domingo, 14 de março de 2021

FOI COMPRADO A DINHEIRO

 

PERIGO!

Este cronto é o quinto de uma novena a pensar criticamente a Bíblia. Se isso te amedronta pare por aqui. Está avisade. Se continuar será por sua conta e risco. Não me responsabilizo pelo desconforto que sentirá, pois é difícil não ser misantropo quando se tem neurônios funcionais.

 

Se alguém ferir seu escravo ou escrava a pauladas, e o ferido lhe morrer nas mãos, aquele será punido. Se sobreviver um dia ou dois, não será punido, porque foi comprado a dinheiro.

(Êxodo 21, 20-21)¹.

 

Pais e professores de Ipatinga, Fabriciano e Timóteo mais alguns membros do Sindicato dos Servidores Públicos de Timóteo discutem numa reunião onlaine pelo “gúlgu míti”. Os temas são ensino presencial ou ensino remoto e desajuste salarial. Os participantes variam de cinquenta a setenta. Após meia hora de discussão com muitos “Só Jesus na causa”, “Deus tenha piedade”, “Deus nos proteja”, “O pastor disse”, “Deus te conforte”, “Deus tudo pode”, “Só Jesus pra nos salvar” e outras tantas interjeições religiosas e poucas pontuações relevantes, tomo a fala:

- Sob meu telhado o tamborilar da chuva me consola. Sob o alheio telhado a chuva desola. Cada um por si e Deus por todos?

Paro um instante para pensarem “O que isso tem a ver com a reunião” e continuo:

- Na calçada do outro lado da rua, não em frente aonde moro, mas uns quinze ou vinte metros, talvez trinta à esquerda uma lona de três metros de comprimento, um e meio ou menos de largura e “parede” de dois metros de altura. Dentro, o chão de barro foi forrado de estrado e amaciado por tapetes velhos. Caixas de madeira e plástico guardavam roupas e comidas. O curioso é que ao passar por lá eu via uma casa. Sim, casa bem cuidada. A moradora era uma mulher negra heterossexual traficante chinfrim de pedra. Sempre com um facão na cintura.

Uma professora diz: “Deus é conosco”. Após uma pausa retomo a palavra:

- No Caralivro tenho visto postagens referente a um rapaz que chora por ser homem, branco, heterossexual e ter dinheiro. Uma dessas postagens disse que o garoto é cantor ator filho de um cantor ator. Disso constato a presença de classes sociais reais e classes sociais hipotéticas.

Deixo-os refletir o que eu disse. Mas a maioria prefere ter a cara de “num tô intendo nada”.

- Primeira classe: homem, branco, hétero, com dinheiro. Segunda classe: homem, branco, hétero. Terceira classe: homem, branco. Quarta classe: homem. Quinta classe: homem, hétero, negro, com dinheiro. Sexta classe: homem, hétero, negro.

Observo pela tela do meu celular os poucos rostos que posso ver:

- Repare que para as três primeiras classes ser branco é a segunda coisa mais importante e que na quinta e na sexta classe ser hétero é o segundo mais importante fator enquanto ser negro é o terceiro.

Os parágrafos abaixo estão na mesma fala, mas as separo no texto escrito para permitir a quem me ler ter algumas pausas para pensar no que digo.

- Sétima classe: homem, negro; aqui foi ignorado a heterossexualidade, porque isso pertence à segunda classe e a oitava classe seria ser homem, mas isso faz parte da quarta classe. Aí tem um paradoxo ou ao menos uma curiosidade. Ser homem e negro é possibilidade, mas ser negro e homem não tem relevância. Então oitava classe não é possibilidade.

- Mas a nona classe existe: mulher, branca, com dinheiro, heterossexual.

- Veja que para a mulher heterossexualidade é o menos importante porque ainda vigora inconsciente a ideia que mulher não tem sexualidade. Décima classe: mulher, branca, com dinheiro. Décima primeira classe: mulher, branca.

- Se mulher tivesse real importância a décima segunda classe seria essa.

- Ser mulher, com dinheiro, negra, heterossexual quase chega a ser uma classe social se o segundo fator existir. – Pense então como é quando qualquer uma dessas características vai diminuindo.

- Ignoro a causa do lamento do garoto. Se ele inconscientemente vislumbra suas vantagens. Se promove autopropaganda. Se conscientemente reconhece suas vantagens.

- Essa última possibilidade pontuada acima me leva a pensar se continuará a chorar suas vantagens até o último suspiro; se fará algo que remova a consciência de seu pesar; se fará algo para modificar o mundo. Ou se a abafará...

- Você está falando e não está chegando ao ponto.

- Oh! Estou sim. Pensem nelas, por gentileza... Permita-me continuar.

- Sei, sei. Modificar o mundo é impossível. Mas é possível usar suas vantagens para combater as desvantagens. É assim que muito ateus e poucos religiosos dizem e praticam: Temos a obrigação de estender a mão a quem tem fome. O inverso também ocorre. Muitos religiosos e poucos ateus dizem e praticam: Há que multiplicar a comida de quem não tem...

- Já foi amplamente dito por grandes intelectuais e minha insignificância repete “Pessoas desesperadas viram trabalhadores ideais e cidadãos desorientados”. Como?

- Após minha graduação fiquei quase dois anos desempregando; trabalhei por pouco mais de um ano e fiquei desempregado. Em cada um dos dois momentos sem trabalho entreguei centenas de currículos. Minha sorte foi ter sido convocado a efetivar-me como professor em Timóteo devido a um concurso prestado ainda no segundo semestre na universidade. Devo ressaltar que estava quase velho quando me graduei. Faltava poucos anos para sair dos quarenta.

- Hoje, será que isso deixa gente mais velha com esperança? Só se for ingênuo. Tiraram e continuam eliminando os direitos trabalhistas.

- Parabéns por sua posse.

- Obrigado!

- Nós gostamos muito de nossos funcionários. Queremos tão bem que os manteremos aqui até a morte. Vocês nunca se aposentarão.

- Essa é a realidade. Sem previdência social. E a PEC 186 congelou até 2036 os reajustes salariais dos professores, médicos, enfermeiros, policiais e outras categorias.

- Sou advogado. Não fui atingido.

- O senhor escolheu bem a carreira. Advogado não é funcionário público. O presidente ainda não arranjou um meio direto de prejudica-los. – Comecei a fala inicial deste parágrafo com ironia e a fecho com um sorriso debochado. – A PEC 186 congela os reajustes salariais de professores, médicos, enfermeiras, policiais e outras categorias. Mas seu dinheiro vem de nós – professores, médicos, policias etc. – e não teremos como contratar seus serviços. – Dou uma pausa para apreciar a cara do eleitor do Boçalnato. – Também lojistas, engenheiros e outros trabalhadores que igualmente receberiam da gente não poderão contratar seus serviços porque também não poderemos pagá-los. – Falo sério, com irritação, mas em tom frio. – Ao fim estamos todos sendo mortos pelo presidente. Está ocorrendo cortes nos programas sociais e eliminado o SUS para os convênios médicos serem sua única opção; e como ficarão caros.

O advogado eleitor do Boçalnato em silêncio me diz muito com seu olhar irritado. E continuo:

- Veja o auto custo do ensino; lembre-se querem acabar com a escola pública e já as estão sucateando e desmantelando os professores. Tenho a impressão que um filho seu estuda no Tiradentes. Os professores dele trabalham numa escola pública militar. – Tenho asco da estupidez e crueldade dos boçalnariano. – Em Timóteo os professores da rede pública municipal querem trabalhar, mas de modo remoto por causa do covid. A prefeitura parece querer: “trabalhe presencialmente ou então não trabalhe”, pois tem impedido de todas as formas, até judicialmente, o ensino remoto. Em Ipatinga a prefeitura não cumpre o próprio protocolo de proteção ao covid nas escolas. Como prova um documento feito por professoras em diversas escolas e entregues à deputada Beatriz Cerqueira que o apresentou numa reunião ordinária da Câmara, em Belo Horizonte.

Uma mãe diz e a respondo:

- Ensino remoto não é bom.

- O ensino presencial é o ideal, mas não ter aula é pior que aula remota.

- Mas voltemos ao pensamento ficar seis meses sem emprego. No desespero está bom qualquer salário para fazer qualquer coisa em qualquer condição, mesmo que longe de sua família e trocando sua casa própria ou digna por uma tenda na calçada...

Como fiz acima – dar espaços para quem ler o cronto pensar – refaço:

- Com tudo isso como se preocupar com os direitos das minorias se busca emprego? Como se preocupar com os problemas ambientais se tem contas a pagar? Como se preocupar com reforma agrária se precisa alimentar a si e aos filhos? Como pensar nos refugiados se nem comprar remédios pode? E como pensar a longo prazo se seus problemas são para agora?

- A casa da usuária traficante de crack foi queimada e a mulher desaparecida. Não vi como ocorreu. Só os pedaços da lona derretida, o carvão das caixas e a cinza dos tapetes.

- Sei que o marido dela tentou furtar, mas foi pego e disseram que roubou. Preste atenção! Tentou furtar e afirmaram que roubou. Entendeu?

- Na cadeia ele aprendeu com os outros pretos que todo preto tem direito a trabalho, moradia e laser. Trabalhar no tráfico, morar na favela e férias na prisão. Mas seu aprendizado não durou muito. Numa rebelião ele e outros pretos morreram. Os pretos sobreviventes e os brancos foram punidos.

Paro um pouco a reunião para conversar com quem está me lendo:

Mas quem ensinou isso aos pretos? Quem?!? Como combater esse conceito? Digam-me, por favor!

Quem matou Marielle Franco? 14 de março de 2021 se completam três anos que foi assassinada uma militante dos direitos humanos, das mulheres negras e da diversidade. E os brancos que a mataram - isso se sabe - continuam livres, leves e soltos. Ai, como dói o que Rubem Leite diz:

Há tanto peso no coração

Só se sente leve

Quem não dá a mão

Quem ao outro nunca se leve.

Lima Barreto.

Cesare Lombroso! Um médico italiano “comprovou cientificamente” que o formato da cabeça, a posição do redemoinho dos cabelos e a etnia mostram a inteligência e o grau de violência de cada pessoa. Ele foi o estopim para que médicos como Cipriano de Freitas publicasse mesmo sem comprovação científica a depravação física, mental e moral dos negros e mestiços. Souza e Cruz poetizou que o negro está preso entre quatro paredes: a igreja, a ciência, a sociedade e as leis. A igreja que diz que negro não tem alma; a ciência falei acima; a sociedade que os vê como inferiores ou não os vê...; e as leis que vigoravam no século XIX contra eles e que apesar de não mais existirem deixou sequelas.

Sinceramente! Não estou com vontade de voltar à reunião “onláine”, pois minha misantropia deu um grito então desisti, pois sei que não responderão. Isso exige cérebro e boçalnariano, se tem, não o utiliza. Sem me despedi, saí. Sei que voltearão, voltearão e não irão ao cerne da questão. A segunda pergunta deixo para quem me ler, pois se chegou até aqui tem estômago para aguentar tanta amarga acidez e cérebro para pensar.

 

 

 

A legitimidade da escravidão é o tema de Êxodo 21, 20s. Observe que não importa a morte do escravo, desde que seja no dia seguinte...

 

Recomendo a leitura de:

“Lavada Carne Fraca” e “Lockdown”, ambos de Glaussim:

https://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/7197116

https://www.recantodasletras.com.br/contos/7204825

“O Infindável Museu das Coisas Efêmeras”, de Éder Rodrigues. Pode ser adquirido:

https://www.facebook.com/ederdelrodrigues.literatura/about_contact_and_basic_info

“Instalações Subterrâneas”, Bispo Filho:

http://bispofilho.blogspot.com/2021/03/instalacoes-subterraneas.html

 


Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

LOURENÇO, Ana. Nova Proposta de Redação: a persistência do Racismo. Disponível  https://guiadoestudante.abril.com.br/blog/redacao-para-o-enem-e-vestibular/nova-proposta-de-redacao-a-persistencia-do-racismo/ . Acesso 14 Mar 2021.

Capa do livro Lima Barreto: triste visionário, de Lilian Moritz Schwarcz. Foto do autor do cronto.

Foto do autor pelo autor.

 

Escrito entre 05 de fevereiro e 14 de março de 2021.

Um comentário:

Glaussim disse...

O eleitor deveria ser forte. Mas o leitor não é eleitor. Tampouco o eleito leu a lei que o constitui. Se o eleitor não sabe a lei e o eleito não sabe ler, como a lei será lida e praticada a garantir aos leigos? E a força do eleitor surgirá quando ele não tiver em casa o que comer? Como exercerá a força do seu voto se estiver doente e com fome? Que força terão os eleitores pra cobrar dos eleitos os desmandos ante a inflação vindoura? Será que os eleitos apostam no Bitcoin pra esconder suas fortunas e dizer " acabou o dinheiro"!?