segunda-feira, 30 de abril de 2012

VIVENDO E APRENDENDO


Obax anafisa.



Dez para cinco da manhã saio com meus três cachorrinhos. Enquanto fecho o portão da casa, a porta de um carro se abre. Dou dois passos e do carona sai uma usuária de craque.
- Você pode me arranjá-me um copo d’água?
- A essa hora? – Resmungo.
- Eim?
- Espere um pouco, por favor. – Falo cristãmente.
Abro o portão, entro, tranco o portão, subo a escada, pego um copo descartável, encho, desço escada, destranco o portão, saio, tranco e entrego a água.
- Qual desses cachorrinho é seu?
- Os três.
- Me dá o bacê pra eu.
- Não! – Falo meio que rindo do disparate dela.
- Você é casado?
- Não!
- Vamu fazer um pograma?
- Não!
- Eu disse pru criente que eu tava com sede e que ia pedi água procê.
Pelo visto, piranhas também têm sede. “São seres humanos, então”. Ou apenas “São seres humanos”. Com qual das duas frases entre aspas devo encerrar ou qual das duas você pensa que seja a certa, a que reflito ou a que afirmo?
- Meu criente, nu carro, mandô eu convida você. Quando eu disse que tava com sede e que ia pedi água procê, ele falô praticonvidá.
Olho para o carro e não tenho a mínima ideia de quem seja. E se eu tivesse? Mas independente disso:
- Não, obrigado!
- Ah! Me dá o bacezinho.
- Não! Eu gosto dele.
- Vamo fazê pograma?
- Não!
- Faço um boquete nocê então.
- Não!
- Me dá cinco real, então.
- Ah, minha filha. Estou sem trabalho.
- Nó! Me dá um cigarro, então.
- Não fumo.
- Nó! Qual é o nome do bacê?
- Haicai!
- Minha avó tinha um e se chamava Pipu.
- Belo nome.
- Dá paeu...
Eu me encaminho para o caminho de sempre. Então ela volta para o carro com o copo na mão. E o cara olha para mim, olho de volta. A garota já dentro do carro fala algo e ele dá um riso de bobo.



Ofereço como presente de aniversário à
Térsio Greguol, N. Silvia M. Simões, Elizangela Batista, Patrícia P. Cruz, Fernando Leite, Deusdeth J. Amorim, Luis Yuner, Mariana Porto e Pedro H. P. Leite.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 25 e 30 de abril de 2012.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A BELEZA DA QUEDA


Obax anafisa.


No Centro de Ipatinga na manhã de sol do Dia do Índio eu atravesso o cruzamento das ruas Sabará com Ouro Preto pensando em nem sei, levando na sinistra uma sacolinha e na destra eu me levo. Ou tento. Piso na calçada e dou meu segundo passo num desequilibro que faz meu corpo se aprumar. Ou tentar. Curiosamente, porém, meu corpo continua caindo pondo-me a pensar no que sei. Ou quase. Junto, o espanto: “Como? Eu não voltei a me equilibrar? Por que continuo caindo? Meu chinelo soltou a correia no tropeço, que chato. Que coisa desagradável é cair. Ai, que vergonha! Por que ter vergonha de cair? Tolice isso!”. Na lentidão meu corpo caiu proporcional à quantidade de pensamentos. Vi o cimento cinza sujo da calçada se aproximar. Vi, ou imaginei, minha cara se fazer ridícula ao cair. Engraçado, na verdade o corpo é que se aproxima do chão, mas a sensação é o chão se aproximar do corpo. Meus braços, sem que eu percebesse, se posicionaram para me proteger. Que bom que eu não caí feito uma jaca, mas sim com suavidade e leveza.
Na tampa do bueiro na calçada, um quebrado.
Nas proximidades, olham para mim os funcionários de uma loja, duas putas, uma jovem e a outra não, já prontas para o trabalho e também o dono de um boteco e seu cliente. Eu, levemente sem graça, me mantenho no chão por uns dois segundos e antes de começar a me levantar as garotas me perguntam se estou machucado. Digo que não e a mais jovem começa a rir. Não me ofende. Percebo que riu por estar aliviada – Na medida em que alguém se sente bem pelo não ferimento de um estranho. – O cliente do bar vejo ao meu lado, pronto para me socorrer e perguntando também se estou machucado ou se preciso de ajuda. O mesmo perguntam o dono do boteco e, do outro lado da rua, os funcionários da loja. A todos agradeço e digo que não. Ponho no lugar a tirinha do chinelo e vou embora. Muitos metros depois me chamam. Olho para ver o que querem e as garotas me dizem “esqueceu suas chaves”. Volto para pegar e o cliente do boteco vem até mim com elas nas mãos. Somente posso lhe agradecer e sorrir.
Na tampa do bueiro na calçada, um buraco. Que bom que não quebrei o pé. De volta para casa constato um machucadinho no tornozelo tão grande quanto um grão de areia e nas palmas, mais na direita, pinicações. E tudo me faz sorrir. Se algumas pessoas têm ruindade, todas são boas.


Ofereço como presente de aniversário à
José B. Ferreira Filho, Mª José Anastácio e Juliana Furtado.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito nos dias 22 e 23 abril de 2012.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

ANDO E BALANGO

Obax anafisa.


Para comprar pão desço a rua suja ainda de bloquete. Entre galos e galinhas, gatos e cachorros, porcos e drogados vejo três menininhos de uniforme com logomarca LBV brincado à espera da van que os levará.

Na rua estreita, curta e suja um predinho bonitinho entre casinhas bem feiinhas. Ao seu fim viro à direita e subo o morrinho onde sempre vejo em funcionamento a distribuidora de coco verde. De lá um programa de rádio religioso dita um muito bonito preceito bíblico e depois “Umbanda, Candomblé, macumba, feitiço, espiritismo – a lista é longa – ... se quer se ver livre ouça o Programa Nhenco-nheco. E venha para nossa Igreja Funque Iu”. Paro. A ouvinte me olha vendo um barbudo de bermuda vindo de onde se vendem pedras. Balango chateado a cabeça para o programa e ando.

Deitada na calçada às sete e trinta da manhã parecia uma iara sobre uma rocha ao crepúsculo. Se bem que a iara estaria acordada e ela estava dormindo. Os firmes seios da iara à mostra em contraste com as pelancas murchas dela. As escamas verde-brilhantes da iara seriam um encanto com sua pela louçã e seus longuíssimos cabelos negros. Alvinegra iara ao luar. Verdes... Branca... Negros... A mulher de bermuda dins em cinético verde brilhante se mexe, talvez pelo que sonha, e seu verde brilhante alça vôo em incontáveis moscas revelando o marrom até então escondido.

Desço o morrinho onde está a distribuidora de cocos. Já não há mais nenhum rádio ligado, graças a Deus. Viro à esquerda, entro na rua feiinha com o predinho bonitinho e meninos e meninas brincam de pique. São todos risos e gritinhos.

Apesar de tanto, chego em casa com pão fresquinho e coração quentinho. Começa o dia e a vida continua.


Ofereço como presente de aniversário à

Alessandro Lages, Maxwel Lopes, Luzia di Resende e Valdete Val.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 10 e 16 de abril de 2012.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

SILÊNCIO

Obax anafisa.

Veja os crontos “Ultrapassado!” e “Anjinho da Clarineta”,

postados aqui, no aRTISTA e aRTEIRO, nas duas semanas anteriores.

Escrevo ouvindo Outono, de Vivaldi, e Silêncio, de Beethoven.

Assim como outras músicas dos dois.

E se puder ler ouvindo-as talvez a gente converse melhor.


No meu apartamento peguei o comer e beber e desci à praça para encontrar os meus amigos hippies. Ouvimos Campos cantar, Carmito nos falar do Uruguai, recitar poemas e eu contar minha história. Queria que eles fossem para meu apartamento comigo, mas temi o dia seguinte. Eu, Benito, até eu temi o amanhã. E perdi talvez uma oportunidade de crescer amigos. Mas um dia ainda conseguirei não estar de corpo para estar presente. Um dia serei silêncio.

Quem é Campos? Ele é “Às onze da manhã o sol ardia. Com o paletó no braço, Fabián foi caminhando para o rio. Quando enfim chegou, deitou na grama, entre dois pinheiros ainda vigorosos. Esse rio, que quase não corria, tinha contudo seu encanto. Talvez porque quisesse ser um lago e não era. Seu movimento só era visível na margem, onde de vez em quando vinha lamber a escassa areia”¹.

Amanheceu. Campos e Carmo se levantaram do monumento onde dormiram e foram procurar meios de vender seus artesanatos. Mas o que sei de Campos? Nada. Ou tão pouco.

Cinco anos. Com essa idade Vivaldinho sabe pegar ônibus. Não sabe ler, mas sabe reconhecer os “desenhos” na placa do itinerário para andar na cidade.

Vivaldi Campos é de Joinville e de Santa Catarina se tornou do mundo.

Numa Sexta-Feira da Paixão saiu para comprar pão e um sujeito magro lhe pede dinheiro para comprar cigarros e fósforo. Interessante, que o cara nem tentou disfarçar o uso do dinheiro. Foi sincero e isso, talvez, o cativou em parte.

- Eu não fumo, mas vem comigo à padaria, que lá eu lhe compro.

O pedinte aponta para direção contrária e diz querer ir para lá.

- Não tenho trocado. Terei que comprar meu pão para lhe dar o que quer.

Sem outra opção, concorda e caminham lado a lado. Campos ouvindo o cara se dizer satisfeito por não ter-lhe recusado o aperto de mão. Parece que muita gente não aceita tocar-lhe, como se fosse algo pestilento.

O estranho dá uma estacada por ver no chão uma nota de R$10,00. Pega sorrindo e diz que Campos lhe deu sorte.

- Qual é seu nome? – Pergunta ao outro se afastar. A resposta é um sorriso – Eu sou Campos. Vivaldi Campos. E você?

O rapaz responde e com o nome dele na cabeça, o nosso jovem pensa que seria legal se tornarem recém conhecidos. Quem sabe futuros amigos.




Carmo é “Um preso sonhou que estava preso. No chão do sonho corria uma lagartixa; no chão de verdade um rato o fitava. (...) Depois de incontáveis sonhos e vigílias, chegou uma tarde em que, dormindo, foi sacudido sem a brutalidade habitual, e um guarda o mandou levantar porque lhe haviam concedido a liberdade. (...) Na rua ninguém o esperava. Começou a andar. Andou por dois dias, dormindo à beira da estrada ou entre as árvores. Quando por fim chegou à casa da irmã, ela quase desmaiou com a surpresa. Ficaram abraçados uns dez minutos. Depois de chorar um pouco, ela perguntou o que estava pensando fazer. Agora, tomar um banho e dormir, estou completamente arrebentado. Depois do banho, ela o levou até um desvão onde havia uma cama. Não um catre imundo, mas uma cama limpa, macia e decente. Dormiu mais de doze horas seguidas. Curiosamente, durante esse longo descanso, o ex-preso sonhou que estava preso. Com lagartixa e tudo”².

Amanheceu. Campos e Carmo se levantaram do monumento onde dormiram e foram procurar meios de vender seus artesanatos. Mas o que sei de Carmito? Nada. Ou tão pouco.

Irma del Carmen numa praça olha para os céus. Enquanto isso a pocinha à sua frente se ascende sem ela se dá conta. Olha para o papel que lhe mareja os olhos. Olha para sua barriga e sorri. Com a última gota que sobe, desce sua última lágrima do dia. Ela se levanta e o sol se deita.

Era uma casinha. Sala, dois quartos, cozinha. Os móveis, as roupas, as pessoas, as almas, as alegrias. Tudo pequeno, mas nada era pouco. Tinham fartura ou pelo menos não havia carência. As palavras eram ilhas pequenas cercadas de muito silêncio.

Vez ou outra Irma ficava ereta, na ponta dos pés, movimentava sua mão direita, depois a esquerda e todo o corpo bailava o silêncio. Em sua cabeça Vivaldi, Beethoven, Villa Lobos.

No início Carmito dançava na mãe, depois em seu colo e logo após com ela. Assim ele crescia. Dançando e lendo Eduardo Galeano, Mario Benedetti, Juana de Ibarbourou, Horácio Quiroga, Constancio Vigil, Monteiro Lobato, Ruth Rocha. “Cantaré lo mismo: ‘Mis manos florecen. \ Rosas, rosas, rosas a mis dedos crecen’. \ ¡Y toda mi celda tendrá la fragancia \ de un inmenso ramo de rosas de Francia!”³.

- ¡No! É pecado inmundo...

- Madre...

- Fique como digo o vas como é.

- Tengo medo...

- Fique como digo, entonces.

- ¿Madre?

- Entonces, vas como usted é.

Na Praça Nereu Ramos, no Centro de Joinville, Carmito está sentado diante do palco vazio com um cigarro aceso, olhando seus pés.

- Oi!

Carmito levanta o rosto para a voz. Não sorri para o sorriso do outro.

- Lembra-se de mim? A gente se viu hoje e...

- ¡Si! Yo me lembro.

- Posso me sentar?

- La plaza é pública.

- Coincidência nos encontrarmos.

- Si usted dices…

- Ah! Desculpa. Se estou incomodando…

- ¡No! ¡Perdóname! Fiques por favor. – Sorri para o sorriso do outro.

Observo o tempo. Carmito e Campos eu observo no tempo.

Em minha cama penso até adormecer num artista Estátua Viva me agradecer com mensagens num papelote. Então com pássaros cantando eu acordo. O que eu quero? Quero um dia ainda conseguir ser silêncio. Não precisar falar para me comunicar. Não estar de corpo para estar presente. Um dia serei silêncio. Por enquanto, treino.

Alimentado saio para rua. Vivo o dia e, voltando para casa, três hippies me oferecem seu artesanato. Compro um pingente e ofereço-lhes comida.

- Eu sou Benito e vocês?

- Eu sou Thiago. Com th. Eles são Letícia e Tiago, sem th.

- Se vocês esperarem uns minutos trarei algo para nós quatro.

A surpresa deles se transforma em sorrisos. Tiago e Letícia estão se tornando pais juntos e Thiago os acompanha desde a Bahia. Creio que nossa amizade se formará ao Luar.


Ofereço como presente de aniversário à

Marcos Inter, Demétrio N. Gualberto, Thayná Macedo, Jeová P. Jesus.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 01 e 09 de abril de 2012.

Importante dizer:

A ilustração é de Tiago Costa, meu parceiro no CRONISTA DE 5ª.

O trabalho foi feito para outro texto, mas devido a alguns desencontros acabou não chegando a tempo. Observando a obra dele (recomendo que se atente para a riqueza dos detalhes. Aliás, como deve ser feito com tudo que ele faz); mas como ia dizendo, admirando o trabalho do Tiago vi que ele tem muita ligação com o encerramento das três estórias de Benito, Campos e Carmito.

¹ BENEDETTI, Mario – Correio do Tempo: tradução de Rubia P. Goldoni – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007 – conto Ausências. ² Idem – conto Sonhou que estava preso.

³ IBARBOUROU, Juana – poema El Dulce Milagro – http://www.taringa.net/posts/arte/3690381/Poemas-de-Juana-de-Ibarbourou.html

segunda-feira, 2 de abril de 2012

ANJINHO DA CLARINETA

Obax anafisa.

Veja o cronto “Ultrapassado!”,

postado aqui, no aRTISTA e aRTEIRO, em 26-3-12.


São três da manhã. Eu moro diante de uma praça, a principal do Centro de Ipatinga. Lugar onde o sexo pode ser profissional e a droga, banal. Em uma de suas frentes, à minha direita, se encontram a Prefeitura, a Câmara dos Vereadores, o Fórum e um grande posto policial. À noite o silêncio aumenta, mas as vozes nunca silenciam. Olho pela janela e vejo “errantes”¹ zumbiando com sua eterna fome de carne humana. Mas não há humanos. Ninguém é alguém.

Não! Não quero refletir coisas duras a essa hora. Então meu olhar vaga pela janela pensando na conversa que tive no faceboock:

- Eu quero um Shar Pei fiote, alguém sabe onde tem aqui em Ipatinga?

- E por que tem que ser filhote? Filhote nunca se sabe como será quando crescer. Mas adulto te amará do mesmo modo e ainda se sabe como ele portará.

- Uai e qual a graça de pegar cachorro já cuidado? Ele vai ser meu filhinho, por isso tenho que cuidar dele desde pequenininho.

- Ter filhote é bom. Sinto-me satisfeito de ter o Haicai desde que desmamou. Meu bassê tem 17 anos e é lindo. Tive a Cam e tenho Decidido e Vitório. Três viralatas que achei nas ruas, já crescidos. Qual deles me ama mais? Todos me amam de um modo próprio, único. Apesar das diferenças na manifestação do amor não se percebe na intensidade. Filhote é legal. Mas adulto também é puro amor. Os meus três “filhos” são incríveis.

- Ah tá, mas mesmo assim ainda quero um fiote.

Sorrindo volto para cama e pego o livro Cuentos de amor, de locura y de muerte”, pertencente à coletâneaContos Latino-Americanos Eternos”. Depois que conheci uma dupla de hippies, um brasileiro e outro uruguaio, fiquei curioso com a literatura “de la República Oriental del Uruguay”. Que que tem lá? Só a América do Sul são doze países e, ainda hoje, mais duas colônias. Sempre ouvimos alguma coisa sobre certos países, mas nunca ouvi nada sobre outros, entre eles Uruguai e as colônias: Ilhas Malvinas (que a Inglaterra surrupiou de “nuestros hermanos argentinos”) e Guiana Francesa. Conversando com Carmito fiquei sabendo que o seu é o único país que, não falando português, tem o estudo obrigatório do nosso idioma, que, apesar de ser o segundo menor país da América do Sul, é um dos mais economicamente desenvolvidos, o segundo menos corrupto, é o primeiro país latino-americano a legalizar união civil entre pessoas de mesmo sexo e de sexos opostos, assim como a adoção por homoafetivos. Mas chega de falar do Uruguai, deixe-me compartilhar um pouco de sua literatura que vi traduzida na internete:

“Sua lua-de-mel foi um longo estremecimento e o temperamento duro do marido gelou suas sonhadas criancices de noiva. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrá-lo. \ A casa em que viviam influenciava um pouco nos seus estremecimentos. A brancura do pátio silencioso — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Por dentro, o brilho glacial do estuque, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de frio desagradável. \ Teve um ligeiro ataque de gripe que se arrastou insidiosamente dias e mais dias; Por fim uma tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço dele. De repente Jordão, com profunda ternura, passou a mão pela sua cabeça, e Alicia em seguida se quebrou em soluços, e o abraçou. Chorou demoradamente seu discreto pavor, redobrando o choro diante da menor tentativa de carícia. \ Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações, confusas e flutuantes no início, e que desceram depois até o chão. \ Alicia morreu, por fim. A empregada, que entrou depois para desfazer a cama, já vazia, olhou um momento com estranheza para a almofada e disse: Senhor! Na almofada há manchas que parecem ser de sangue”².

Deu-me sede. Vou à cozinha e na volta vejo a lua lá fora e, mesmo não querendo me prender às durezas da vida, na praça um homem chora e uma mulher esbraveja tirando-me de mim.

- Non, ¡pare! Yo no hago más. ¡No me golpees!

- Calaboca, salafrário! Cê acha que toaqui para sustentar vagabundo?

- ¡Perdóname, perdóname!

- Você dá praeu e te uso como quero.

- ¡Si, si! Yo soy de usted. Pero no me pegues, más. ¡Por favor!

- O que as criente qué, ocê faiz. Num tem quiscolhê, não! Só faiz uquetimândam.

- ¡Si, si! Yo aprendí la lección. Voy a obedecer.

- Quer craque? Vai ter que pagar?

Vejo a mulher bater um pouco mais em Carmito e depois sair rindo. O rapaz, chorando, a segue de joelhos.

Engulo em seco. Que aconteceu com Carmito? Onde está Campos?

Volto para minha cama, abro o livro em qualquer página e um papelzinho me fixa. Nele um anjinho toca uma clarineta e diz um versículo bíblico. Mexo em meu bolso e vejo outro papelzinho com o mesmo desenho e com uma fala de Masaharu Taniguchi. Meus olhos úmidos embotam. Em dias diferentes da mesma semana contribuí com moedas a uma estátua viva e em retribuição me deu as mensagens. Vejo-a: um homem sobre uma caixa e envolto por um manto de seu ombro esquerdo, rodeando a cintura e acabando no tornozelo direito. Tudo cinza. Imóvel até receber algo. Então, roboticamente reverencia, pega em uma de suas dobras uma mensagem e entrega. Paralisando-se em seguida.

Pensando no artista deito, apago a luz do abajur e finalmente durmo sonhando com Campos e um Carmito livre.


Ofereço como presente de aniversário à

Vera H.S. Rossi, Magali “Linda” Santos, Gledson Pagung, Rosane Dias, Lúcio Braga, Marcone Alvarenga, Carlos Passos e Mel de Faria.

Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Escrito entre 20 de março e 02 de abril de 2012.

¹ The Walking Deadhttp://www.baixartv.com/download/The.walking.dead/

² A almofada de penas (trechos), do escritor uruguaio Horacio Quiroga – http://www.releituras.com/hquiroga_menu.asp