domingo, 28 de novembro de 2021

UM DIA IREI


 

Duas, quase três horas da tarde nublada e a vista frontal no ponto de ônibus mais próxima da transversal de quem vai para os bairros de Timóteo mistura o belo com o feio. Os fundos do Centro de Economia Informal “Raimundo de Souza Neto Sô Mundico” junto com árvores e matos descendo uma greta; o barulho do trânsito, gente conversando e pássaros cantando.

Depois de observar, pego o livro A Língua de Eulália, de Marcos Bagno e me relaxo com estes versos de João Cabral de Melo Neto:

Catar feijão se limita com escrever:

Joga-se os grãos na água do alguidar

E as palavras na folha do papel;

E depois, joga-se fora o que boiar.

Minha leitura é atravessada pelo barulho humano.

- Ele gritou comigo.

- Osvaldo sempre te xinga?

- Não. Foi a primeira vez. Já discutimos antes, é claro. Mas brigar mesmo foi a primeira vez. E não quero uma segunda...

- Ele te xingou de quê? De vadia, vagabunda, mocreia?...

- Não. De estúpida e grosseira.

- Uai! Então não é Maria da Penha, não.

- Como não? Ele é homem...

- Todo mundo pode xingar. O que não pode é xingamento sexista, machista, racista... Existe xingamento que é só por estar nervoso. Vejamos: Se o Osvaldo chamasse alguém de “criolo, urubu” se vê que é racismo. Se alguém chama outro de algo que não tenha ligação com cor de pele, tamanho do corpo, gênero... é outra coisa.

- Mas...

- Aí vem nosso ônibus. Lá dentro a gente continua.

Olhando a vista a frente, abro minha bolsa e recolho a antologia Identidades, da editora Venas Abiertas. Sinto o que um dos autores escreveu. Tudo o que dizem é identidade; se não minha é de quem tenho paridade. Ai, humanidade que odeia igualdade. Quer a desigualdade no lugar da diversidade. Olha o outro e não se vê.

Às vezes, quantas vezes, o que planto é colhido...

- Você é agricultor? – Pergunta debochado a voz do meu adversário interior.

- Não! Sou escritor, professor.

Querem levar não o melhor de mim, mas a melhor sobre mim. Algumas vezes, como vi em Torto Arado, de Itamar Vieira Junior¹, consigo impedir que me deixem os restos; conservo para os meus os maiores e melhores frutos de meus trabalhos. Ah! Tão frequentemente sinto vontade de deixar tudo apodrecer e perecer por desgosto, por desânimo diante das constantes batalhas que não existiriam se não fossem egos, vaidades, maldades e brigas sem porque, só pra ter. Nem é possuir esse ter; é ter desavença. Mas assim como a terra onde se planta deve ser respeitada, respeito onde germinam minhas ideias e as turmas com quem trabalho. Se os animais pudessem ler o que escrevo, aprender o que ensino seriam eles meus destinatários. Estes merecem meu suor, minhas dores, minhas lágrimas, minhas feridas.

- Desista, Benito! Quantos já te disseram “A meu gosto meu filho se retiraria de suas aulas; não participaria de nenhuma”.

- Não! Respeito a terra onde planto, cuido e colho meus trabalhos. E se há quem não me quer; que me aguente como os aguento. E se há quem me quer, que me aceite como os aceito.

Os leves barulhos a minha volta levantam minha cabeça. É meu ônibus. Guardo apressado os livros para misturar-me ao coletivo.

Mas um dia entrarei num trem, num ônibus, num navio ou num avião só pra ir.

 

 

¹ VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019. P. 152. Tenho dois exemplares e ambos emprestados. O que leio foi a mim temporariamente cedido por Nena de Castro.

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens: fotos do autor – os fundos do camelódromo.

 

Manuscrito em 19 de outubro e trabalhado entre os dias 14 a 28 de novembro de 2021.

domingo, 21 de novembro de 2021

SE VIVO

 O ônibus para o Centro de Timóteo deu uma parada mais longa em algum lugar em Alegre.

Pela janela vejo uma goiabeira.

Um galho grosso fora quebrado quase no encontro com o tronco. Outros dois grossos galhos foram retorcidos. Talvez pela natureza, mais provável por gente. Sabe-se lá porque. Um quarto galho, menos grosso que o mutilado e os torcidos, mas muito mais comprido. Este se escorou no muro.

A goiabeira persistia em viver; houvesse o que houvesse. Quanta coragem, persistência, resistência. E resiliência?

Ontem comemorou-se o aniversário do Lion. Três anos. Não sei o que pensaram ou sentiram os pais e os convidados. Para mim foi simples e delicioso; quase à perfeição.




Lion e os pais Andres e Erika mais o irmão Kael; vovô Rubem e seu irmão Janio; a escritora Nena de Castro, seu marido (Moacir) e a filha Taty. Além de verem a família Garcia Aviles veio aconselhar-me: 'O mundo é uma eterna luta contra moinhos de vento', disse-me e penso que a ilusão nos faz ver moinhos, mas na realidade são com gigantes que lutamos. Participaram ainda Faire, Ramon e Alan, mais nossos vizinhos de frente, que ajudaram a fazer os doces, André, Carolina e as filhinhas. Um sábado doce com chuvas de novembro e o verde nas cercanias.

Hoje meus cachorrinhos mataram uma gatinha. Indícios de minha alma ainda violenta. Estou tentando aprender a soledade, a solidariedade e a serenidade.

Se conseguir, levarei para o mundo do além ou acabará aqui. Não sei. O que importa progredir sem agredir.

O ônibus voltou a percorrer seu caminho e a goiabeira tem mais força e coragem que eu. Talvez por só viver sua vida enquanto vivo a minha em partilha.

Mas ainda estou vivo, atravessado pelo tempo, atravessando meu mundinho.



Rubem Leite.

Pensado por algumas semanas. Escrita 21 de novembro de 21.

domingo, 7 de novembro de 2021

ÍNDIAS OLHANDO PELA JANELA - LA VANIDAD DE LA BLANCURA EUROPEA

 

“Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros da selva, mas nós, os argentinos, chegamos de barco. Eram barcos que vinham da Europa, e assim construímos nossa sociedade”.¹

“Los mexicanos salieron de los indios, los brasileros salieron de la selva, pero nosotros, los argentinos, llegamos de los barcos que venían de Europa, y así construimos nuestra sociedad”.¹

(Presidente Alberto Fernández)

 

 

Em português:

Índias olhando pela janela.

 

Senhor Presidente da Argentina, Alberto Fernández, o brasileiro é filho da selva; do ar puro, da beleza, da natureza. Mas o senhor esqueceu que somos também filhos dos negros. Temos a benção de ser filhos de indígenas, negros e, não é possível negar, de português.

Português... língua que Cervantes falou “é a língua mais musical que já escutara”. O senhor tem vergonha de seu pai, de sua mãe, de avós, bisavós... Nós, brasileiros, amamos nossos ancestrais. Não falo do México nem de outros países que o senhor indignamente menospreza suas origens porque não tenho tal liberdade, mas sei que eles também amam suas raízes.

Sim, sei! Há muitos brasileiros que se envergonham de sua origem negra e quase se orgulham de terem “uma avó indígena”. Uma expressão comum das pessoas mais velhas é que “sua avó foi pega a laço e que ao fim da tarde ficava olhando pela janela a direção de sua aldeia”. Falam com romantismo, sem perceberem que suas avós foram sequestradas e estupradas. Se tenho uma vergonha é essa: estupros de negras e indígenas pelos brancos. Mas se tenho algum orgulho é de ser formado por essas etnias mais do que pela portuguesa. Do português o único que me emociona é a língua, por sua musicalidade.

Mas uma imensa parte de nós, brasileiros, ama nossos ancestrais. Aceitamos até nossa origem europeia; apesar dos pés europeus serem podres: aonde pisam tudo morre.

Sobre a língua portuguesa há quatro datas comemorativas. Cinco de novembro foi o Dia Nacional da Língua Portuguesa. Essa data foi escolhida em homenagem a Ruy Barbosa, talvez o maior conhecedor brasileiro da lusofonia e também grande conhecedor de outros idiomas.

Sr. Alberto Fernández, seu embaixador no Brasil expôs sua vontade de trabalhar com o presidente do Brasil.² Como pode? Como pode pedir ajuda a Boçalnato para destravar questões econômicas encontrando-se com a ministra da agricultura Teresa Cristina?³ Em que isso poderá ser frutífero para nossos povos? Teresa Cristina tem dois apelidos: Miss Veneno e Senhora Queimadas. Como uma agricultura predatória pode ser boa para a população?

Mas o mais importante, senhor Presidente argentino, ame seu povo, que não é só euroargentino, mas sim a mescla que forma tão grandioso país.

 

 

En español:

La vanidad de la blancura europea.

 

Señor Presidente de Argentina, Alberto Fernández, el brasileño es hijo de la selva; del aire puro, de la belleza, de la naturaleza. Pero usted olvidó que también somos hijos de los negros. Tenemos la bendición de ser hijos de indígenas, negros y, no es posible negar, de portugués.

Portugués… lengua que Cervantes habló “es la lengua más musical que he escuchado”. Usted tiene vergüenza de su padre, de su madre, de sus abuelos, bisabuelos… Nosotros, brasileños amamos nuestros ancestros. No hablo de México y de los otros países que usted indignamente desprecia sus orígenes porque no tengo tal libertad, pero sé que ellos también aman sus raíces.

¡Sí, lo sé! Hay muchos brasileños e hispanoamericanos que se avergüenzan de su origen indígena y todavía más de su origen africana. Pero la verdad es que esas mujeres indias y negras fueron violadas. Así, sus madres y abuelas fueron violadas y sus padres y abuelos, violadores. ¿De qué se orgullece su blancura europea, presidente? Eso es una vergüenza para mí. Sin embargo, hay algo que me orgullece: soy fruto de todas esas etnias más do que la europea. Y del portugués la única cosa que me emociona es la lengua, por su musicalidad.

Pero muchos de nosotros, brasileños, amamos nuestros ancestros. Aceptamos hasta nuestro origen portuguesa; a pesar de los pies europeos sean podridos. Adonde pisan todo se muere.

Señor Alberto Fernández, su embajador en Brasil expuso su voluntad de trabajar con el presidente de Brasil.² ¿Cómo puede? ¿Cómo puede pedir ayuda a Bozalnato para desbloquear cuestiones económicas encontrándose con la ministra de agricultura Teresa Cristina?³ ¿En que eso podrá ser fructífero para nuestros países? Teresa Cristina lleva dos apodos: Miss Veneno y Señora Quemadas. ¿Cómo una agricultura predatoria puede ser buena para la población?

Pero lo más importante, señor Presidente argentino, ame su pueblo, que nos es solo euroargentino. El hecho es que son la mezcla que forma tan grandioso país.

 

 

¹ Em português: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-06-10/presidente-argentino-alberto-fernandez-irrita-toda-a-america-latina-com-uma-unica-frase.html   /   En Español: https://www.infobae.com/america/america-latina/2021/06/09/fuerte-repercusion-en-los-medios-de-brasil-y-mexico-tras-la-polemica-cita-de-alberto-fernandez/

² https://revistaoeste.com/politica/presidente-da-argentina-quer-encontro-com-bolsonaro/

³ https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/meio-ambiente/65587/de-miss-veneno-a-senhora-queimadas-tereza-cristina-garante-agricultura-predatoria

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

 

Manuscrito originalmente en español en 02 de julio de 2021.

Trabalhado nas duas línguas entre os dias 05 e 07 de novembro do mesmo ano.