domingo, 21 de março de 2021

A ARTE PODE DAR PAZ


ou O QUE SABE UMA ÁRVORE

 

 

A primeira parte dessa história pode ser lida em:

http://artedoartista.blogspot.com/2021/03/ha-o-que-vale-mais-do-que-as-pessoas.html

 

Esta história se passa em Ipatinga. Após um sábado adormecido e nublado, mas num domingo amanhecido e quase ensolarado. Aproveitando o silêncio do domingo coloquei algo para comer e duas cervejas numa bolsa térmica, peguei uns livros, meu celular e fui de bicicleta ao Centro de Oncologia e Radioisótopos. Se tinha que ir seria hoje ou continuaria enrolando. Sim, senti-me muito fatigado ao chegar, mas queria fazer um exercício. Entrei e, claro, não consegui consulta para aquele dia. Só fui porque me sentia corajoso o suficiente. Marquei para duas semanas depois.

Em frente há muitas árvores. Uma delas me chamou a atenção. Parece comigo. Sou uma árvore. Sentei-me na grama, de frente para ela, li umas páginas de A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, e fiquei a pensar no que Emília disse sobre os animais saberem arrumar-se num mundo tão grande:

Também saberemos. Sabem porque foram aprendendo. Nós também aprenderemos, por que não? A professora é uma velha feroz, que não perdoa aos lerdos e preguiçosos. Chama-se Dona Seleção.

Comparei essa fala com a esperança de muitos em 2020: A sociedade vai aprender muito com essa pandemia. Mas em 2021 o que aprendemos foi: o vírus evolui e a sociedade não. E o que mais me dói é não me surpreender. Um ano de covid matou quase mil pessoas a mais que trinta e sete anos de aids. E há mais pessoas temendo o HIV do que o SARS-CoV-2. Dona Seleção, não demore a entrar em ação, por favor.

Olho para a árvore e ouço o que muitos pensam de mim: É um bobo, um tolo coberto de lodo. Sou uma árvore; posso ter musgo, não lodo. Você está cansado! Dizem. Mas não. Cansaço seria se tivesse feito muita coisa pela humanidade. E o que faço não posso dizer que é tanto assim. Eu faço, mas... é improdutivo porque as pessoas não mudam. Não mudam. Pode até ser que alguém mude; realmente aprenda. Isso acho até possível, mas são casos extremamente raros. Um exemplo: um delegado aterrorizou por muitos anos, bem mais de uma década, os usuários de maconha. No pejorativo: “os maconheiro”. – Dou uma risadinha para mim mesmo. – Porém a filha dele ficou enferma e o tratamento precisava de THC. Aí ele mudou... Ai, que romântico. Ele mudou. Parou de perseguir os usuários de maconha. Mudou por...caria nenhuma! É interesse, egoísmo! Porque teria mudado se antes tivesse estudado para que serve a maconha; para que serve o THC. Mas ele não teve interesse. Preferia continuar com sua ignorância e seus preconceitos. Só depois, por ser mercantilista e calculista, passou a agir ao contrário. Então o delegado não mudou. É apenas mais um interesseiro que vai transferir seus ódios e ignorâncias para outros grupos de pessoas. 

Olho outra vez para mim na árvore e faço pelo watzap uma vídeo-chamada para meu filho.

- Oi, Quide! Ontem sua mãe me contou algo que me deixou orgulhoso de você. Quer que eu te conte o que pensei sobre o assunto ou acha que estarei intrometendo-me em sua vida? – Depois que falei pensei “estou sendo indiscreto”.

- Conte!

- Se achar que é intromissão eu me calo...

- Sei lá. – Diz e ri da dúvida do pai.

Um esclarecimento. Sou Ôldi, pai adotivo de Quide. Alguns meses atrás saiu de viagem pelo Sul da América e não me disse o porquê. Um longo tempo depois fiquei sabendo a razão. Ele fora em busca dos pais verdadeiros dele. Achei muito bom ele fazer isso; muito bom mesmo. O que me dói é ele me ver como um pai falso.

Mas voltemos à história:

- A coisa mais importante que ela falou fortaleceu minha concepção de que você fará a diferença na cidade onde viver. Posso continuar? Creio que será curto o que vou dizer daqui pra frente.

- Fale logo!

Desconfortável por chamar o outro de pai como se ele fosse o verdadeiro:

- Você falou para seu – engoli em seco – pai algo assim: “Tenho dinheiro, mas não sei o que fazer com ele, pois não me dá paz.”. Realmente, de você só posso esperar pensamentos inteligentes, dignos. Dinheiro não dá paz. Mas não dá para viver sem trabalhar. Então o que fazer? Trabalhar nesse serviço chato e com a grana que entrar comprar livros, pagar uns estudos, consumir as artes cinematográficas, teatrais, musicais etc. Mas o mais importante: A arte pode dar paz. – Meu filho é malabarista, artista de rua. – Que tal tirar meia hora por semana ou um dia sim e outro não para ir ao faro, ou praça ou ao parque e malabarear apenas para fazer as pessoas sorrirem, aliviarem de seus pesos.

- Minha mãe é bem intrometida.

- Tem gente que fará cara de nojo. – Ignoro a fala dele e continuo: Outros irão parar por alguns segundos para ver. Outros vão continuar andando enquanto olham sua arte. Se for de manhã dará energia para enfrentar o dia. Se for no final da tarde dará alívio. No caso “dos cara de nojo”, aí é problema dele não se sentir melhor. Nos dois casos seguintes você lhes terá dado paz.

- Mas fazer o quê? – Agora é ele que ignora o que eu disse. – Minha mãe não mudará mais.

- Nós, os velhos, somos intrometidos...

Uma pausa para bebermos um gole de cerveja e responde aos meus comentários:

- Sim, falei isso pro meu pai. Mas meu peso é outro. A minha cruz é outra.

- Por isso pedi sua autorização para ingerir. – Mais um gole de cerveja. – Qual é sua cruz?

- Não acho que preciso falar para você.

- Tranquilo.

- Não falo isso pra ninguém. Não me leve a mal.

- Como disse, não me quero imiscuir. – Mas me senti mal por não confiar em mim. – Apenar dizer que te quero bem, muchacho. Não me ofendo.

- Eu sei e te amo por isso, amigo. – Amigo!?! Como isso me magoa.

- Cada qual tem seus segredos. Coisas que prefere guardar para ti.

- Isso!

- Acha que tem coisas que conto para os outros? Nem para a psicóloga conto tudo...

Ôldi muda de assunto:

- Vou trabalhar agora. Estou fazendo a revisão em português de um livro que se chama Magnânima, de Flávia Frazão... Quando puder a gente conversa. Abraço! – Uma pausa e acrescento: Só não fica chateado com sua mãe. Pois ela me fez feliz ao dizer-me sua visão do dinheiro. Tenha um bom trabalho.

- Gracias!

- Só me conte o que se sentir confortável ou precisar. Vou indo, pois amanhã também vou trabalhar. Será sábado letivo e darei aula remota.

- Está bom assim. – Sua voz parece levemente irritada, mas continuo:

- Só recomendo uma coisa: Não se cale se precisar falar. Agora peço licença porque vou para casa me dedicar a revisar o livro e depois gravar um vídeo aula para amanhã passar para meus alunos e não poderei mais conversar no momento. Abraços!

Mas o que faço depois de desligar a vídeo-chamada é olhar para a árvore, tomar um gole da cerveja e soluçar. Paro um pouco meu soluço e acesso ao youtube. O primeiro que aparece é As Vantagens de Ser Bobo, de Clarice Lispector. Do bastante que é dito ouço e reflito apenas:

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. Mas não estou tocando nem o coração do meu filho, por mais que o veja e ouça dentro de mim. O bobo é capaz de ficar sentando, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando”. Realmente, já se passou uma hora que a conversa terminou, mas confesso que estou mais sentindo do que pensando. Sou um bobo e como tal confio na palavra das pessoas e por isso sou apunhalado tantas vezes por aqueles que menos espero. Realmente reclamo pouco, mas muito exclamo. E quando reclamo sobeja exclamações, interjeições e se não pergunto é porque desvalorizo as respostas que me darão. Lispector fala que os bobos provocam amor. Não sei. Não sei. Mas como bobo amo em excesso. E só o amor faz o bobo. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Se venci ou vencerei nunca saberei assim como esta árvore.

 

 

Ofereço como presente aos aniversariantes:

Aléxia Silva, Maria Cloenes, Manoela S. Bicalho, Ana L. Pena, Diony Stefano e Girvany A. Morais.

 

Recomendo a leitura dos livros e áudios citados no cronto.

 


Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

Árvore com musgo: foto de Marcelo Soares Marinho.

Foto do autor pelo autor.

 

Escrito entre os dias 12 de dezembro de 2020 e 21 de março de 2021.

Um comentário:

Unknown disse...

Ler Rubem Leite é sempre muito bom e obrigado pó oferecimento!@