domingo, 12 de maio de 2019

BELO COMO UM SIM NUMA SALA NEGATIVA



Defendo as Ciências Humanas.
Pensar é um direito de todos.

, tocando-nos voávamos em beijos quentes no céu frio. Mergulhamos um no outro em um lago. Pousamos num ipê florido amarelo, rosa, branco, roxo; trocando de cor a cad...
Os cachorros, todos, latem tão alto que não deu para continuar o sonho. Acordei para ver quem era. Gustavo; reconheci a voz a chamar-me. Por dois segundos penso em fingir que não o escutara enquanto mandava os cachorrinhos ficarem quietos. Mas o silêncio dos cães denunciaria.
Tonto de sono abro a porta, desço a escada e abro o portão. Tonto de bêbado sobe a escada e:
- BENIT...
- Fala baixo.
Os filhotinhos continuam a latir. Estresso-me. Continuam a latir. Meu irmão acorda. Irrito-me. O dia será difícil.
Quero dormir. Mas Gustavo abre a geladeira pega pedaços de frango cru e linguiça; pica-os.
Irritado, mas para não piorar ainda mais o dia que virá, ponho no fogo uma panela com óleo. Balançando de bêbado põe as carnes na panela.
Ainda não me vou deitar. Não enquanto o fogo estiver aceso...
O rapaz põe feijão na panela enquanto penso: Um pouco de feijão no lago de gordura? Vai ter diarreia amanhã... Apaga o fogo. Agora posso dormir.
Passado poucos minutos ouço o barulho de vômito no banheiro. Álcool e óleo, parece, também não se misturam... Rerrê. E o sono tarda a vir. Mas vem. E, seguindo, vem também a vontade de mijar. Acordo sem ânimo, levanto-me, mas todas as luzes estão acesas. O cara caído no chão, não no sofá. Apago as luzes, vou ao banheiro, urino e deito. Demoro longo tempo para dormir. Porém, as seis horas acordo com os cachorros querendo ir à rua.
Reunindo-me forças sento na cama e olho pela janela. É uma imensa sala negativa este ano e os próximos três.
Reunindo-me forças levanto para enfrentar o imenso dia. Um de cada vez. 

Após preparar o café, comprar pão e alimentar-me pego um livro e, assim, “conheci novas palavras e tornei outras mais belas”. Pondo o livro de lado acesso o Caralivro e veja postagens do militante pelos mochileiros e artistas de rua, Skarabajo Ronal Faría. Entre elas observo a foto de um grafite em um muro com os dizeres:
Inseguridad es que la propiedad privada valga más que la vida.
Ni olvido ni perdón para los asesinos de Pelf.¹
Ao perguntar o que é Pelf, dona Cecilia Marchesi, mãe de Emilio Bigote (também artista de rua e mochileiro), me explica que é um pseudônimo; como verá no parágrafo a seguir.
Ronal denuncia a morte d Santiago Maldonado¹, morto pelo Governo argentino: Não só o Estado é responsável pela morte e desaparecimento de Santiago, como também lançou uma série de mecanismos de justificativa e encobrimento das forças de segurança responsáveis por este crime. Igualmente não se cala sobre o assassinato do artista grafiteiro e rapper Felipe (Pelf) Cabral¹: Vizinhos de extrema direita uruguaia assassinaram Pelf com um tiro por motivos políticos no dia dezenove de fevereiro de 2019. O crime aconteceu enquanto fotografava um muro por ele grafitado.
Quase nove da manhã saio com meu irmão a oferecer poemas à cidade. Prego cartaz na rua com o texto:
COMIDAS E ARMAS
Sonhei que um professor era uma vela.
Calçava sandálias de couro e vestia calça branca e camisa de barra branca, vermelha no centro e amarela em cima. Verde era a luz da cabeça.
Queriam apagar o professor, mas a vela canta:
Se me apagam
Ouvirão dos índios e dos mulatos
Os seus cantos.
E se for pouco
– porque para vocês isso nada basta –
Eles e os outros perseguidos
Me reacenderão.
Voltamos para casa, preparo o nosso almoço, comemos e limpo as vasilhas. Saio para ir ao advogado. Na metade do caminho sento numa praça para observar as flores e pensar:
Filosoficamente falando, amor é o supremo sentimento humano; o mais aprimorado. Portanto cães, gatos etc. não podem amar. Amor é o ápice dos sentimentos humanos.
Jovens passam de mãos dadas ou trocando beijos.
E mesmo o ser humano só consegue amar após uma série de experiências de vida e experimentado outros sentimentos preparatórios para o amor. Assim, adolescente raramente – para não dizer impossível – conhece o amor. Desenvolve paixão, desejo, gostar, querer bem, apego; mas não o amor. Amor só quando maduro.
Ao livro que levo abro para ler “Amor é privilégio de maduros / Estendidos na mais estreita cama, / Que se torna a mais larga e mais relvosa, / Roçando, em cada poro, o céu do corpo. / [...] / Amor é o que se aprende no limite, / Depois de se arquivar toda a ciência, / Depois de se arquivar toda a ciência / Herdada, ouvida. Amor começa tarde.”.
Fecho o livro a pensar um pouco mais antes de levantar-me para sair.
Dentre os sentimentos “prerrequisitos” para o amor dois se destacam: O respeito e a admiração. Por isso um adulto consegue amar os pais, mesmo que tenham sido severos, demasiados severos. Pois primeiro desenvolvem o respeito e logo mais, ao ter que viver a própria vida sem a ajuda dos pais, desenvolver a admiração pela dedicação dos mesmos. Mas o amor, filosoficamente dizendo, pode ser também para outras pessoas. Pelo marido ou pela esposa, por exemplo. Mas sempre e somente depois que conheceu o respeito e a admiração. O que sinto por meu irmão? O que sinto pelo amigo que me chama de madrugada? O que sinto pelo povo que diz “sim” quando deveria gritar “não”?
 Dentro do escritório do advogado, após a obtenção das respostas que buscava:
- O que tá achando dos vinte e um dias de Governo?
- Está mais adiantando do que imaginei.
- É? O que você esperava?
- Esperava o que está acontecendo.
- Diz o que está acontecendo.
Sem ânimo nem energia prefiro calar a falar o que ele deveria saber até mais do que eu. Como nada falo, continua:
- Tô gostando.
- Não duvido.
- Se eu tiver errado me arrependerei e pedirei desculpas.
- Para nada servirá. – Abro a porta para sair e ouço a risada do estagiário. Vou-me embora com o riso ecoando em minha cabeça. Ao mesmo tempo penso: O arrependimento, para ocorrer, necessita de força moral. O pedido de desculpa, por sua vez, é só para sentir-se bem consigo mesmo.
E repito o pensar até os cento e onzes dias que levamos para chegar ao Dia das Mães. Neste tempo penso nas ações do Governo Federal: redução aos investimentos na educação básica e superior; no armamento infantil; no fim dos direitos trabalhistas; no fim da aposentadoria; no direito de matar os índios e os MST’s; na prostituição feminina brasileira; na perseguição aos LGBTQI+; na idolatria aos “americanos” e tantas outras loucuras.
Penso e me mexo; nesta sala negativa é o meu sim.


Ofereço como presente aos aniversariantes:
Pablo Cardoso e Robinson Ayres.
Ofereço também aos recentes amigos de fb:
Martha Gonzales, João P. Juggle e Nádia HK.

Recomendo a leitura de:
“Estrelas Podem Ser Interpretadas Como Um Corpo Negro”, deste macróbio que vos fala:
“Quando a Poesia Vira Música”, de Caio Riter:
“El Paso de los Libres”, de Javier Villanueva:
“Um Choro Conveniente”, de Sued Carvalho:

¹ Mais informações sobre os artistas de rua:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Amor e Seu Tempo. Disponível https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/807505/ . Acesso 08 Mai 2019.
________ Canção Amiga. Disponível https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/1221849/ . Acesso 10 Mai 2019.
KLINJEY, Rossandro. O Amor e o Respeito. Disponível  https://www.youtube.com/watch?v=mmFxgxRVqtM . Acesso 08 Mai 2019.
MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina. Poesia Completa e Prosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. P. 176 (daqui veio o título do cronto).

 Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
 Imagens:
 Rubem – foto de Vinícius Siman.

Texto escrito e trabalhado entre os dias 21 de janeiro e 12 de maio de 2019.
Sobre o cartaz: Realmente, mais de duas e meia da madrugada do dia 16 de janeiro de 2019 acordei com esse sonho que me fora contado por Machado de Assis.  /  No dia 15 de janeiro de 2019 o Governo Federal assinou seu primeiro decreto. Este facilita o porte de armas por praticamente qualquer um.  /  Já um ex-presidente, hoje preso político, teve como primeiro decreto o combate à fome.