domingo, 27 de março de 2022

OUREMOS, IRMÃOS

Aniversário do escritor Girvany de Morais.


Temo a forma de caça das aranhas mais do que temo seu veneno. Temo a sensação que deve ter a presa da aranha como imaginasse sem sentir o que lhe passa.

Mas aranha é só aranha; sem empatia. É natureza bruta. Não má, não boa. Só... natureza.

A humanidade pode ter empatia, mas vive a empáfia. Não é natural. É má, às vezes boa. Só... desnaturada.


Estrelas não iluminavam a noite. Nem a lua. Só os postes e as placas nas fachadas e o interior das próprias lojas.

Caminhava com dois amigos. Estes pareciam estar sempre às sombras; nunca se via seus rostos. Ao contrário daquele, que parecia estar sempre sobre o foco dos postes, placas ou lojas.

A vontade deles era chegar em casa. Ainda longe. Entraram numa rua, saíram em outra. Ruas esquisitas. Quase sempre impróprias para carros. Estreitas. Escada ou rampas sempre ascendente, as laterais eram calçadas rachadas com pequenos matos sempre saindo das incontáveis frestas. Todas as casas sempre com a metade abaixo da via e quase sempre com jardins. Tentativas de contrariar as ruas.

Chegaram ao meio do bairro; movimentada por carros e pedestres a avenida. Esta sim com a iluminação já descrita. Estavam com fome e entraram num bar. Escolheram seus sanduíches, comeram e ao pagarem:

- A carne está acabando. Manda mais.

- Em breve, talvez amanhã trago nova remessa...

Fora da lanchonete olha de um lado a outro da avenida. O que vê compactua com a encomenda recebida.

- Credo! O comércio está cada vez mais cristão. - Exclama irritado e os amigos concordam em silêncio.

De fato. Todas as lojas tinham imagens de Nossa Senhora, Jesus ou algum santo. Ou, mais comum, de nomes terrivelmente evangélicos com algum versículo.

Depois da avenida destacada, chamativa de tanta luz artificial retomam às ruas sempre as escuras. Escondendo o povo - cidadãos ou só pessoas -. Uma rua é interrompida por esgoto.  A alguns metros da ponte moitas de matos na água e três meninos nus brincam no charco. Ao verem os homens nadam até a ponte. Os rapazes espantam os garotos ostentando a mão que puseram no peito, dentro da blusa de frio sempre aberta.

Entram em outro logradouro, e noutro e outro dando para um espaço largo. Quase todo de terra seca e moitas de colonhão nas margens. Dois homens grandes "conversam" segurando pelas correntes seus cães que se avançavam mutuamente. Imensa fila de grandes formigas vermelhas se formou entre os homens e seus cães. Estes perceberam tarde demais. As formigas já lhe ferroavam tirando-lhes pequenos pedaços. Sempre em silêncio os três rapazes viram desde longe a discussão, os ataques frustrados dos animais e, afastando-se das formigas, passaram entediados por eles. Mal escutando os gritos enquanto se afastavam.

Finalmente chegam a casa. Construída subindo um montículo. Plantas verdes, ou floridas ou frutíferas cercam a pequena casa de muitas janelas. Do portão à porta uma estrada se sinua entre a flora.

Sentado na varanda um amigo os espera para entrar na casa. Passará a noite antes de ir embora no dia seguinte.

Como dito não há possibilidade de autos no bairro. Mas acrescento que o mesmo acontece na cidade toda; em todas as cidades. Em desconhecimento do povo.

O local de ônibus para fora da cidade fica na segunda avenida, a que leva a BR. Próximo dessa morada.

Os quatro entram na casa. Um de cada vez toma banho enquanto o anfitrião prepara algo para comerem.

Deitam e dormem. Um dos cachorros, o de pequeno porte, morde o celular do hóspede.

Amanhece outro dia escuro. O dono da casa faz café, põe sobre a mesa leite e pão requentado na chapa e acorda os demais.

Alimentam-se depois de irem ao banheiro. O hóspede pega a mochila dando conta do celular estragado.

- Eu mato esse cachorro...

Os moradores sorriram. Sempre à sombra os moradores seguram os braços da visita. À pouca luz do Sol o dono da casa pega sua faca.

Ninguém sai da cidade e há que abastecer o mercado.


_____

Rubem Leite.

Imagem: aranha camuflada, foto do autor.

Cronto nascido de uma reflexão com um mau sonho. Qualquer semelhança com a ficção é realidade.

Escrito e trabalhado entre 25 e 27 de março de 2022.

domingo, 20 de março de 2022

CASTELO DE AREIA NA MARÉ CHEIA

“A inutilidade da esperança e a inutilidade das queixas”¹. 


 Ao nascer do sol a mosca abre sua vida esticando-se, secando suas asas enquanto vê o baile das borboletas, o canto dos grilos.

Não sabe que poderia ter vinte e oito dias de vida. Ela por não ter ciência e as pessoas, por não terem consciência, ignoram suas vidas a complicar as vidas própria e alheias.

A mosca pousa em nossas comidas e, menos que as pessoas, percorre sua vida indo de sujeira em sujeira. Vê os humanos sujando suas vidas, suas relações, seus corpos, as ruas. E só esta última sujeira atrai a mosca.

Desânimo, desânimo. Não sei conviver, desânimo. Encontrar outras pessoas, desânimo. Estou cansado de ter desânimo. Quero sossego do silêncio, do nada e do ninguém.

A nossa mosca encontra outra mosca, procriam.

- Não tem pra onde correr. – Dizem-me e penso: Não há para onde fugir então caminho sentido; querendo ir para onde não existe. 


Fugindo das sujeiras internas das pessoas a mosca não vê a teia de aranha. Assim se fecha sua vida.

As pessoas vêm, vão e não se sabe se voltam. A vida vem, vai e não se sabe se volta. E o eu? Que venha, que vá e só fique onde sentir-me.


Depois haverá nuvens levadas pelo vento, pedras consumidas pela erosão do tempo e a lua a afastar-se da Terra sem deixar de iluminar enquanto pode.



¹ Os olhos que comiam carne, de Humberto de Campos.

 

Imagens: fotos do autor tiradas de sua casa.

 

Pensamentos tidos entre 14 e 20 de março de 2022.

domingo, 13 de março de 2022

SORRIR PELA PARTIDA DE UM FRÁGIL A MIM FERE

Mais uma manhã. Um domingo a mais. Acocorado olho os dois que estão perto, mas vejo o jardim. O que eu queria é estar só comigo, meus bichos, jardim e livros. Fala algo sem importância e como não ouço, digo:

- Dos dias eu gosto e também das aves e árvores. É fora do natural que me machuco fácil e nem sempre em minha pele. Por isso temo não aguentar as tempestades. Mas se Lula e Dilma aguentam, se Robinson Ayres e Maura Gerbi aguentam...
- O que tem isso?
- Tem muitas coisas. Uma pequena importante é a discussão que não acaba nunca...
- A aluna veste bermuda de homem. Vem toda masculinizada pra escola.
- Uai! O que você tem com isso? A pessoa veste a roupa que quer.
- Não concordo!
- E você tem concordar com alguma coisa? Só tem que cuidar de sua vida.
- Tem crianças na escola. Elas não têm que ver isso.
- Tem que ver sim. As diferenças existem e têm que ser respeitadas.
- Não podem ver duas garotas se beijando.
- Não tem que ver nem garoto e garota se beijando.
- Pois é, Benito. Não pode ter namoro na escola.
Não pode. Não pode. Não pode... - Ecoa.
- Isso é a ação de quem não tem razão. Estávamos falando de roupa; como não tem argumento, do nada muda de assunto. Numa tentativa de invalidar o argumento do outro.


Olhando a luz do Sol atravessando o compacto de nuvens audivelmente meditei:
Queremos ser amados por quem amamos. Ninguém quer ser amado por quem não ama. Acredito ser um bem-aventurado, pois muitos que amo igualmente me amam.
Amorosamente me pica:
- Sinceramente não me preocupo mais com isso. Preocupo em ser uma pessoa ética. Ser, na medida do possível, bom e generoso. Não passando dos limites e indo até onde não me prejudique ser solidário.
- É, ética é importante.
- É importante que gostem de verdade.
- Não existe gostar de acordo com as ocasiões.
Levanto-me e entro na casa. Amanhã terei trabalho, mas até lá vou ficar com meus pensamentos.

domingo, 6 de março de 2022

EU, O BOBO


Acordei nesta madrugada e olhei pela janela. O céu estava tão lindo. Não vi a lua, mas quantas estrelas. Não sei quantos anos que não via tantas estrelas. Quase como Pessoa conversei com elas. Disse sobre a ‘inexistente pandemia que estamos passando’; o governo brasileiro; a comoção pela situação da Ucrânia, e como são as coisas, quem se comove pelas invasões Latino-americanas, africanas, árabes...?

Como são as coisas pra Lúcia.

Ucrânia foi atacada

E Urucânia se sente ameaçada

Pelas ogivas da Rússia.

Universidade de Milão proíbe curso sobre Dostoievski por causa da questão Rússia-Ucrânia. Não é só no Brasil e em USA que a imbecilidade impera.

Mas não falei de mim.

Simplesmente as admirei e conversei por poucos minutos e voltei para a cama. Tinha ainda um último dia de feriado para atravessar antes de começar a semana pelo seu final.

Pouco depois das sete da manhã fui ao mercado. Havia um delicioso silêncio. Pássaros, galos, cachorros; não trânsito nem outras coisas “humanas”.

 


Os bairros Limoeiro (onde moro) e Recanto Verde nos confundem onde fica a divisa e neste descubro por acidente uma pracinha construída no fim da Rua Oiti por um morador local. Soube que se chama Quintão.

Sento em um dos bancos a contemplar e a pensar.

Ah, estrelas!

Não falei de mim para elas.

Por um lado, quem sou eu para ser do interesse dos astros e, por outro lado, ainda não sei se posso confiar nas estrelas a ponto de desabafar-me.

O que passo, passo sozinho. O bobo paga por suas ações e o esperto por suas omissões.

 

 

Imagem: foto do autor.

 

Pensado e passado na semana que ontem se encerrou e escrito hoje, 06 de março de 2022.