O muito mais novo dos irmãos era o mais velho em desânimo. Descia a rua para comprar frutas; passos lentos.
Num cruzamento percebeu indistinto um homem empurrando uma bicicleta e acompanhado de perto por um menino.
Ouviu, do outro lado do cruzamento, a voz de uma mãe:
- Pare na esquina, olha bem pros dois lados e só atravesse se não vier carro.
O pai falou baixo, só pro filho, mas alcançou o caminhante:
- Num para não e nem olhe. Cê tá comigo e tôti cuidano.
O zelo da mulher não confiou no marido. O orgulho do marido desensinou o garotinho.
O dramático dessa história não é que tenha acontecido algum acidente à criança (que bom).
O drama é as picuinhas que mantemos a todo custo, a deformação do filho e o peso no caminhante de mais uma descrença na humanidade.
Ainda caminhando até o mercado paro um instante na rua Peroba em frente a uma casa de lindas flores visível acima do muro.
- Vou te contar umas coisas...
- Huuum. --- Minha bela visão é interrompida por algum amigo.
- Vejo muita gente rindo de você, falando mal de você, aproveitando de você.
- Sei...
- E... Não faz nada?!?
- Alguma dessas pessoas me importa? Gosta de mim? Obrigado! Não gosta? Que bom; não terei que me relacionar com elas.
- Mas... Você está sendo trouxa, bobo.
- Não me incomodando, deixando-me em paz... Está bom para mim.
- Isso não te incomoda?
- O que me incomoda é não está olhando meu jardim, lendo um livro e tomando um vinho com meus cachorrinhos e gatinhos por perto. É isto que está ótimo para mim.
- É que...
- Desculpa. Mas quero comprar umas frutas para poder voltar a minha casa para brincar com meus bichinhos, ler, ver as flores e tomar um vinhozinho. Com licença.
Na minha lentidão, tão doce lentidão a permitir-me ver o que só olhava, continuo tão pequena jornada a mostrar-me grandes coisas. Mesmo não sendo todas boas.
- Oi, professor!
Três de meus estudantes me param e sorrio tranquilo para cada um deles.
- Vai ganhar muitos ovos amanhã?
Fala o do meio e o a sua direita diz:
- Ontem foi um dia triste.
- Mais triste foi o Domingo de Ramos... --- Replico.
- Por quê? --- Pergunta o da esquerda.
- Numa mesma semana a imaturidade humana é mostrada em toda sua ingratidão e servidão aos poderosos. Domingo passado conclamaram "Bendito o que vem em Nome do Senhor"; repetindo o que foi bradado dois mil anos atrás e ontem gritaram "morra, Jesus".
- Mas professor... Ninguém fez isso.
- Fazem isso várias vezes ao dia. Com negros, mulheres, LGBTQI+, pobres, doentes, presos, gordos, magros...
- Mas... Não é a mesma coisa.
- Sim, é. Ele disse que fazer isso aos pequenos é agressão a Ele, pois cada pessoa é seu templo.
O da direita nos diz:
Li que Jesus não morreu por nossos pecados, para nossa santificação. Ele não veio para nos separar do mundo. Cristo veio para ensinar que o mundo (a natureza) e a humanidade são um.
Concordo. Contente por ele está abrindo sua cabeça. O do meio continua:
- Jesus morreu porque lutou contra a direita, contra política, religião, economia que sufoca o povo; onde poucos ficam com muitos e muitos ficam com poucos.
Outro aprendiz de pensante. Gosto disso. E o terceiro acrescenta:
- Domingo será uma festa falsa, pois ainda hoje Jesus é caluniado, blasfemado, preso, torturado e morto. Não por "nossos pecados", mas porque ainda preferimos louvar os poderes no lugar de lutar com Cristo.
Não sorrio porque a Verdade não é disso. É a ilusão a nossa embriaguez. Mas me sinto bem pelos três cérebros funcionais.
A gente se despede e em silêncio cada qual caminha. Eu me aproximo do mercado, compro e volto para casa. Leio um pouco, bebo vinho e preparo um simples almoço pascal sem deixar de ver:
No centro, o morto político (Jesus); de um lado, a ciência (perguntas, dúvidas, pesquisas, estudos, conhecimento); do outro lado, vinho para comemorar cada vitória de quem luta ou sangue dos que morrem por culpa de quem cruza os braços à espera das benesses que os milhões de Cristo conquistaram para todos.
Cérebros não têm paz. Chega do nada a mãe de um dos garotos. E sua voz ébria de ilusão:
- Está escrito na Palavra, a Bíblia. Jesus morreu por nós, nossos pecados e para dar pra gente a vida eterna. Pois o que conta é nossa alma. Sarar, salvar, santificar.
Dos gritos e ofensas que me disse não há necessidade de mostrar. Já sabem ou imaginam. Respondo à mãe:
- Não há discórdia entre nossas ideias. Falei da razão histórica, não teológica. Teologia deixo para os sábios dos templos, uns são cristãos realmente; e até para seus mercantes largo-lhes as palavras. Quando luto é com meu cérebro escudado por livros e empunhando caneta.
Paro a conversa para tomarmos um café com bolo e só depois continuo:
- O Jesus histórico morreu por lutar pelo Povo; pela igualdade, dignidade, verdade e esta é ciência, não mito. E até hoje todos os verdadeiros seguidores d'Ele são mortos.
A mãe se vai. Leio um pouco mais e durmo.
Amanheceu um lindo dia nublado. Permitindo-me ver as flores em suas cores naturais, resis.
É o primeiro Domingo de Páscoa. Dia de pensar nas ações a realizar enquanto professor e escritor.
Cristo há de ressuscitar.
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Rubem Leite
Fotos do autor.
Escrito no correr da semana passada e hoje (17/4/22) trabalhado.
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