domingo, 20 de março de 2022

CASTELO DE AREIA NA MARÉ CHEIA

“A inutilidade da esperança e a inutilidade das queixas”¹. 


 Ao nascer do sol a mosca abre sua vida esticando-se, secando suas asas enquanto vê o baile das borboletas, o canto dos grilos.

Não sabe que poderia ter vinte e oito dias de vida. Ela por não ter ciência e as pessoas, por não terem consciência, ignoram suas vidas a complicar as vidas própria e alheias.

A mosca pousa em nossas comidas e, menos que as pessoas, percorre sua vida indo de sujeira em sujeira. Vê os humanos sujando suas vidas, suas relações, seus corpos, as ruas. E só esta última sujeira atrai a mosca.

Desânimo, desânimo. Não sei conviver, desânimo. Encontrar outras pessoas, desânimo. Estou cansado de ter desânimo. Quero sossego do silêncio, do nada e do ninguém.

A nossa mosca encontra outra mosca, procriam.

- Não tem pra onde correr. – Dizem-me e penso: Não há para onde fugir então caminho sentido; querendo ir para onde não existe. 


Fugindo das sujeiras internas das pessoas a mosca não vê a teia de aranha. Assim se fecha sua vida.

As pessoas vêm, vão e não se sabe se voltam. A vida vem, vai e não se sabe se volta. E o eu? Que venha, que vá e só fique onde sentir-me.


Depois haverá nuvens levadas pelo vento, pedras consumidas pela erosão do tempo e a lua a afastar-se da Terra sem deixar de iluminar enquanto pode.



¹ Os olhos que comiam carne, de Humberto de Campos.

 

Imagens: fotos do autor tiradas de sua casa.

 

Pensamentos tidos entre 14 e 20 de março de 2022.

Um comentário:

Glaussim disse...

Querido aRTISTA aRTEIRO: o texto é triste e duro como um funeral... sabemos que morreremos, mas pelo quê vivemos ainda importa... uma coisa que a mosca faz e que fazemos é brindar e cortejar o prazer de repor a vida. E assim a mosca perpetuará a própria espécie, ainda que incoscientemente pelos hormônios que a alteram...
Grande abraço!