ou O QUE SABE UMA ÁRVORE
A primeira parte dessa história pode ser
lida em:
http://artedoartista.blogspot.com/2021/03/ha-o-que-vale-mais-do-que-as-pessoas.html
Esta história se passa em Ipatinga. Após um
sábado adormecido e nublado, mas num domingo amanhecido e quase ensolarado. Aproveitando
o silêncio do domingo coloquei algo para comer e duas cervejas numa bolsa
térmica, peguei uns livros, meu celular e fui de bicicleta ao Centro de
Oncologia e Radioisótopos. Se tinha que ir seria hoje ou continuaria enrolando.
Sim, senti-me muito fatigado ao chegar, mas queria fazer um exercício. Entrei
e, claro, não consegui consulta para aquele dia. Só fui porque me sentia
corajoso o suficiente. Marquei para duas semanas depois.
Em frente há muitas árvores. Uma delas me
chamou a atenção. Parece comigo. Sou uma árvore. Sentei-me na grama, de frente
para ela, li umas páginas de A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, e fiquei a
pensar no que Emília disse sobre os animais saberem arrumar-se num mundo tão grande:
Também saberemos. Sabem porque foram aprendendo. Nós também
aprenderemos, por que não? A professora é uma velha feroz, que não perdoa aos
lerdos e preguiçosos. Chama-se Dona Seleção.
Comparei essa fala com a esperança de
muitos em 2020: A sociedade vai aprender muito com essa pandemia. Mas em 2021 o
que aprendemos foi: o vírus evolui e a sociedade não. E o que mais me dói é não
me surpreender. Um ano de covid matou quase mil pessoas a mais que trinta e
sete anos de aids. E há mais pessoas temendo o HIV do que o SARS-CoV-2. Dona Seleção,
não demore a entrar em ação, por favor.
Olho para a árvore e ouço o que muitos pensam de mim: É um bobo, um tolo coberto de lodo. Sou uma árvore; posso ter musgo, não lodo. Você está cansado! Dizem. Mas não. Cansaço seria se tivesse feito muita coisa pela humanidade. E o que faço não posso dizer que é tanto assim. Eu faço, mas... é improdutivo porque as pessoas não mudam. Não mudam. Pode até ser que alguém mude; realmente aprenda. Isso acho até possível, mas são casos extremamente raros. Um exemplo: um delegado aterrorizou por muitos anos, bem mais de uma década, os usuários de maconha. No pejorativo: “os maconheiro”. – Dou uma risadinha para mim mesmo. – Porém a filha dele ficou enferma e o tratamento precisava de THC. Aí ele mudou... Ai, que romântico. Ele mudou. Parou de perseguir os usuários de maconha. Mudou por...caria nenhuma! É interesse, egoísmo! Porque teria mudado se antes tivesse estudado para que serve a maconha; para que serve o THC. Mas ele não teve interesse. Preferia continuar com sua ignorância e seus preconceitos. Só depois, por ser mercantilista e calculista, passou a agir ao contrário. Então o delegado não mudou. É apenas mais um interesseiro que vai transferir seus ódios e ignorâncias para outros grupos de pessoas.
Olho outra vez para mim na árvore e faço
pelo watzap uma vídeo-chamada para meu filho.
- Oi, Quide! Ontem sua mãe me contou algo
que me deixou orgulhoso de você. Quer que eu te conte o que pensei sobre o
assunto ou acha que estarei intrometendo-me em sua vida? – Depois que falei
pensei “estou sendo indiscreto”.
- Conte!
- Se achar que é intromissão eu me calo...
- Sei lá. – Diz e ri da dúvida do pai.
Um esclarecimento. Sou Ôldi, pai
adotivo de Quide. Alguns meses atrás saiu de viagem pelo Sul da América e não
me disse o porquê. Um longo tempo depois fiquei sabendo a razão. Ele fora em
busca dos pais verdadeiros dele. Achei muito bom ele fazer isso; muito bom
mesmo. O que me dói é ele me ver como um pai falso.
Mas voltemos à
história:
- A coisa mais importante que ela falou
fortaleceu minha concepção de que você fará a diferença na cidade onde viver. Posso
continuar? Creio que será curto o que vou dizer daqui pra frente.
- Fale logo!
Desconfortável por chamar o outro de pai
como se ele fosse o verdadeiro:
- Você falou para seu – engoli em seco –
pai algo assim: “Tenho dinheiro, mas não sei o que fazer com ele, pois não me
dá paz.”. Realmente, de você só posso esperar pensamentos inteligentes, dignos.
Dinheiro não dá paz. Mas não dá para viver sem trabalhar. Então o que fazer?
Trabalhar nesse serviço chato e com a grana que entrar comprar livros, pagar
uns estudos, consumir as artes cinematográficas, teatrais, musicais etc. Mas o
mais importante: A arte pode dar paz. – Meu filho é malabarista, artista de
rua. – Que tal tirar meia hora por semana ou um dia sim e outro não para ir ao
faro, ou praça ou ao parque e malabarear apenas para fazer as pessoas sorrirem,
aliviarem de seus pesos.
- Minha mãe é bem intrometida.
- Tem gente que fará cara de nojo. – Ignoro
a fala dele e continuo: Outros irão parar por alguns segundos para ver. Outros
vão continuar andando enquanto olham sua arte. Se for de manhã dará energia
para enfrentar o dia. Se for no final da tarde dará alívio. No caso “dos cara
de nojo”, aí é problema dele não se sentir melhor. Nos dois casos seguintes
você lhes terá dado paz.
- Mas fazer o quê? – Agora é ele que ignora
o que eu disse. – Minha mãe não mudará mais.
- Nós, os velhos, somos intrometidos...
Uma pausa para bebermos um gole de cerveja
e responde aos meus comentários:
- Sim, falei isso pro meu pai. Mas meu peso
é outro. A minha cruz é outra.
- Por isso pedi sua autorização para ingerir.
– Mais um gole de cerveja. – Qual é sua cruz?
- Não acho que preciso falar para você.
- Tranquilo.
- Não falo isso pra ninguém. Não me leve a
mal.
- Como disse, não me quero imiscuir. – Mas
me senti mal por não confiar em mim. – Apenar dizer que te quero bem, muchacho.
Não me ofendo.
- Eu sei e te amo por isso, amigo. – Amigo!?! Como isso me magoa.
- Cada qual tem seus segredos. Coisas que
prefere guardar para ti.
- Isso!
- Acha que tem coisas que conto para os
outros? Nem para a psicóloga conto tudo...
Ôldi muda de assunto:
- Vou trabalhar agora. Estou fazendo a
revisão em português de um livro que se chama Magnânima, de Flávia Frazão...
Quando puder a gente conversa. Abraço! – Uma pausa e acrescento: Só não fica
chateado com sua mãe. Pois ela me fez feliz ao dizer-me sua visão do dinheiro. Tenha
um bom trabalho.
- Gracias!
- Só me conte o que se sentir confortável
ou precisar. Vou indo, pois amanhã também vou trabalhar. Será sábado letivo e
darei aula remota.
- Está bom assim. – Sua voz parece
levemente irritada, mas continuo:
- Só recomendo uma coisa: Não se cale se
precisar falar. Agora peço licença porque vou para casa me dedicar a revisar o
livro e depois gravar um vídeo aula para amanhã passar para meus alunos e não
poderei mais conversar no momento. Abraços!
Mas o que faço depois de desligar a
vídeo-chamada é olhar para a árvore, tomar um gole da cerveja e soluçar. Paro
um pouco meu soluço e acesso ao youtube. O primeiro que aparece é As Vantagens
de Ser Bobo, de Clarice Lispector. Do bastante que é dito ouço e reflito apenas:
O
bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o
mundo. Mas não estou tocando nem o coração do meu
filho, por mais que o veja e ouça dentro de mim. O bobo é capaz de ficar sentando, quase sem se mexer por duas horas. Se
perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou
pensando”. Realmente, já se passou uma hora que a conversa terminou, mas
confesso que estou mais sentindo do que pensando. Sou um bobo e como tal confio
na palavra das pessoas e por isso sou apunhalado tantas vezes por aqueles que
menos espero. Realmente reclamo pouco, mas muito exclamo. E quando reclamo
sobeja exclamações, interjeições e se não pergunto é porque desvalorizo as
respostas que me darão. Lispector fala que os bobos provocam amor. Não sei. Não
sei. Mas como bobo amo em excesso. E só o
amor faz o bobo. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que
venceu. Se venci ou vencerei nunca saberei assim como esta árvore.
Ofereço como presente aos aniversariantes:
Aléxia Silva, Maria Cloenes, Manoela S. Bicalho, Ana L. Pena, Diony
Stefano e Girvany A. Morais.
Recomendo a leitura dos livros e áudios citados no cronto.
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens:
Árvore com musgo: foto de Marcelo Soares Marinho.
Foto do autor pelo autor.
Escrito entre os dias 12 de dezembro de 2020 e 21 de março de 2021.
Um comentário:
Ler Rubem Leite é sempre muito bom e obrigado pó oferecimento!@
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