domingo, 28 de março de 2021

CARTA AOS QUERIDOS


 Ipatinga, dd de mm de 2021


J.G.,

 

Sem nenhuma brincadeira. Eu te acho lindo, iluminante como o sol. Realmente! Sua presença é muito afável. Tenho uma imensa satisfação toda vez que você está aqui.

Apesar de meu marasmo, do meu querer ficar quieto; não querer sair, ficar quietinho... Sinto-me satisfeito com sua presença. Quando você está aqui é tão agradável. Tão agradável quanto ter um livro.

Uma pessoa que conhecemos e gostamos postou no Caralivro um meme, acho, de dois coelhos. Um diz “Eu me apaixono fácil” e o outro responde “Você é carente”. No início compreendi carente como insatisfeito e a pessoa insatisfeita é a única que nunca pode ser ajudada, pois nada nem ninguém lhe satisfaz. Depois entendi carente como carente mesmo. Rerrê. E escrevi na postagem:

O carente é difícil para alguém poder satisfazer. Se conseguir sentir-se bem consigo mesmo é o melhor caminho. Ser misantropo é outro caminho, mas não é bom.

O que não disse é que sou ou estou misantropo. Não foi totalmente uma escolha direta, mas uma série de pequenas observações sobre o mundo e uma série de pequenas escolhas de como reagir somada a outra série de pequenas contrarreações me conduziram à aversão à sociedade. E consequentemente à melancolia. Pois a misantropismo é isso: melancolia e querer distância do ser humano. Ou será melancolia por querer distância das outras pessoas? Não sei. Não sei. Mas estou desanimado com a civilização.

Emília e Visconde de Sabugosa têm uma discussão sobre a redução no tamanho das pessoas no capítulo Revelações do livro A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato.

A “Humanidade clássica”, como disse Visconde, construiu a civilização. Ou seja, “casas, máquinas, estradas, veículos, ideias” e tudo isso se perde com a redução no tamanho dos humanos. Na guerra na Rússia muitos soldados morreram congelados, mas Emília não se horrorizou com essas mortes, pois já estavam matando-se. “Os homens não viam outra solução além da guerra – isto é, matar, matar, matar, destruir todas as coisas criadas pela própria civilização. [...] Essa tal civilização havia falhado. Havia enveredado por um beco sem saída – e a saída que achava qual era? Suicidar-se a tiros de canhão.”.

Sabe, um livro, pra mim, é uma das coisas mais maravilhosas. Mesmo que ele esteja fechado, ao meu lado. A presença do livro me dá uma tranquilidade. Produz-me percepções e sensações sobre a vida. Como esse poema de Fernando Pessoa:

O que há em mim é sobretudo cansaço

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo.

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis

As paixões violentas por coisa nenhuma

Os amores intensos por o suposto em alguém.

Essas coisas todas –

Essas e o que falta nelas eternamente –.

Tudo isso faz um cansaço.

Este cansaço.

Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada –

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles.

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser.

Ou até se não puder ser...

E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço.

Não me sinto cansado. Sinto desânimo. Disse alguns dias atrás o que venho pensando há meses. Para me sentir cansado deveria ter feito muito mais. Tenho desânimo porque minhas façanhas não podem ser chamadas de muitas; e são tão infecundas quanto a satisfação pelo cansaço de Pessoa. E neste momento que estou tratando-me de depressão, de ansiedade e de covid às vezes não consigo ler; não tenho energia para ler. Mas ele, o livro, está ali; dá-me um relaxamento.

Ou quando olho para eles na prateleira sinto-me renovado. Não sei explicar. É algo semelhante aos cachorrinhos, à gatinha e aos antúrios que tenho em casa. Eles dão um ânimo novo pra gente... Uma força!

A pessoa está tão desgastada e olha para um livro e ele te energiza. Se fechado o livro já faz assim, imagine aberto... Lendo!

 

Abraços!

 

RL

 

 

Ofereço como presente aos aniversariantes:

Julian A. Cabral, Girvany de Morais e João F. Alcino.

 

Recomendo a leitura do livro e do poema indicado no texto.

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

 

Escrito no início da linda manhã de sábado do dia 30 de janeiro de 2021. Trabalhado entre os dias 20 e 28 de março do mesmo ano.

domingo, 21 de março de 2021

A ARTE PODE DAR PAZ


ou O QUE SABE UMA ÁRVORE

 

 

A primeira parte dessa história pode ser lida em:

http://artedoartista.blogspot.com/2021/03/ha-o-que-vale-mais-do-que-as-pessoas.html

 

Esta história se passa em Ipatinga. Após um sábado adormecido e nublado, mas num domingo amanhecido e quase ensolarado. Aproveitando o silêncio do domingo coloquei algo para comer e duas cervejas numa bolsa térmica, peguei uns livros, meu celular e fui de bicicleta ao Centro de Oncologia e Radioisótopos. Se tinha que ir seria hoje ou continuaria enrolando. Sim, senti-me muito fatigado ao chegar, mas queria fazer um exercício. Entrei e, claro, não consegui consulta para aquele dia. Só fui porque me sentia corajoso o suficiente. Marquei para duas semanas depois.

Em frente há muitas árvores. Uma delas me chamou a atenção. Parece comigo. Sou uma árvore. Sentei-me na grama, de frente para ela, li umas páginas de A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, e fiquei a pensar no que Emília disse sobre os animais saberem arrumar-se num mundo tão grande:

Também saberemos. Sabem porque foram aprendendo. Nós também aprenderemos, por que não? A professora é uma velha feroz, que não perdoa aos lerdos e preguiçosos. Chama-se Dona Seleção.

Comparei essa fala com a esperança de muitos em 2020: A sociedade vai aprender muito com essa pandemia. Mas em 2021 o que aprendemos foi: o vírus evolui e a sociedade não. E o que mais me dói é não me surpreender. Um ano de covid matou quase mil pessoas a mais que trinta e sete anos de aids. E há mais pessoas temendo o HIV do que o SARS-CoV-2. Dona Seleção, não demore a entrar em ação, por favor.

Olho para a árvore e ouço o que muitos pensam de mim: É um bobo, um tolo coberto de lodo. Sou uma árvore; posso ter musgo, não lodo. Você está cansado! Dizem. Mas não. Cansaço seria se tivesse feito muita coisa pela humanidade. E o que faço não posso dizer que é tanto assim. Eu faço, mas... é improdutivo porque as pessoas não mudam. Não mudam. Pode até ser que alguém mude; realmente aprenda. Isso acho até possível, mas são casos extremamente raros. Um exemplo: um delegado aterrorizou por muitos anos, bem mais de uma década, os usuários de maconha. No pejorativo: “os maconheiro”. – Dou uma risadinha para mim mesmo. – Porém a filha dele ficou enferma e o tratamento precisava de THC. Aí ele mudou... Ai, que romântico. Ele mudou. Parou de perseguir os usuários de maconha. Mudou por...caria nenhuma! É interesse, egoísmo! Porque teria mudado se antes tivesse estudado para que serve a maconha; para que serve o THC. Mas ele não teve interesse. Preferia continuar com sua ignorância e seus preconceitos. Só depois, por ser mercantilista e calculista, passou a agir ao contrário. Então o delegado não mudou. É apenas mais um interesseiro que vai transferir seus ódios e ignorâncias para outros grupos de pessoas. 

Olho outra vez para mim na árvore e faço pelo watzap uma vídeo-chamada para meu filho.

- Oi, Quide! Ontem sua mãe me contou algo que me deixou orgulhoso de você. Quer que eu te conte o que pensei sobre o assunto ou acha que estarei intrometendo-me em sua vida? – Depois que falei pensei “estou sendo indiscreto”.

- Conte!

- Se achar que é intromissão eu me calo...

- Sei lá. – Diz e ri da dúvida do pai.

Um esclarecimento. Sou Ôldi, pai adotivo de Quide. Alguns meses atrás saiu de viagem pelo Sul da América e não me disse o porquê. Um longo tempo depois fiquei sabendo a razão. Ele fora em busca dos pais verdadeiros dele. Achei muito bom ele fazer isso; muito bom mesmo. O que me dói é ele me ver como um pai falso.

Mas voltemos à história:

- A coisa mais importante que ela falou fortaleceu minha concepção de que você fará a diferença na cidade onde viver. Posso continuar? Creio que será curto o que vou dizer daqui pra frente.

- Fale logo!

Desconfortável por chamar o outro de pai como se ele fosse o verdadeiro:

- Você falou para seu – engoli em seco – pai algo assim: “Tenho dinheiro, mas não sei o que fazer com ele, pois não me dá paz.”. Realmente, de você só posso esperar pensamentos inteligentes, dignos. Dinheiro não dá paz. Mas não dá para viver sem trabalhar. Então o que fazer? Trabalhar nesse serviço chato e com a grana que entrar comprar livros, pagar uns estudos, consumir as artes cinematográficas, teatrais, musicais etc. Mas o mais importante: A arte pode dar paz. – Meu filho é malabarista, artista de rua. – Que tal tirar meia hora por semana ou um dia sim e outro não para ir ao faro, ou praça ou ao parque e malabarear apenas para fazer as pessoas sorrirem, aliviarem de seus pesos.

- Minha mãe é bem intrometida.

- Tem gente que fará cara de nojo. – Ignoro a fala dele e continuo: Outros irão parar por alguns segundos para ver. Outros vão continuar andando enquanto olham sua arte. Se for de manhã dará energia para enfrentar o dia. Se for no final da tarde dará alívio. No caso “dos cara de nojo”, aí é problema dele não se sentir melhor. Nos dois casos seguintes você lhes terá dado paz.

- Mas fazer o quê? – Agora é ele que ignora o que eu disse. – Minha mãe não mudará mais.

- Nós, os velhos, somos intrometidos...

Uma pausa para bebermos um gole de cerveja e responde aos meus comentários:

- Sim, falei isso pro meu pai. Mas meu peso é outro. A minha cruz é outra.

- Por isso pedi sua autorização para ingerir. – Mais um gole de cerveja. – Qual é sua cruz?

- Não acho que preciso falar para você.

- Tranquilo.

- Não falo isso pra ninguém. Não me leve a mal.

- Como disse, não me quero imiscuir. – Mas me senti mal por não confiar em mim. – Apenar dizer que te quero bem, muchacho. Não me ofendo.

- Eu sei e te amo por isso, amigo. – Amigo!?! Como isso me magoa.

- Cada qual tem seus segredos. Coisas que prefere guardar para ti.

- Isso!

- Acha que tem coisas que conto para os outros? Nem para a psicóloga conto tudo...

Ôldi muda de assunto:

- Vou trabalhar agora. Estou fazendo a revisão em português de um livro que se chama Magnânima, de Flávia Frazão... Quando puder a gente conversa. Abraço! – Uma pausa e acrescento: Só não fica chateado com sua mãe. Pois ela me fez feliz ao dizer-me sua visão do dinheiro. Tenha um bom trabalho.

- Gracias!

- Só me conte o que se sentir confortável ou precisar. Vou indo, pois amanhã também vou trabalhar. Será sábado letivo e darei aula remota.

- Está bom assim. – Sua voz parece levemente irritada, mas continuo:

- Só recomendo uma coisa: Não se cale se precisar falar. Agora peço licença porque vou para casa me dedicar a revisar o livro e depois gravar um vídeo aula para amanhã passar para meus alunos e não poderei mais conversar no momento. Abraços!

Mas o que faço depois de desligar a vídeo-chamada é olhar para a árvore, tomar um gole da cerveja e soluçar. Paro um pouco meu soluço e acesso ao youtube. O primeiro que aparece é As Vantagens de Ser Bobo, de Clarice Lispector. Do bastante que é dito ouço e reflito apenas:

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. Mas não estou tocando nem o coração do meu filho, por mais que o veja e ouça dentro de mim. O bobo é capaz de ficar sentando, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando”. Realmente, já se passou uma hora que a conversa terminou, mas confesso que estou mais sentindo do que pensando. Sou um bobo e como tal confio na palavra das pessoas e por isso sou apunhalado tantas vezes por aqueles que menos espero. Realmente reclamo pouco, mas muito exclamo. E quando reclamo sobeja exclamações, interjeições e se não pergunto é porque desvalorizo as respostas que me darão. Lispector fala que os bobos provocam amor. Não sei. Não sei. Mas como bobo amo em excesso. E só o amor faz o bobo. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Se venci ou vencerei nunca saberei assim como esta árvore.

 

 

Ofereço como presente aos aniversariantes:

Aléxia Silva, Maria Cloenes, Manoela S. Bicalho, Ana L. Pena, Diony Stefano e Girvany A. Morais.

 

Recomendo a leitura dos livros e áudios citados no cronto.

 


Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

Árvore com musgo: foto de Marcelo Soares Marinho.

Foto do autor pelo autor.

 

Escrito entre os dias 12 de dezembro de 2020 e 21 de março de 2021.

domingo, 14 de março de 2021

FOI COMPRADO A DINHEIRO

 

PERIGO!

Este cronto é o quinto de uma novena a pensar criticamente a Bíblia. Se isso te amedronta pare por aqui. Está avisade. Se continuar será por sua conta e risco. Não me responsabilizo pelo desconforto que sentirá, pois é difícil não ser misantropo quando se tem neurônios funcionais.

 

Se alguém ferir seu escravo ou escrava a pauladas, e o ferido lhe morrer nas mãos, aquele será punido. Se sobreviver um dia ou dois, não será punido, porque foi comprado a dinheiro.

(Êxodo 21, 20-21)¹.

 

Pais e professores de Ipatinga, Fabriciano e Timóteo mais alguns membros do Sindicato dos Servidores Públicos de Timóteo discutem numa reunião onlaine pelo “gúlgu míti”. Os temas são ensino presencial ou ensino remoto e desajuste salarial. Os participantes variam de cinquenta a setenta. Após meia hora de discussão com muitos “Só Jesus na causa”, “Deus tenha piedade”, “Deus nos proteja”, “O pastor disse”, “Deus te conforte”, “Deus tudo pode”, “Só Jesus pra nos salvar” e outras tantas interjeições religiosas e poucas pontuações relevantes, tomo a fala:

- Sob meu telhado o tamborilar da chuva me consola. Sob o alheio telhado a chuva desola. Cada um por si e Deus por todos?

Paro um instante para pensarem “O que isso tem a ver com a reunião” e continuo:

- Na calçada do outro lado da rua, não em frente aonde moro, mas uns quinze ou vinte metros, talvez trinta à esquerda uma lona de três metros de comprimento, um e meio ou menos de largura e “parede” de dois metros de altura. Dentro, o chão de barro foi forrado de estrado e amaciado por tapetes velhos. Caixas de madeira e plástico guardavam roupas e comidas. O curioso é que ao passar por lá eu via uma casa. Sim, casa bem cuidada. A moradora era uma mulher negra heterossexual traficante chinfrim de pedra. Sempre com um facão na cintura.

Uma professora diz: “Deus é conosco”. Após uma pausa retomo a palavra:

- No Caralivro tenho visto postagens referente a um rapaz que chora por ser homem, branco, heterossexual e ter dinheiro. Uma dessas postagens disse que o garoto é cantor ator filho de um cantor ator. Disso constato a presença de classes sociais reais e classes sociais hipotéticas.

Deixo-os refletir o que eu disse. Mas a maioria prefere ter a cara de “num tô intendo nada”.

- Primeira classe: homem, branco, hétero, com dinheiro. Segunda classe: homem, branco, hétero. Terceira classe: homem, branco. Quarta classe: homem. Quinta classe: homem, hétero, negro, com dinheiro. Sexta classe: homem, hétero, negro.

Observo pela tela do meu celular os poucos rostos que posso ver:

- Repare que para as três primeiras classes ser branco é a segunda coisa mais importante e que na quinta e na sexta classe ser hétero é o segundo mais importante fator enquanto ser negro é o terceiro.

Os parágrafos abaixo estão na mesma fala, mas as separo no texto escrito para permitir a quem me ler ter algumas pausas para pensar no que digo.

- Sétima classe: homem, negro; aqui foi ignorado a heterossexualidade, porque isso pertence à segunda classe e a oitava classe seria ser homem, mas isso faz parte da quarta classe. Aí tem um paradoxo ou ao menos uma curiosidade. Ser homem e negro é possibilidade, mas ser negro e homem não tem relevância. Então oitava classe não é possibilidade.

- Mas a nona classe existe: mulher, branca, com dinheiro, heterossexual.

- Veja que para a mulher heterossexualidade é o menos importante porque ainda vigora inconsciente a ideia que mulher não tem sexualidade. Décima classe: mulher, branca, com dinheiro. Décima primeira classe: mulher, branca.

- Se mulher tivesse real importância a décima segunda classe seria essa.

- Ser mulher, com dinheiro, negra, heterossexual quase chega a ser uma classe social se o segundo fator existir. – Pense então como é quando qualquer uma dessas características vai diminuindo.

- Ignoro a causa do lamento do garoto. Se ele inconscientemente vislumbra suas vantagens. Se promove autopropaganda. Se conscientemente reconhece suas vantagens.

- Essa última possibilidade pontuada acima me leva a pensar se continuará a chorar suas vantagens até o último suspiro; se fará algo que remova a consciência de seu pesar; se fará algo para modificar o mundo. Ou se a abafará...

- Você está falando e não está chegando ao ponto.

- Oh! Estou sim. Pensem nelas, por gentileza... Permita-me continuar.

- Sei, sei. Modificar o mundo é impossível. Mas é possível usar suas vantagens para combater as desvantagens. É assim que muito ateus e poucos religiosos dizem e praticam: Temos a obrigação de estender a mão a quem tem fome. O inverso também ocorre. Muitos religiosos e poucos ateus dizem e praticam: Há que multiplicar a comida de quem não tem...

- Já foi amplamente dito por grandes intelectuais e minha insignificância repete “Pessoas desesperadas viram trabalhadores ideais e cidadãos desorientados”. Como?

- Após minha graduação fiquei quase dois anos desempregando; trabalhei por pouco mais de um ano e fiquei desempregado. Em cada um dos dois momentos sem trabalho entreguei centenas de currículos. Minha sorte foi ter sido convocado a efetivar-me como professor em Timóteo devido a um concurso prestado ainda no segundo semestre na universidade. Devo ressaltar que estava quase velho quando me graduei. Faltava poucos anos para sair dos quarenta.

- Hoje, será que isso deixa gente mais velha com esperança? Só se for ingênuo. Tiraram e continuam eliminando os direitos trabalhistas.

- Parabéns por sua posse.

- Obrigado!

- Nós gostamos muito de nossos funcionários. Queremos tão bem que os manteremos aqui até a morte. Vocês nunca se aposentarão.

- Essa é a realidade. Sem previdência social. E a PEC 186 congelou até 2036 os reajustes salariais dos professores, médicos, enfermeiros, policiais e outras categorias.

- Sou advogado. Não fui atingido.

- O senhor escolheu bem a carreira. Advogado não é funcionário público. O presidente ainda não arranjou um meio direto de prejudica-los. – Comecei a fala inicial deste parágrafo com ironia e a fecho com um sorriso debochado. – A PEC 186 congela os reajustes salariais de professores, médicos, enfermeiras, policiais e outras categorias. Mas seu dinheiro vem de nós – professores, médicos, policias etc. – e não teremos como contratar seus serviços. – Dou uma pausa para apreciar a cara do eleitor do Boçalnato. – Também lojistas, engenheiros e outros trabalhadores que igualmente receberiam da gente não poderão contratar seus serviços porque também não poderemos pagá-los. – Falo sério, com irritação, mas em tom frio. – Ao fim estamos todos sendo mortos pelo presidente. Está ocorrendo cortes nos programas sociais e eliminado o SUS para os convênios médicos serem sua única opção; e como ficarão caros.

O advogado eleitor do Boçalnato em silêncio me diz muito com seu olhar irritado. E continuo:

- Veja o auto custo do ensino; lembre-se querem acabar com a escola pública e já as estão sucateando e desmantelando os professores. Tenho a impressão que um filho seu estuda no Tiradentes. Os professores dele trabalham numa escola pública militar. – Tenho asco da estupidez e crueldade dos boçalnariano. – Em Timóteo os professores da rede pública municipal querem trabalhar, mas de modo remoto por causa do covid. A prefeitura parece querer: “trabalhe presencialmente ou então não trabalhe”, pois tem impedido de todas as formas, até judicialmente, o ensino remoto. Em Ipatinga a prefeitura não cumpre o próprio protocolo de proteção ao covid nas escolas. Como prova um documento feito por professoras em diversas escolas e entregues à deputada Beatriz Cerqueira que o apresentou numa reunião ordinária da Câmara, em Belo Horizonte.

Uma mãe diz e a respondo:

- Ensino remoto não é bom.

- O ensino presencial é o ideal, mas não ter aula é pior que aula remota.

- Mas voltemos ao pensamento ficar seis meses sem emprego. No desespero está bom qualquer salário para fazer qualquer coisa em qualquer condição, mesmo que longe de sua família e trocando sua casa própria ou digna por uma tenda na calçada...

Como fiz acima – dar espaços para quem ler o cronto pensar – refaço:

- Com tudo isso como se preocupar com os direitos das minorias se busca emprego? Como se preocupar com os problemas ambientais se tem contas a pagar? Como se preocupar com reforma agrária se precisa alimentar a si e aos filhos? Como pensar nos refugiados se nem comprar remédios pode? E como pensar a longo prazo se seus problemas são para agora?

- A casa da usuária traficante de crack foi queimada e a mulher desaparecida. Não vi como ocorreu. Só os pedaços da lona derretida, o carvão das caixas e a cinza dos tapetes.

- Sei que o marido dela tentou furtar, mas foi pego e disseram que roubou. Preste atenção! Tentou furtar e afirmaram que roubou. Entendeu?

- Na cadeia ele aprendeu com os outros pretos que todo preto tem direito a trabalho, moradia e laser. Trabalhar no tráfico, morar na favela e férias na prisão. Mas seu aprendizado não durou muito. Numa rebelião ele e outros pretos morreram. Os pretos sobreviventes e os brancos foram punidos.

Paro um pouco a reunião para conversar com quem está me lendo:

Mas quem ensinou isso aos pretos? Quem?!? Como combater esse conceito? Digam-me, por favor!

Quem matou Marielle Franco? 14 de março de 2021 se completam três anos que foi assassinada uma militante dos direitos humanos, das mulheres negras e da diversidade. E os brancos que a mataram - isso se sabe - continuam livres, leves e soltos. Ai, como dói o que Rubem Leite diz:

Há tanto peso no coração

Só se sente leve

Quem não dá a mão

Quem ao outro nunca se leve.

Lima Barreto.

Cesare Lombroso! Um médico italiano “comprovou cientificamente” que o formato da cabeça, a posição do redemoinho dos cabelos e a etnia mostram a inteligência e o grau de violência de cada pessoa. Ele foi o estopim para que médicos como Cipriano de Freitas publicasse mesmo sem comprovação científica a depravação física, mental e moral dos negros e mestiços. Souza e Cruz poetizou que o negro está preso entre quatro paredes: a igreja, a ciência, a sociedade e as leis. A igreja que diz que negro não tem alma; a ciência falei acima; a sociedade que os vê como inferiores ou não os vê...; e as leis que vigoravam no século XIX contra eles e que apesar de não mais existirem deixou sequelas.

Sinceramente! Não estou com vontade de voltar à reunião “onláine”, pois minha misantropia deu um grito então desisti, pois sei que não responderão. Isso exige cérebro e boçalnariano, se tem, não o utiliza. Sem me despedi, saí. Sei que voltearão, voltearão e não irão ao cerne da questão. A segunda pergunta deixo para quem me ler, pois se chegou até aqui tem estômago para aguentar tanta amarga acidez e cérebro para pensar.

 

 

 

A legitimidade da escravidão é o tema de Êxodo 21, 20s. Observe que não importa a morte do escravo, desde que seja no dia seguinte...

 

Recomendo a leitura de:

“Lavada Carne Fraca” e “Lockdown”, ambos de Glaussim:

https://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/7197116

https://www.recantodasletras.com.br/contos/7204825

“O Infindável Museu das Coisas Efêmeras”, de Éder Rodrigues. Pode ser adquirido:

https://www.facebook.com/ederdelrodrigues.literatura/about_contact_and_basic_info

“Instalações Subterrâneas”, Bispo Filho:

http://bispofilho.blogspot.com/2021/03/instalacoes-subterraneas.html

 


Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

LOURENÇO, Ana. Nova Proposta de Redação: a persistência do Racismo. Disponível  https://guiadoestudante.abril.com.br/blog/redacao-para-o-enem-e-vestibular/nova-proposta-de-redacao-a-persistencia-do-racismo/ . Acesso 14 Mar 2021.

Capa do livro Lima Barreto: triste visionário, de Lilian Moritz Schwarcz. Foto do autor do cronto.

Foto do autor pelo autor.

 

Escrito entre 05 de fevereiro e 14 de março de 2021.

domingo, 7 de março de 2021

HÁ O QUE VALE MAIS DO QUE AS PESSOAS

  

- No ofrezco fiestas a ti. Solo palabras y mi corazón de padre.

- No sos mi padre. Solo es mayor que yo.

 

Jede Einschränkung ist für den Künstler anregend.

(João Guimarães Rosa em uma entrevista na Alemanha. Minuto 5:45: https://www.youtube.com/watch?v=ndsNFE6SP68 )

 

Caras mulheres, não lhes anseio nada que que as pessoas te desejam “no seu dia”; apenas grito: Façam!

Homem não faz nada que não seja sob orientação de mulher. Até Jesus só começou a Sua missão depois que Sua Mãe mandou.

 

 

As dez da manhã do dia 31 de janeiro de 2019 Ôldi recebeu a notícia de Quide que iria viajar sem comemorar a passagem do ano com o pai. Após uma tensa conversa, as últimas palavras do filho:

- Não é meu pai; apenas me adotou.

No passar de 2020 se falaram pelas mídias sociais; no meio de janeiro Ôldi ainda buscava entender “como não sou o pai” e quando março estava quase no fim:

- Olá, tudo bem? Houve um pequeno problema no meu watzap e perdi todos os contatos. Se for de seu interesse. Se tiver realmente alguma vontade manter contato por watzap, adicione-me, por favor. Mas caso contrário, prefira manter um distanciamento, um silêncio. Aceitarei tranquilamente, de bom grado. Cada um cuidando da própria vida; seguindo seu caminho. A gente se gosta, tem afeto, mas talvez prefira o silêncio. Daí, se quiser ter real contato; se acha que vale a pena adiciona-me. Abraços.

Ôldi se calou.

A dor de cabeça está terrível. A vontade de que o dia acabe e a noite não termine não se realizam nem após o uso de quatro pílulas para dormir. Duas às duas da tarde e outras mais as dezoito horas.

Ôldi falou:

- Disse precisamos de silêncio. Mas na verdade acho que você necessita de silêncio. Que eu me cale. Não, não estou ofendido. Só estou pensativo. Quero colaborar, quero estar ao lado. Mas se minha presença for agradável, suportável, útil.

O pai se calou para tentar pensar apesar da dor de cabeça.

- Aí, pare e pense! Não faça uma ação irrefletida. E se achar “vale a pena”, contate-me para voltarmos a ter contato no watzap. Caso contrário, fique tranquilo.

- Está falando o quê, homem?!? – O filho riu. “Homem”, não “pai”. – Passe o número.

- O que estou falando? É que tenho notado tantas vezes. Que tenho sido desconfortável, desagradável... Não sei o termo adequado. E meu objetivo não é esse. Se estou sendo pernicioso... – Para diminuir o peso da conversa: Se não conhece a palavra é uma boa chance de buscar no dicionário. – Se estou constrangendo... Então peço desculpas. – A dor de cabeça lhe obriga a pausar a fala por dois ou três segundos. – Mas te amo demais e quem ama questiona. Quem ama busca conversar, apoiar, criticar... E se isso está sendo irritante para você...

Quide apenas ouviu sem nada dizer.

Julho chegou e passou. Ôldi então continuou:

- Quem ama faz comentários, fala, preocupa-se, pensa... Só as pessoas que não amam não estão nem aí. Mas se meu amor está sendo incômodo então o silêncio será a melhor opção. Espero que a gente conversa, porque te quero muito. Mas aí é um decisão sua.

- Que isso! Estou ultimamente dispondo de pouco tempo para as pessoas. Para viver como mochileiro há momentos que tenho que me virar com malabares, mas outros que tenho que trabalhar em bares e restaurantes. Isso gasta muito tempo e energia. Principalmente quando trabalho em ambiente fechado tolerando clientes sem máscaras e grosseiros. – Talvez tenha reparado no silêncio daquele que não chama de pai e continua: Acho que por isso pareço distante... Desprezo no comércio é mato. Pior que nos faros.

- Entendo... Acho. Se eu não tivesse a arte estaria destruído, aniquilado. Estou tão abatido que as dezenas e centenas de páginas que lia por dia mal consigo chegar a dez. – Quide não pergunta o que lhe abate. – Apesar disso estou lendo porque sem essas dez páginas não sobrevivo ao dia. Ler! Ler é o que me fortalece. Escrever é o que me alivia do peso, é o que joga fora o que está me machucando. Como disse, estou sem energia, mas esta leitura e esta escrita elas recarregam o suficiente para que eu aguente o dia. Sem a arte, seja recebendo-a ou produzindo-a, eu já estaria acabado. Então a arte é principalmente minha força para resistir. Mesmo que minha resistência esteja rastejado não como se humilhasse, mas como um bebê a engatinhar fortalecendo os músculos para levantar-se e andar. A mim, pelo menos para mim. Não posso dizer pelos outros. Mas a mim a busca de um psicólogo está me ajudando. Hoje perguntei a Cleber Assis, um psicólogo: “O porquê? Pra que serve a psicanalise? Como ela nos ajuda? Como ela funciona? Talvez ele me responda.

Quide apenas escutava. E os dois se calaram.

Chegou 2021.

- Por que leciono? Para tentar fazer meus alunos serem cidadãos. Não apenas formigas num formigueiro. Seguindo regras, aceitando a sua posição. Quero-os cidadãos. Aqueles que participam, que lutam e não apenas sobrevivem. É uma batalha com baixa possibilidade de vitória. Até porque tenho que ponderar bens as palavras porque sofremos censuras das mais variadas fontes e nas mais diversas formas. Mas leciono para continuar a ter força para viver. E escrevo por motivo semelhante. Se na educação tenho que disfarçar as reflexões na escrita posso tascar na cara as violências que sofremos da sociedade. Apesar de quantas e quantas vezes me xingam, agridem. Afinal é como diz a música “Vida de gado. Povo marcado, povo feliz”. Não quero que as pessoas sejam gado. Por isso ensino e escrevo. Para que sejam cidadãs.

Quide nada disse. Então Ôldi perguntou:

- E você, o que está fazendo para as pessoas serem cidadãs e não formigas?

Quide não respondeu e Ôldi continuou:

- Sou uma cigarra e o destino da cigarra é ser devorado pelas formigas ou berrar até estourar. Em ambos os casos, qual é o resultado que ela produz na floresta? Não me importa a resposta. Berro como uma cigarra. Enquanto berro alguém sempre escuta algo. E talvez, apenas talvez, isso possa fazer alguma diferença na floresta ou ao menos no formigueiro. Com ajuda da educação, da leitura, da escrita, da psicanálise, de meus cães e de alguns amigos a gente quando cai se levanta, sacode a poeira e continua a caminhada.

Olhou o relógio. Cinco e meia da manhã. Encerrou a conversa sem dizer o motivo. E o garoto sem perguntar. Só se despedem. 

No dia onze de fevereiro sua mãe, dona Etienne, fora internada por suspeita de covid. Por ter noventa e um anos necessitava cuidador. O protocolo exigia troca de acompanhante somente após vinte e quatro horas após a entrada. 

O Hospital Municipal de Ipatinga há quartos com espaço para quatro leitos, mas estão com cinco e alguns estão sem a campainha para chamar enfermeiras. Filas de formiga caminham pelos cantos. Apesar não nos enojar, são tão imundos e infeccioso quanto às baratas. Paredes e portas descascadas e lascadas. Assim como ausência de vidros nas janelinhas das portas. Os acessos para os quartos ou dos banheiros estão desnivelados, não fechando. Goteiras em todos ou quase todos os corredores do hospital assim como infiltração em várias paredes. Pias com torneiras quebradas, dificultando fechá-las. Ou pias soltas das paredes. Parte debaixo da descarga amarelo de ferrugem. Ao redor do chuveiro paredes amarelas de, creio, bactérias. Só os funcionários “funcionam”. Fazem o melhor com o que têm.

Alternando com um sobrinho, Ôldi fora nos dias 12, 14 e 16; neste dia ela morreu e o atestado de óbito anunciava morreu por parada cardíaca súbita motivada por “alzáime” agravada por pneumonia, mas a causa principal é o covid.

Dezoito de fevereiro Ôldi começou a sentir os sintomas da doença.

Agora estamos iniciando a segunda semana de março. Quase seguiu o protocolo de isolar-se por quatorze dias, mas os sintomas pioravam. Numa segunda-feira, onze dias após a infecção, foi ao posto de saúde e o mandaram embora porque os médicos se recusavam atender suspeitas de covid. Teimou e voltou na quinta, conseguiu marcar um teste rápido para a próxima quinta, mas lhe disseram: Não há material para testes. Estamos esperando que chegue na próxima terça-feira, na quarta faremos o balanço e se tiver chegado poderemos testá-lo na quinta.

Na quinta-feira a enfermeira não estava no posto de saúde. A Prefeitura decidira de última hora fazer uma capacitação das enfermeiras da rede pública do município e não recebeu notificação nenhuma. Quiseram remarcar para a outra quinta-feira. Ôldi sentiu-se mal então remarcaram para o dia seguinte, as sete horas. Por isso encerrara a conversa com o filho.

Levantou-se da cama, fez café e o tomou com leite. Saiu de casa, quinze minutos depois estava sentindo-se levemente cansado, atravessou todo o Centro, chegou ao bairro Vila Ipanema, atravessou-o por um terço até chegar ao posto. Sentindo-se cansado ficou a esperar a chegada da equipe do posto. Enquanto aguardava ouvia o povo dizer:

- Fui lavado no Sangue de Jesus, por isso sou imune. – E ficou imaginando essa vampiresca cena dos praticantes de religião.

- Olha quanta gente de máscara. Tudo teve covid, pois só burro ou doente usa máscara.

Houve bobagens mais, mas quem ler Rubem Leite já entende a estupidez humana para necessitar de mais exemplos. Há que ter estômago para ler este misantropo que vos fala.

O posto abriu, chegou a enfermeira, preparou a sala, fez o teste rápido. Confirmado! Está com alguma das novas cepas do coronavírus. A enfermeira fez o encaminhamento para o UPA. 

E Ôldi voltou a pé ao Centro. Um determinado momento parou para admirar as flores do campo em um terreno vazio e pensou: Tem mais valia que o presidente, que o governador e que o prefeito. Vale mais que o povo e talvez que qualquer ser humano. Continuou o trajeto, pegou ônibus para o UPA, passou o resto da manhã entre esperando ser atendido e o atendimento. Ao fim recebeu receita para três medicamentos para cinco dias, foi ao posto de saúde mais perto, conseguiu dois dos remédios, estava sem dinheiro para o terceiro, foi ao ponto de ônibus, pegou um que o levasse para casa e, muito cansado, lá chegou a uma da tarde.

Medicou-se, banhou-se, comeu algo, leu um pouco de Câmara Cascudo, dormiu mal. Levantou-se para um novo dia sem saber pra quê.

A pandemia está mais forte que nunca. Nenhum país está aceitando a entrada de brasileiros. E as Secretarias de Educação do Vale do Aço querem aulas presenciais afirmando seguirem normas de segurança sanitária e os fatos provando que não. O Prefeito, o Vice-Prefeito e Secretário da Saúde de Timóteo não sabem que decisão tomar. Mas ordenaram mandar novos casos de volta para casa.

Mas dizer que os prefeitos ou secretários de saúde e educação não sabem o que fazer é tolice. Já estão sendo comunicados há longos meses. Apenas não quiseram agir.

O Governador Zemagogo está em silêncio e os prefeitos do Vale do Aço não falam nada. Até as flores têm mais o que dizer e fazem mais pelo planeta.

Terça-feira Ôldi tomou o último remédio, mas os sintomas persistiam. Na quarta sentiu-se mal. Na quinta chamou o SAMU:

- Nada podemos fazer, senhor. UPA, Hospital Municipal, Márcio Cunha, Unimed, os hospitais de Fabriciano e Timóteo estão superfaturados de pacientes. O senhor terá que curar-se em casa com os remédios que o médico lhe deu.

- Estes... já... acaba...ram...

- Então terá que vir buscar mais no posto de saúde.

- Não... con...si...go.

- Nada podemos fazer senhor. Busque ajuda de algum famil...

Estava demasiado cansado e sem ar para discutir então desliga o telefone. Para caminhar estava ainda mais esgotado. Ficou em casa, deu ração para os cachorros, mas não conseguiu fazer algo para comer; não tinha força, não tinha ar, não tinha apetite. Deitou. Dormiu mal até o dia seguinte.

Na sexta-feira a escola lhe cobrou a presença. Com esforço respondeu:

- Es...tou... mui... to... mal. Por favor..., me aju...dem. – Ele recebe:

- Seu atestado já venceu. Venha trabalhar!

 Foi ao banheiro aliviar-se da diarreia: pura água. Deu ração para os cachorros; não conseguiu preparar nada para comer e voltou a dormir aquele mesmo mal sono.

No sábado se levantou, batendo nas paredes foi ao banheiro aliviar-se; deu ração para os cachorros, encheu até a borda a vasilha de água para os bichinhos e leva a ração para sua cama. Chorou com medo: Que acontecerá com Florbela, Pessoa e Iemanjá? Voltou a dormir sem nada comer.

Domingo não se levantou; o corpo não tinha água para lançar fora; deitado jogou ração para os cães.

A segunda-feira amanheceu com os ganidos dos cães. Os vizinhos se irritaram e gritaram para o professor calar os bichinhos.

Uma usuária de crack abre o portão e entra; chorando os cachorros a levam para o quarto. A mulher chamou o SAMU, que finalmente veio; expulsaram a “viciada”. Arrancaram a roupa do velho professor, enfiaram o corpo pelado num saco preto e o levaram para o cemitério. Aos sem ninguém a Prefeitura já ordenara meter os corpos num caixão de papelão e os jogarem num buraco.

O Senhora da Paz preencheu uma papelada com os documentos encontrados na casa. Não há ninguém para receber o atestado de óbito. Por quê? Saberá abaixo. Sem ninguém para receber o documento enviaram-no para o RH da Prefeitura que chamou outro professor. 

Preocupado Ôldi olha os cachorros que são pegos pelos usuários de crack. Estes cuidam dos animais melhor do que deles mesmos. Aliviado vai-se embora.

Os parentes agradeceram sua morte. A casinha onde morava pertencia aos parentes que a queriam para vendê-la. Não mais terão que expulsá-lo da casinha como planejavam.

Quide nada ficou sabendo. E para quê?

Tantos anos se passaram quando este voltou a cidade. Os parentes cada um num canto obscuro uns aos outros. Ninguém se lembrava de nada. Exceto a usuária que o encontrara ainda vivia e disse o que acontecera. Florbela olhou para Quide, mas não abanou o rabo.

Sete anos; e dois anos antes a ossada tinha sido tirada e misturada numa vala comum.

Se Quide chorou não importa ou alguém se interessa por suas lágrimas? Eu não.

Tem alguma relevância para os mortos o descaso dos governos, a indiferença dos vizinhos, a ganância dos parentes? Estes têm Jesus para gritarem nos cultos. Só os cracudos sentiram sua falta. Talvez algum aluno; – o autor ri mordaz – vá saber.

Nada importa: A sociedade mudara bulhufas.

 

 

Observação:

Como semana atrasada eu estava de luto (ainda estou) não tive condições de comemorar aniversários de quem gosto muito. Abaixo seguem a segunda metade dos aniversariantes da semana atrasada e os da presente semana. Não olhei por “preferência”, pois todos são queridos; segui a data de cada um.

Ofereço como presente:

Gustavo Fernandes, Edson J. Morais, Gineraldo Adão, Tiago Gonçalves, Ramón K. Mendes, Rafael Henrique, Thiago Vaz, Eunice Profeta, Lene Teixeira e Jacomar A. Braulio,

 


Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

Fotos do autor;

Charge tirada do facebook.

 

Escrito entre 13 de dezembro de 2020 e 07 de março de 2021.

segunda-feira, 1 de março de 2021

SEUS OLHOS NÃO SE COMOVEM DESDE QUE EM SEUS BOLSOS CHOVEM

 

PERIGO!

Este cronto é o quarto de uma novena a pensar criticamente a Bíblia. Se isso te amedronta pare por aqui. Está avisade. Se continuar será por sua conta e risco. Não me responsabilizo pelo desconforto que sentirá, pois é difícil não ser misantropo quando se tem neurônios funcionais.


É assim que vou balançar os céus, e a terra vai tremer na hora do calor da ira de Deus. [...] Cada qual vai esconder na sua própria terra. Quem for encontrado, será traspassado; quem for alcançado morrerá ao fio da espada. Suas crianças serão despedaçadas diante de seus olhos, suas casas serão saqueadas e suas mulheres serão violadas. É assim que vou atirar contra eles gente que matam os jovens, não têm compaixão dos bebês; o olhar deles não se comove diante das crianças.

(Isaías 13, 13-18)¹

 

Amanheci mais um dia

Pra que um dia a mais

Lá fora a vida evadia

Com gritos e ais

 


Ave Maria cheia de graça. O Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres... – Enquanto fala pensa “mulher bendita... Até parece!”. – Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. – “De criancinha eu gosto”...

As três da manhã rezava o Bispo a preparar-se para dormir após uma “longa noite de ‘pregação aos adolescentes’ que ele cuidava”. E porque no dia seguinte tinha um encontro marcado com o presidente para benzer todas as armas e pólvora para a guerra contra os esquerdopatas.

Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós pecadores... – Essa é sua fala, mas sua crença é “rogai por eles pecadores. Estou santificado pelas minhas orações”. – Agora e na hora de nossa morte. Amém. – Eis uma de suas ideias: Ainda bem que vou direto pro céu. Não tenho com que me preocupar.

Senhor! Me dê a benção de matar o advogado Anderson Reiner Fernandes, meu desafeto. Ele está me desagradando ao expor os desvios de dinheiro realizados para Sua Glória e Louvor.

O vento atravessando a janela fechada balançou as cortinas. As chamas das três velas para a Santíssima Trindade se amortizaram.

- Dom Claudemir Serafim!

Voz grave, doce, sedutora.

- Onde está? – Olha por todo o imenso e luxuoso quarto. – Não te vejo.

- Não se preocupe. Para você ainda me faço invisível, mas em breve me verá.

Um riso grave, doce, sedutor e:

- Os prefeitos Gustavo Nunes, Marcos V.S. Bizarro e Douglas Willkys, respectivamente de Ipatinga, Coronel Fabriciano e Timóteo lutam contra os professores. Os professores querem lecionar sem correrem risco de infectarem a si ou aos outros. Os prefeitos mais seus Secretários da Saúde e da Educação dizem que as escolas estão todas protegidas. Contudo, não têm ventilação adequada, álcool adequado, distanciamento adequado, máscaras adequadas. Resumindo, entre estes e outros problemas, as escolas estão campos de morte. Depois dirão: “A culpa é da nova cepa do vírus e que eles estavam preocupados apenas com o bem-estar da população, por isso votem em mim na próxima eleição.”.

- Você me verá em breve. Você e estes e outros pedófilos.

- Ah! Eles também são pedófilos?

- Se fazem sexo com crianças? Não! Mas destroem seus corpos e almas com a mesma a tara.

- Já sei quem é você. É o covid-19. O vírus que não é católico porque odeia Nosso Senhor...

Um riso grave, doce, sedutor e:

- Não sou vírus, não o criei e ninguém odeia mais a Ele que os pronunciantes do Seu Nome.

- Quem é você e o que quer?

- O que quero?... Os Pronunciantes do Nome adotam meia centena de crianças, casam com filho e matam o filho-marido; abençoam instrumentos de morte; passam horas – ri zombeteiro – instruindo adolescentes sem ninguém por eles, crianças que não têm para onde ir... Constroem Templos de Salomão, Catedrais, Basílicas e sobram dinheiro; cobram dízimo daqueles que faltam comida; instigam o ódio à comunidade LGBTQI+... Preciso falar mais?

- Mas quem é você?

- Sou o Diabo!

- Não quero morrer agor...

Outro riso grave, doce, sedutor.

- Não me leve, por favor. Eu... Eu troco minha alma pelas das crianças que cuido.

- Dom Claudemir, perguntou-me o que quero.

- !!??

- Não preciso de almas. O que quero é entrar para o seu – rir gostoso – Lar dos Meninos Sem Ter Onde Ir.

- Você quer sexo com as crianças? Torturá-las, amedrontá-las, matá-las de fome?

- Não. Isso já fazem os Pronunciantes do Nome. Quero aprender como fazer tanto mal. Onde me matriculo?

 

 

¹ Estupro e, principalmente, assassinato de crianças são os temas de Isaías 13, 13-18.

 

Observação:

Como semana passada eu estava de luto (ainda estou) não tive condições de comemorar aniversários de quem gosto muito. Abaixo seguem metade dos aniversariantes da semana passada e os da presente semana. Na semana seguinte estarão os aniversariantes da semana mais os que faltaram. Não olhei por “preferência”, pois todos são queridos; segui a data de cada um.

Ofereço como presente:

Christine D.P. Menezes, Kadosh Miranda, Josiane Hungria, João P.C. Silva, Átila Nonato e Elmina Ferreira.

 

Recomendo a leitura de:

“Sociedade Educadora Universal dos Cidadãos Unidos”, de Glaussim:

https://www.recantodasletras.com.br/contossurreais/7194260

“Lendas Brasileiras”, de Luís Câmara Cascudo; editora Global.

“Aspectos do Folclore Brasileiro”, de Mário de Andrade; editora Global.

 

Sobre Claudemir Serafim:

https://www.youtube.com/watch?v=HfldBfzHrXs

Sobre a morte do advogado:

https://esportes.yahoo.com/noticias/audio-padre-robson-morte-desafeto-bencao-113911455.html

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

 

Escrito na noite de 05 e trabalhado entre 22 de fevereiro e 01 de março de 2021.