sábado, 7 de agosto de 2010

ONIPOTÊNCIA

Estória aparecida na madrugada de 07 de agosto de 2010.

E ofereço como singelo, porém carinhoso, presente de aniversário a

Cristiano Milagres e Thiago Moreira.


Dia e noite era uma barulhada na casa. Sete crianças... “Crianças? Eram uns capetas, isso sim”. Pensava tio Ivo. Entre cinco e dezesseis anos. Só havia silêncio nas madrugadas. Ter de trabalhar duro na fábrica e ainda cuidar daquilo que não era seu o esgotava. Só ficava com as crianças porque o CMDCA o obrigava, pensava.

Mas quem é Ivo? Ele é tio Ivo, para as crianças. Doutor Ivo para os empregados da casa e da fábrica. Ivo para os clientes e amigos, se os tivesse. Amo para Syn.

Uma noite especialmente difícil. Pela manhã, as crianças e depois empregados reclamando do salário. Pela tarde, cliente reclamando. E agora, crianças brigando, o jantar demorando e Maysa não viria. Sua namorada e cantora de voz quase tão boa quanto a original.

- Syn!

Quem é Syn? Como aquilo é? Ele... Não, não é ele, nem ela. É... É Syn.

- Deseje, meu amo. Qual é sua vontade?

- Cuide das crianças. Ensine bons modos.

- Cuidarei, amo. Em um mês o senhor verá os resultados.

Nada mais disseram. Apesar de um mês ser ainda muito para se ter paz, Ivo aceitou. As crianças algazarrearam ainda por umas quase duas horas e foram dormir. A primeira foi Ana, a mais barulhenta. A segunda foi Clara, a mais inconveniente. Depois foi Pedro, o mais levado. Em quarto foi Paulo, o mais brigão. O quinto foi José, o “come quieto”. Logo após foi João, o mais lambão. E por fim, Luzia, a mais antipática. Pelo visto, ter nome de santo nada dizia.

No dia seguinte custaram a acordar. Estavam cansadas pelo dia de ontem e Ivo tomou café sossegado. Na empresa trabalhou sossegado, os empregados reclamaram, mas foi fácil controlar a turba. A tarde recebeu boas notícias no campo empresarial. Voltando para casa, entrando no jardim, reparou que ninguém ligara reclamando das crianças. As crianças. Ana, Clara e Luzia na sala assistindo televisão.

- Boa noite, tio Ivo. – Disseram meio apáticas.

- Boa noite. – Disse sorrindo. – Cadê os garotos?

- Estão nos quartos. – Quem respondeu foi Ana e Clara completou

- Depois do almoço foram dormir e estão lá até agora jogando ou vendo tv.

- Então tá.

Durante o jantar comeram os nove. Ivo, Maysa e as crianças. E Ivo conseguiu conversar. Estavam quietos. Depois assistiram um dvd. Durante o filme, as crianças foram deitar e uma a uma dormiram. Ivo e Maysa foram deitar, não dormir. Pela manhã o café foi agradável. Ivo foi para a fábrica. Maysa foi ensaiar. E as crianças quieta.

Assim aconteceu por mais cinco dias. Depois por mais uma semana cada vez mais sossegada. Aos quinze dias perceberam algo errado. Ou melhor, Dr. Ivo captou a anormalidade da coisa. As crianças não se levantaram. Telefonaram para o patrão.

- É só uma gripinha.

À noite continuavam deitadas. Com febre e pouco falavam. No dia seguinte não teve jeito. Tiveram que chamar um médico. Exames. Exames. Exames. Exames. E nada de descobrirem o que seja. Parecia banzo. Mas banzo? Eles não tinham motivos para tristeza. E os sete, ao mesmo tempo, com depressão profunda? Mas seria mesmo banzo? Depressão! Como chutaram os médicos?

- O quadro nos assusta, Dr. Ivo. Não entendemos o que eles têm. Parece ser depressão associada a outras patologias. – Estão falando em linguagem para leigos devido ao “pedido” irritado do Dr. Ivo –. Mas não conseguimos saber o que realmente está acontecendo.

E os exames continuaram. Depois mais exames. E por fim mais exames. E finalmente após três semanas, quase quatro, descobriram... Nada. Só aí Dr. Ivo pergunta:

- Syn! Você é o responsável por isso?

- Sou!

- O que fez? Por que fez?

- É o seu desejo. – Responde a segunda pergunta e vai para a primeira – Estou fazendo com que morram.

- Não pedi para os matar.

- Pediu sim. Disse para cuidar deles. Estou cuidando.

- Cuidar. Falei para cuidar. Não pedi para matar.

- Seu pedido foi para cuidar. Seu desejo era se livrar deles. Sua vontade é que eles morressem.

- Não pedi...

- Mas desejou. Atendo não seus pedidos, mas sua vontade.

- Não quero que eles morram. Quero que eles sejam comportados.

- Seu desejo é que eles sejam quietos. Sua vontade é não tê-los.

A conversa se arrastou em silêncio por longo tempo e ficou apenas nisso. Huuum! Não, na verdade não. Ela se encerrou com as seguintes palavras de Syn

- Atendo sua vontade, não suas palavras. Quer que mude o que está acontecendo troque o desejo.

Dr. Ivo, na capela do hospital, pensa e pensa. Mas razão não move o mundo, nem muda os sentimentos. Bem! Talvez ajude. Ele acha um livro abandonado. Ou deixado por alguma alma generosa. Abre ao acaso e lê “Todos vivemos procurando a paz. Algumas pessoas buscam paz somente para si, mas devemos buscar a paz de toda a humanidade. Sem paz no mundo, não há paz individual, pois esta desaparece tal como o sereno. Devemos sempre ter amor imutável, pois é dele que advirá a paz verdadeira e imutável pela força da infalível lei da mente. Devemos abandonar o ‘amor interesseiro’ e a ‘oração interesseira’, ter ‘amor universal’, fazer diariamente ‘oração pela humanidade’ e agir conforme essa oração”¹. “Meus meninos! Que fazer? Como?”. Depois da reflexão seus sentimentos começam a mudar. Começam.

Passa o dia. O quadro se estagna.

Passa uma semana. O quadro começa a melhorar.

“Será a melhora que antecede a morte”? – Pensa. – “Torço para que não”.

Eu, pessoalmente, acredito que não.

Completa o mês. O quadro melhora.

Mas, você que me lê, deixo em suas mão o destino das crianças.


¹ Livro Minhas Orações – Professor Masaharu Taniguchi – Pela paz perpétua.

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