filho de muitos pais.

Ainda na escola:

Português, Matemática, História, Geografia, Ciência...

Tantas preparações, tantos esforços, tanta dedicação.

E vacina não é eficaz, a Terra é plana, a escravatura é culpa dos africanos, 7x7=77, verbos são pracinhas, quase, um...


Queria que fosse minha última carta.

Mas Boçalnato está aí e quem assumir a próxima gestão não sei se encontrará solução.



Tenho outras cartas a escrever.

Para quê? Para não ser mais um morto-vivo.

Para quê? Por ainda estar vivo buscando um porquê.


Enquanto ainda vivo:

Germino na lama, cresço à sombra que me impõem quem denuncio, ofereço minhas poucas folhas, dou minhas frutas sem doce com a esperança quem alguém plante suas sementes para germinar boa árvore de bons atributos.


Sou uma árvore.

Tem momentos que sou ipê, há instantes que sou sibiruna.

Hoje sou uma goiabeira.

Tronco rude, folhas não delicadas, doces frutos - sei que haverá quem dirá "frutas bichentas" e algumas vezes será verdade.

Hoje sou um pé de goiaba, ainda pequeno, mas já preparando frutas para quem quiser.


Muitos me atirarão pedras ou darão pauladas e despreocupados com minhas feridas comerão deliciosamente meus frutos ou jogarão toda a parte boa por causa de um bicho.

Mas goiabeira, ipê, sibiruna sou árvore e escrevo não a minha última carta.


_____

Rubem Leite

Imagens:

Livro e poema de Gorette de Freitas;

Goiabeira: foto do autor.

Um comentário:

Goretti de Freitas disse...

Sensacional! Muito bom!
Obrigada, por citar meu livro!