segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

PORTÃO

 


26/12/21 primeiro aniversário de nascimento de minha mãe antes do primeiro aniversário de sua morte.

 

Confie em mim

Muitos dizem

Não confie nele

Muitos dizem

Todos parecem saber tudo

 

Pareço um bobo

Talvez seja tolo

 

Confie só em mim

Muitos falam

Não confie nos outros

Muitos falam

Não sei quem é o bruto

 

Entre todas as vozes

A perdida é a minha

 

Sim a mim

Muitos sussurram

Não aos demais

Muitos sussurram

Quem escuto

 

Atrocidade da atroz cidade

Onde está minha voz

 

A noite de vinte e quatro de dezembro de 2020 está bonita.

Olho pela janela antevendo o futuro e a lembrar o passado. ‘Me imagino’ na dança da solidão¹. 

No início da tarde de 16 de fevereiro de 2021 minha mãe falecerá pelo covid e no final da mesma tarde foi enterrada. Dois dias depois será o aniversário de minha irmã e após cinco dias uma prima me pediu para sair do apartamento onde moro para vendê-lo. Dar-me-ia – não resisti ao engraçado que é a mesóclise, nem a mistura de tempo verbais – dois mil reais. Não aceitarei e entrei na justiça. Em fins de 2021, época da postagem deste cronto, mudei-me para Timóteo seis meses antes.

Minha saída do apartamento foi porque ganharei na justiça e o comprador me deu cinquenta mil, pouco mais de um terço do valor do apartamento. Isso para que ele o comprasse.

Meus tios e primos me odiarão por ter defendido minha morada. Mas parece que parente é isso mesmo.

Mas repito e acrescento: A noite de vinte e quatro de dezembro de 2020 está bonita. O dia e a noite anteriores estiveram bem chuvosos e a goteira voltou.

Durante o dia, pelo watzap:

- Agamenom, entre em contato com seu tio porque o serviço que ele fez no telhado não está nada bom. Ontem passou o dia e noite chovendo e amanhecemos com a sala toda alagada. – Ri. – Alagada é exagero, mas toda molhada e olhando para o teto aquela velha fila de goteiras. Então o serviço que ele fez não está servindo.

Passa-se algumas poucas horas e responde-me:

- Pai, ele está na roça. Deixei recado com a tia.

- Bom, obrigado! E aí! Você e Henrique almoçarão aqui amanhã?

- Acho que não porque temos três visitantes que ficarão aqui alguns dias.

Pouco tempo depois vou ao congelador pegar o frangão metido a peru para descongelar para o almoço de Natal. Cadê o bicho? Não é possível que os cachorros tenham aberto a geladeira e chegado ao congelador. Mas por via das dúvidas olhei em todos os cantos da casa e neca de pitibiriba.

A noite eu, os três filhos que ainda moram comigo, mais a minha nora fizemos um delicioso churrasco. Lu, o caçula, passou mal. De tarde tomou um remédio controlado do irmão mais velho e a noite bebeu cerveja, vinho e conhaque. Rerrê.

Homem é molenga mesmo: “Vou morrer! Me acuda que vou morrer! Não estou sentindo meu coração...”.

Dei remédio para ressaca, massageei as têmporas do rapaz. Nisso, Vito, meu terceiro filho, pediu-me vinte reais. Neguei porque preciso do dinheiro que tenho. Saiu e voltou para pedir para o irmão. Este disse para pegar no bolso da bermuda que estava pendurada na cabeceira da cama.

Continuei a massagear as têmporas do garoto até acalmá-lo. Em pouco tempo dormiu e fui deitar.

Quando acordei Lu já estava de acordado e irritado. A bermuda amanheceu na varanda, sem os setenta reais que deveriam estar lá. Contou-me então:

- A usuária traficante que dorme do outro lado da rua na tenda armada por ela me disse ontem que Vito e o marido dela saíram para vender o peru. Não quis acreditar, mas agora estou tendo certeza.

Quase meio dia Vito aparece chapado. Não deixei os dois conversassem porque não se conversa nem com bêbado nem com nervoso. Amanhã veremos. 

Amanheceu e não vimos nada. Chato a perda do frangão que se acha peru. Mais chato é briga no Natal. Então prefiro dormir porque parente é assim.

 

 

¹ Dança da Solidão, composição de Paulinho da Viola.

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

 Imagens:

 Árvore Literária de Natal, foto do autor.

 Minha sobrinha Thais e minha mãe Maria Ettiene, self de Thais.

Guirlanda feita pela artesã Erika Aviles – watzap +5531991843032.

Foto do autor pelo autor.

 

Escrito no dia 25 de dezembro de 2020 e trabalhado entre 21 e 27 de abril e depois entre 21 e 27 de dezembro de 2021.

domingo, 19 de dezembro de 2021

A CHAVE DA PORTA DOS MALES

  

Você luta

tenta ser coerente,

briga com o sistema,

tenta fazer o melhor...

 

e, no final, por um mínimo de esforço

de um (3 perguntas) com um único

ser, se aprova a atitude de desleixo, de irresponsabilidade, de negligência.

 

Aí, fica a pergunta

Adianta?

Fiz papel de 🤡

Preciso me esforçar para ser melhor

nesse sistema?


Assim, caminha a educação.

(Emílio Ferreira)

 

Delícia

Chuva batucando

No telhado de minha

Casa

Vento flauteando

Nas

Portas e janelas

Cortinas e árvores

Bailando

 

Um girino se transforma num sapo e crê que o mundo é a poça d’água. Não busca mais nada.

O menino cresceu e crê que o mundo é a fábrica. Não buscou mais nada. Trinta anos depois o RH agradeceu pelos serviços prestados e o deixou sem mundo.

 

Eu, Benito, quando mais jovem, tinha horror a palavra “senhor”. Não pela associação com a idade que ingenuamente muita gente faz. Meu desconforto era porque via nela superioridade de uns sobre outros; não fraternidade.

Hoje vejo que “você” leva as pessoas a confundirem amizade com desrespeito. Enquanto “senhor” não implica perda de amizade nem de intimidade, mas induz o respeito solidário e fraternal.

Segundo o dicionário eletrônico (aplicativo para celular) Dicio: Significado da palavra senhor:

Substantivo masculino. 1. Pessoa de alta consideração. 2. [Figurado] Quem domina algo, alguém ou a si mesmo. 3. Pessoa distinta. Adjetivo. 4. Sugere a ideia de grande, perfeito, admirável.

 

Meu pai

[15/12/1925]

Se foram noventa e seis

Surgido na Terra

Ventos nos galhos arbóreos

 

 

Acima, algumas coisas que, na semana passada, pensei e postei no Caralivro.

Abaixo, a história de hoje. 

 

 

Quase dois meses enfermo. Depressão, ansiedade, labirintite, sequelas de covid.

Da chave da porta destes e outros males não direi o nome. Tenho palavras mais bonitas, mais úteis para dizer.

Uma semana após o retorno.

Quarta-feira:

- Professor Benito, o senhor não pode dizer a nota dos alunos em voz alta.

- Uai! Não pode? Obrigado, chave, pela orientação.

A criatura deu um passo atrás como estivesse sido empurrado; encurvou as costas também para trás como se tivesse levado um soco; fez uma careta como se tivesse levado um susto. O professor lhe deus as costas e voltou ao que fazia, mas chamado um por um e falando individualmente a nota.

Sexta-feira:

Ao fim das aulas, indo para a sala dos professores, a chave o para:

- Professor Benito! Alguns alunos me perguntaram se professor pode vir de chapéus já que eles não podem vir de bonés. É o que está no estatuto da escola.

- Uai! Depois de dois anos e meio vindo muitas e muitas vezes de chapéu, boina ou gorro alguém se incomoda com isso? E faltando uma semana para o fim do ano letivo? Tudo bem, obrigado pela orientação. Daqui uns dias não virei mais aqui mesmo...

E entrou na sala sem olhar para a chave nem para sua reação.

Segunda-feira:

Com meio metro de distância a chave conversa com um sujeito. Ambos sem máscaras. Vendo Benito entrar na escola lhe diz:

- Professor, a máscara! O senhor está sem ela...

- Estou!

E entra na sala dos professores. Pega alguns materiais e só então põe a máscara para ir para as aulas.

No recreio, conversam os professores Benito, Teteu, Esmaiz e Sirena.

- Por que você não perguntou onde está no estatuto? – Sugeriu Teteu.

- Falei para todo mundo as notas em voz alta e a chave não falou nada. – Disse Sirena.

- E a coisa estava sem máscara?!? – Comenta Esmaiz. – Por que não disse isso para ele?

- Não discuti com a chave porque não me incomoda essas bobagens. Vir de chapéu ou não é algo completamente sem importância para mim. Falar em voz alta ou em voz baixa é menos importante que passar as notas; quem passou ficou livre e quem não passou soube que ainda tem que entregar a última tarefa. É o roto falando do esfarrapado. Rerrê. O troço estava conversando sem máscara com alguém enquanto eu estava sozinho... Vou lá da importância para o torto roto? E o mais importante. Acho que ele está esforçando muito para me ver gritar para ter algo a dizer contra mim à Secretaria Municipal de Educação. Não vou dar o que a chave quer, pois não tem poder sobre mim. E só quero terminar o período letivo e pronto.

Quarta-feira:

Os formandos da escola fizeram uma comemoração na sala de aula e convidaram seus professores e demais funcionários, mas não a direção escolar. A chave ficou com tanto ódio que decidiu escolher quem poderia participar da festa de formatura que, sem nenhuma ajuda da escola, os próprios alunos se esforçaram para conseguir o dinheiro.

- Chave! O dinheiro é nosso e você não está convidado. Não apareça por lá.

Boa resposta, acho.

 

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

Meu pai em sua carteira de sócio do clube do time; foto do autor.

Retrato do autor feito pela estudante Karla V.A. Paiva.

domingo, 12 de dezembro de 2021

ARTE E EDUCAÇÃO: LUZ E CALOR

A noite perdura praticamente em todo o planeta, mas no Brasil é mais densa.

O que já foi referência internacional em vacinação tornou-se referência mundial em vacilação, em imbecilidade.

Mas não há treva mais profunda ou mais antiga que resista a luz de um fósforo.

Há quem acende velas. Há quem se torna vela. Há quem acende fogueiras. Há quem se torna fogueira.

Diferente do incêndio governamental, que elimina sem iluminar. Há luzes que aquecem e apontam caminhos.

Ah! Professores nas escolas, na vida e artistas de rua, de palcos, da escrita.

- Têm muitos artistas.

- Não. Tem muitos muchileiros, atores, cantores, pintores, escritores, poetas. Mas só incendeiam ou cobrem as velas e fogueiras.

- Quem são artistas então?

- Quem está continuamente em processo de criação; Julian exemplica essa luz. Quem tem coragem e buscam serenidade diante das adversidades; Andres e Erika são amostras de luz. Quem se senta aos pés dos anjos para ouvir seus ensinamentos ou quem bebe as angélicas palavras; ambos levando-as aos outros; Ronix e Emílio portam essa luz. Os que malabareiam com o fogo dos anjos; eis Faire e Ramon.

Mas não são só esses. Há Júlio, Mori, Alan, Luan, Diney e outros e outros e mais outros.

Talvez este macróbio escrevente e falante possa ser ou ter fogo, ou vela ou fósforo.

O maior Mestre ocidental não aceita mercantilizar o Todo de Tudo porque Este não pode estar acima do povo porque está no meio de nós.

- Está fazendo um texto religioso...

- Não! Falo da resistência aos mentirosos, aos filhos do pai da mentira. Meu assunto com você é sobre arte e educação no sentido real.

Colocaram um gordo boi de ouro em plena penúria; exaltando a injustiça, mas o fogo justo o queimou. E uma luz colocou no mesmo lugar uma vaca magra: é com isso que temos que acabar e não vangloriar as trevas.

- Por quê?

- Jesus foi morto por ser um pobre incômodo. Tiradentes foi morto por ser um pobre incômodo. Che Guevara foi morto por incomodar. Rainha foi morto por incomodar.

Só vivem os acomodados e os "incomodantes".

- E você não teme a morte?

- Não, a morte não. Temo o sofrimento e angústia que a antecede. Mas não sou pedra. Sou um grilo de Quintana e, no mínimo, também um fósforo. Que o exemplo de Dilma seja minha prática.

- Um policial algemou um bandido em sua moto e o arrastou pelas ruas.

- Não! Um policial negro algemou um jovem negro em sua moto e entre risos do povo o fez correr pelas ruas. - Pausa para olhar nos olhos de quem me ler. - Mas artistas e professores iluminam.

- O que já fez além de ensinar Português?

-  Ensinei por este ano:

Meu direito termina quando começa o do outro. Feminismo não é o contrário de machismo; feminismo é igualizacao e valorização humana. Não é pele, idade, tamanho, grau de instrução, sexualidade, gênero etc. que (des)valoriza. Nenhuma religião, crença ou ritual é inferior ou superior; diferentes apenas na aparência. Cobrei com força demasiada a dedicação aos estudos, cumprimento aos deveres e respeito às diversidades.

- E você se surpreende com as pedras que te atiraram?

- Não, não me surpreendo. Só me pergunto se algum dia será diferente, para melhor.


__________

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

A imagem é  uma foto de Emilio (Bigote) Fleitas. É trabalho dele em fogo.

Escrito na manhã de 12 de dezembro de 2021 e pensado nas semanas anteriores.

domingo, 5 de dezembro de 2021

DIVINO E SAGRADO

 

Se eu quiser falar com Deus

Tenho que ficar a sós

Tenho que apagar a luz

Tenho que calar a voz.

Tenho que dizer adeus

Das as costas, caminhar

Decidido, pela estrada

Que ao findar vai dar em nada

Nada, nada, nada, nada...

Do que eu pensava encontrar.


Como eu não sei rezar

Só queria mostrar

Meu olhar, meu olhar, meu olhar.

 

O vídeo com minha leitura do cronto está no canal aRTISTA aRTEIRO, no youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=RpYvtBQLUVY

 

Mais um domingo. Depois deste haverá mais três antes de 2022. É domingo e ainda tenho que levantar-me para mais um dia, provavelmente para mais uma semana inteira. Possivelmente viverei os outros domingos e adentrarei no novo ano. O último ano de destruição do Brasil.

Saí da cama para urinar, lavar o rosto, por água para ferver, arrumar onde dormi, passar o café, fazer minha prece matinal e continuar o dia até dormir outra vez.

Quase sete e meia fui comprar desodorante e pão. No jardim umas flores roxas baixo sol forte no céu seminu. Quis tirar uma foto, mas foto da natureza fica melhor quando nublado.

No caminho vejo quatro pessoas. Um velho com andador e talvez seu filho o ajudando a entrar num carro. Enquanto passo por duas senhoras. Uma diz para a outra “Nosso Deus é poderoso” e a que ouve diz para o velhinho “Nosso Deus é tremendo”. Escuto quatro vozes: Aleluia!

Entristeço-me! “Nosso Deus?!?”. Acaso há outros? O que tem é um só Deus com nomes distintos. Feito eu: uma só pessoa que pode ser chamada de Benito, ou Professor, ou Poeta e outras formas que também já ouvi e algumas atendi.

Porque razão as pessoas insistem tanto em conservar seus preconceitos; raramente mudando seus conceitos.

Sim, eu sei. Mudar os conceitos implica dizer que esteve errado toda a sua vida pregressa. Eu, que tenho tantos medos, não sou covarde. Mudo de ideia com quase facilidade; mostre-me um novo melhor. Talvez resista, mas penso, logo filosofo e em seguida poetizo meu novo eu. 

Finalmente em casa e as nuvens vestem o céu. Agora sim fotografo a flor ouvindo canários, galos, bem-te-vis e vendo o voo de pássaros.

Mas meu cérebro não se cala. Ai, quantas e quantas pessoas pensam que o “Céu” será conforme seus ideais e crenças. Mas Deus é imensurável para um e outro defini-lO. O Paraíso – ou como o nomeia – não é budista, judaico, cristão, islâmico, umbanda, candomblé, desta, dessa ou daquela; não meu, seu, de alguém ou aquém. É de Deus. E só.

Meu cérebro fala consigo quando minha língua se guarda. Ao falar comigo crio a voz que me explica um pouco da verdade. Mas sempre um pouco; nunca muito e menos ainda o tudo.

Fecho os olhos e vejo as flores. Tampo os ouvidos e ouço as aves. Paro meu corpo e voo como pássaro. Quando meu coração parar no fim de minha estrada não sei se serei flor, pássaro, pedra, grilo, vento, nuvem, sol, estrela, silêncio, som. Serei o que tiver que ser: o tudo ou o nada.

Flores, canto e voo de pássaros; algo que valha, senão a semana, pelo menos o dia.

 

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens: foto do autor.

Músicas:

Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil;

Romaria, de Renato Teixeira.


Escrito e pensado na manhã de 05 de dezembro de 2021.

domingo, 28 de novembro de 2021

UM DIA IREI


 

Duas, quase três horas da tarde nublada e a vista frontal no ponto de ônibus mais próxima da transversal de quem vai para os bairros de Timóteo mistura o belo com o feio. Os fundos do Centro de Economia Informal “Raimundo de Souza Neto Sô Mundico” junto com árvores e matos descendo uma greta; o barulho do trânsito, gente conversando e pássaros cantando.

Depois de observar, pego o livro A Língua de Eulália, de Marcos Bagno e me relaxo com estes versos de João Cabral de Melo Neto:

Catar feijão se limita com escrever:

Joga-se os grãos na água do alguidar

E as palavras na folha do papel;

E depois, joga-se fora o que boiar.

Minha leitura é atravessada pelo barulho humano.

- Ele gritou comigo.

- Osvaldo sempre te xinga?

- Não. Foi a primeira vez. Já discutimos antes, é claro. Mas brigar mesmo foi a primeira vez. E não quero uma segunda...

- Ele te xingou de quê? De vadia, vagabunda, mocreia?...

- Não. De estúpida e grosseira.

- Uai! Então não é Maria da Penha, não.

- Como não? Ele é homem...

- Todo mundo pode xingar. O que não pode é xingamento sexista, machista, racista... Existe xingamento que é só por estar nervoso. Vejamos: Se o Osvaldo chamasse alguém de “criolo, urubu” se vê que é racismo. Se alguém chama outro de algo que não tenha ligação com cor de pele, tamanho do corpo, gênero... é outra coisa.

- Mas...

- Aí vem nosso ônibus. Lá dentro a gente continua.

Olhando a vista a frente, abro minha bolsa e recolho a antologia Identidades, da editora Venas Abiertas. Sinto o que um dos autores escreveu. Tudo o que dizem é identidade; se não minha é de quem tenho paridade. Ai, humanidade que odeia igualdade. Quer a desigualdade no lugar da diversidade. Olha o outro e não se vê.

Às vezes, quantas vezes, o que planto é colhido...

- Você é agricultor? – Pergunta debochado a voz do meu adversário interior.

- Não! Sou escritor, professor.

Querem levar não o melhor de mim, mas a melhor sobre mim. Algumas vezes, como vi em Torto Arado, de Itamar Vieira Junior¹, consigo impedir que me deixem os restos; conservo para os meus os maiores e melhores frutos de meus trabalhos. Ah! Tão frequentemente sinto vontade de deixar tudo apodrecer e perecer por desgosto, por desânimo diante das constantes batalhas que não existiriam se não fossem egos, vaidades, maldades e brigas sem porque, só pra ter. Nem é possuir esse ter; é ter desavença. Mas assim como a terra onde se planta deve ser respeitada, respeito onde germinam minhas ideias e as turmas com quem trabalho. Se os animais pudessem ler o que escrevo, aprender o que ensino seriam eles meus destinatários. Estes merecem meu suor, minhas dores, minhas lágrimas, minhas feridas.

- Desista, Benito! Quantos já te disseram “A meu gosto meu filho se retiraria de suas aulas; não participaria de nenhuma”.

- Não! Respeito a terra onde planto, cuido e colho meus trabalhos. E se há quem não me quer; que me aguente como os aguento. E se há quem me quer, que me aceite como os aceito.

Os leves barulhos a minha volta levantam minha cabeça. É meu ônibus. Guardo apressado os livros para misturar-me ao coletivo.

Mas um dia entrarei num trem, num ônibus, num navio ou num avião só pra ir.

 

 

¹ VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019. P. 152. Tenho dois exemplares e ambos emprestados. O que leio foi a mim temporariamente cedido por Nena de Castro.

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens: fotos do autor – os fundos do camelódromo.

 

Manuscrito em 19 de outubro e trabalhado entre os dias 14 a 28 de novembro de 2021.

domingo, 21 de novembro de 2021

SE VIVO

 O ônibus para o Centro de Timóteo deu uma parada mais longa em algum lugar em Alegre.

Pela janela vejo uma goiabeira.

Um galho grosso fora quebrado quase no encontro com o tronco. Outros dois grossos galhos foram retorcidos. Talvez pela natureza, mais provável por gente. Sabe-se lá porque. Um quarto galho, menos grosso que o mutilado e os torcidos, mas muito mais comprido. Este se escorou no muro.

A goiabeira persistia em viver; houvesse o que houvesse. Quanta coragem, persistência, resistência. E resiliência?

Ontem comemorou-se o aniversário do Lion. Três anos. Não sei o que pensaram ou sentiram os pais e os convidados. Para mim foi simples e delicioso; quase à perfeição.




Lion e os pais Andres e Erika mais o irmão Kael; vovô Rubem e seu irmão Janio; a escritora Nena de Castro, seu marido (Moacir) e a filha Taty. Além de verem a família Garcia Aviles veio aconselhar-me: 'O mundo é uma eterna luta contra moinhos de vento', disse-me e penso que a ilusão nos faz ver moinhos, mas na realidade são com gigantes que lutamos. Participaram ainda Faire, Ramon e Alan, mais nossos vizinhos de frente, que ajudaram a fazer os doces, André, Carolina e as filhinhas. Um sábado doce com chuvas de novembro e o verde nas cercanias.

Hoje meus cachorrinhos mataram uma gatinha. Indícios de minha alma ainda violenta. Estou tentando aprender a soledade, a solidariedade e a serenidade.

Se conseguir, levarei para o mundo do além ou acabará aqui. Não sei. O que importa progredir sem agredir.

O ônibus voltou a percorrer seu caminho e a goiabeira tem mais força e coragem que eu. Talvez por só viver sua vida enquanto vivo a minha em partilha.

Mas ainda estou vivo, atravessado pelo tempo, atravessando meu mundinho.



Rubem Leite.

Pensado por algumas semanas. Escrita 21 de novembro de 21.

domingo, 7 de novembro de 2021

ÍNDIAS OLHANDO PELA JANELA - LA VANIDAD DE LA BLANCURA EUROPEA

 

“Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros da selva, mas nós, os argentinos, chegamos de barco. Eram barcos que vinham da Europa, e assim construímos nossa sociedade”.¹

“Los mexicanos salieron de los indios, los brasileros salieron de la selva, pero nosotros, los argentinos, llegamos de los barcos que venían de Europa, y así construimos nuestra sociedad”.¹

(Presidente Alberto Fernández)

 

 

Em português:

Índias olhando pela janela.

 

Senhor Presidente da Argentina, Alberto Fernández, o brasileiro é filho da selva; do ar puro, da beleza, da natureza. Mas o senhor esqueceu que somos também filhos dos negros. Temos a benção de ser filhos de indígenas, negros e, não é possível negar, de português.

Português... língua que Cervantes falou “é a língua mais musical que já escutara”. O senhor tem vergonha de seu pai, de sua mãe, de avós, bisavós... Nós, brasileiros, amamos nossos ancestrais. Não falo do México nem de outros países que o senhor indignamente menospreza suas origens porque não tenho tal liberdade, mas sei que eles também amam suas raízes.

Sim, sei! Há muitos brasileiros que se envergonham de sua origem negra e quase se orgulham de terem “uma avó indígena”. Uma expressão comum das pessoas mais velhas é que “sua avó foi pega a laço e que ao fim da tarde ficava olhando pela janela a direção de sua aldeia”. Falam com romantismo, sem perceberem que suas avós foram sequestradas e estupradas. Se tenho uma vergonha é essa: estupros de negras e indígenas pelos brancos. Mas se tenho algum orgulho é de ser formado por essas etnias mais do que pela portuguesa. Do português o único que me emociona é a língua, por sua musicalidade.

Mas uma imensa parte de nós, brasileiros, ama nossos ancestrais. Aceitamos até nossa origem europeia; apesar dos pés europeus serem podres: aonde pisam tudo morre.

Sobre a língua portuguesa há quatro datas comemorativas. Cinco de novembro foi o Dia Nacional da Língua Portuguesa. Essa data foi escolhida em homenagem a Ruy Barbosa, talvez o maior conhecedor brasileiro da lusofonia e também grande conhecedor de outros idiomas.

Sr. Alberto Fernández, seu embaixador no Brasil expôs sua vontade de trabalhar com o presidente do Brasil.² Como pode? Como pode pedir ajuda a Boçalnato para destravar questões econômicas encontrando-se com a ministra da agricultura Teresa Cristina?³ Em que isso poderá ser frutífero para nossos povos? Teresa Cristina tem dois apelidos: Miss Veneno e Senhora Queimadas. Como uma agricultura predatória pode ser boa para a população?

Mas o mais importante, senhor Presidente argentino, ame seu povo, que não é só euroargentino, mas sim a mescla que forma tão grandioso país.

 

 

En español:

La vanidad de la blancura europea.

 

Señor Presidente de Argentina, Alberto Fernández, el brasileño es hijo de la selva; del aire puro, de la belleza, de la naturaleza. Pero usted olvidó que también somos hijos de los negros. Tenemos la bendición de ser hijos de indígenas, negros y, no es posible negar, de portugués.

Portugués… lengua que Cervantes habló “es la lengua más musical que he escuchado”. Usted tiene vergüenza de su padre, de su madre, de sus abuelos, bisabuelos… Nosotros, brasileños amamos nuestros ancestros. No hablo de México y de los otros países que usted indignamente desprecia sus orígenes porque no tengo tal libertad, pero sé que ellos también aman sus raíces.

¡Sí, lo sé! Hay muchos brasileños e hispanoamericanos que se avergüenzan de su origen indígena y todavía más de su origen africana. Pero la verdad es que esas mujeres indias y negras fueron violadas. Así, sus madres y abuelas fueron violadas y sus padres y abuelos, violadores. ¿De qué se orgullece su blancura europea, presidente? Eso es una vergüenza para mí. Sin embargo, hay algo que me orgullece: soy fruto de todas esas etnias más do que la europea. Y del portugués la única cosa que me emociona es la lengua, por su musicalidad.

Pero muchos de nosotros, brasileños, amamos nuestros ancestros. Aceptamos hasta nuestro origen portuguesa; a pesar de los pies europeos sean podridos. Adonde pisan todo se muere.

Señor Alberto Fernández, su embajador en Brasil expuso su voluntad de trabajar con el presidente de Brasil.² ¿Cómo puede? ¿Cómo puede pedir ayuda a Bozalnato para desbloquear cuestiones económicas encontrándose con la ministra de agricultura Teresa Cristina?³ ¿En que eso podrá ser fructífero para nuestros países? Teresa Cristina lleva dos apodos: Miss Veneno y Señora Quemadas. ¿Cómo una agricultura predatoria puede ser buena para la población?

Pero lo más importante, señor Presidente argentino, ame su pueblo, que nos es solo euroargentino. El hecho es que son la mezcla que forma tan grandioso país.

 

 

¹ Em português: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-06-10/presidente-argentino-alberto-fernandez-irrita-toda-a-america-latina-com-uma-unica-frase.html   /   En Español: https://www.infobae.com/america/america-latina/2021/06/09/fuerte-repercusion-en-los-medios-de-brasil-y-mexico-tras-la-polemica-cita-de-alberto-fernandez/

² https://revistaoeste.com/politica/presidente-da-argentina-quer-encontro-com-bolsonaro/

³ https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/meio-ambiente/65587/de-miss-veneno-a-senhora-queimadas-tereza-cristina-garante-agricultura-predatoria

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

 

Manuscrito originalmente en español en 02 de julio de 2021.

Trabalhado nas duas línguas entre os dias 05 e 07 de novembro do mesmo ano.

domingo, 31 de outubro de 2021

AS QUATRO MÃOS DO AUSPICIOSO


Em sua mão superior direita, Shiva segura um tambor de onde sai o som primordial da criação. Ele fez, faz e refaz o mundo, as pessoas e tudo que há.

De manhã vi o sol atravessando vermelho, amarelo e branco as nuvens cinzas. Como será o resto do dia?

Um cachorro de tamanho médio, focinho e patas caramelo e o resto é preto, espera na rua, em frente ao posto de saúde, seu dono sair do consultório. Como lhe será esse dia?

Em sua superior mão esquerda, Shiva carrega o fogo que destrói, mas também ilumina, aquece, coze.

Olho outra vez o céu. O sol continua a atravessar amarelo e branco as nuvens em posições e formas diferentes.

O bailar das duas mãos equilibra o dinamismo, harmonizando a vida. Fazer, desfazer, refazer sempre a evolução. E sua face calma elimina a confusão ao mostrar-nos o transcender da fusão entre esses polos.

O homem sai da médica e o cão o segue sem lamentar a falta de atenção do dono. Ele cuida sem se preocupar com o não retorno frequente de afeto.

Como um bobo – não com um tolo, um imbecil – mas sem buscar vencer com úlcera (no dizer de Clarice Lispector) ele faz. Será que sou bobo como o cachorro ou manipulável e tolo?

Em casa o homem toma seus remédios para continuar a vida, venha como for.

A segunda mão de Shiva diz em seu gesto: não tema, tenha coragem. De sua mão e seus gestos compreendo: Vá e Vença! A divina mão expõe: mantenha-te! Protejo e dou paz.

Do homem passo a uma mulher. Ela se sujeita ao pai de sua filha. Ele, casado com outra, não paga pensão, mas dá dinheiro depois de algumas horas na cama.

Mulher! Não é obrigada, mas não sabe disso e tem medo. Tem o ensinamento entranhado “esse é o papel da mulher”.

Ela se consola na manhã seguinte ao comprar um pouco mais de comida. Seu salário de doméstica da madame do Timirim paga o aluguel e contas, mas não dá conta de uma comida saudável e farta.

E a última mão, a esquerda? Essa aponta o pé erguido. Ah, esse pé e essa mão... Em verdade: ah, esse gesto! É o que nos liberta da ignorância e do apego.

Shiva baila sobre a Ignorância, o verdadeiro demônio.

Música, fogo, coragem e conhecimento é a Dança das partículas atômicas sempre a interagir emitindo e reabsorvendo tais partículas no orgânico e no inorgânico que no dizer de Lavoisier “nada se cria, nada se perde. Tudo se transforma”.

A mulher vê na casa da patroa o livro Quarto de Despejo no quarto de despejo da madame. Essa “coincidência” desperta sua curiosidade.

A curiosidade vira a música do conhecimento que se faz luz e coragem. Assim se movimenta para dançar a vida.

Hoje encerra o outubro rosa e amanhã começa o novembro azul. Ah! Se tivéssemos governos. Setembro amarelo, outubro rosa, novembro azul. Preciso de psiquiatra e no CAPS não há vaga para esse ano nem devo esperar para o ano que vem. E consulta com psicóloga só daqui a três semanas após o dia da procura. Triste! Nossos governos não ajudam.

Difícil e fácil viver.

 

 

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens – fotos do autor.

 

Manuscrito e trabalhado entre 04 de outubro e 31 de outubro de 2021. Iniciado no dia de São Francisco de Assis, falando de Shiva e encerrando no dia do Saci.

domingo, 24 de outubro de 2021

SÃO FRANCISCO DE ASSIS, OS ANIMAIS, A ECOLOGIA E A IRMÃ MORTE

 

“Todos os seres são iguais, pela sua origem, seus direitos naturais e divinos e seu objetivo final”.

“Todas as coisas da criação são filho do Pai e irmãos do homem... Deus quer que ajudemos aos animais, se necessitam de ajuda. Toda criatura em desgraça tem o mesmo direito de ser protegida”.

“Apenas um raio de sol é suficiente para afastar várias sombras”.

(Três pequenos ensinamentos de São Francisco de Assis).

 

Como sempre a manhã é bela. Se fossem só as manhãs, a fauna, a flora... Enfim a natureza seria uma dádiva, mas ninguém tem noção e não perceberem seus atributos; mas há muitas consciências ativas?

Sou o inverso de Francisco; ele é doce. Sou mais próximo de Antônio; ele é severo. E gosto de ser assim. Creio que a trindade franciscana conseguia ter essa ciência.

 

- O Sangue de Jesus tem poder! – Segundos de silêncio. – Vai morrer!... – Mais outros segundos. – Vem pra fora, diabo! – Grita na porta do posto de saúde do bairro Limoeiro, Timóteo.

- Tem ninguém aí não.

- Por que está aberta então?

- É a faxineira.

Ele volta para onde veio gritando as mesmas coisas, mas começando pela última exclamação e terminando com a primeira.

Eis o início de mais um dia.

Não um dia qualquer, é o de São Francisco de Assis e do meio ambiente. Ouço canto dos pássaros, um louco gritando incoerências e doentes lamentando enquanto esperam e esperam. Esperamos! Como será esse dia? Por enquanto fico ou tento segurar, manter, com o canto dos pássaros e a imagem do sol atravessando amarelo e branco as nuvens cinzas. 


No dia seguinte, enquanto digito o manuscrito, penso: faxineiras não são alguém ou a mulher que avisou ao louco queria dizer apenas que não havia outros funcionários para marcar as consultas: enfermeira e médica? Vai saber! Mas tenho minhas suspeitas...

De minha casa ao posto de saúde vejo cachorros famintos, dormindo na rua, não em suas casas.

Lembrei do vizinho que queria quebrar a mandíbula de minha cachorrinha que entrara em sua casa, não parando mesmo diante de meus rogos. Parou quando peguei uma telha e atirei para além dele. O machão entrou correndo na casa, trancando a porta e deixando a mulher que dormira com ele na parte de fora.

No livro antológico Identidades, da editora Venas Abiertas, uma dedicação de Karine Oliveira, ouço, no momento, Samuel Medina e Pablo Figueroa e eles bailam com Renato Russo e Chico Buarque:

O homem passou por sobre o pombo e conferiu a imagem que revelava vagamente a figura de um trecho de um vitral que vira na infância: parecia o Arcanjo Gabriel no momento da Anunciação. O pombo esmagado, as asas abertas e o que antes fora seu corpo feriam a mente do homem. Era como ele soubera que não houvesse como escapar. Foi com essa forte determinação que ele subiu os 18 andares de um dos principais edifícios da cidade. Sentindo toda a liberdade de um ser alado, ele deixou seu corpo dançar no vazio até alcançar o chão.

(Medina).

Subiu a construção como se fosse solido. Seus olhos embotados de cimento e lágrimas. Dançou e gargalhou como se ouvisse música. E tropeçou no céu como se fosse um bêbado e flutuou no ar como se fosse um pássaro e se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o público.

(Buarque).

Ninguém sabe o que aconteceu. Ela se jogou da janela do quinto andar. Nada é fácil de entender: Explica a grande fúria do mundo.

(Russo).

Meus iguais jazem enterrados lá no fundo, e vocês são as larvas.

(Figueroa).

 

Queria ter pensamentos bonitos, mas não estou conseguindo. Ou será que não posso? Será covardia, preguiça? Será algo mais forte que eu?

Médicos dizem algumas coisas. Religiosos dizem outras. O povo fala o que lhe sai pelo cotovelo. E, vedando minha vista e meus ouvidos, olho o sol ainda crescendo e ouço os pássaros ultrapassando o alboroto humano. Comigo apenas meus livros.

- Sr. Benito! A médica vai atendê-lo.

Entro. Explico minha situação. O surto da semana passada, as crises de depressão e ansiedade que me assolam. Que não posso ir trabalhar. Que tenho uma consulta marcada com um psiquiatra para o próximo sábado.

- O senhor quer atestado para cinco dias?

- Não, não quero. Preciso! Não tenho condições de trabalhar. Acordo a noite chorando e sem respirar. Durante o dia choro, perco o ar e não aguento andar de tanto cansaço. Uma fome que nunca passa e me produz duas coisas: ou só não me entupo de comida porque sei que não é apetite ou então tento comer e não ultrapassa a garganta. E a fome! Fome, não apetite... Fome ininterrupta. E o atestado não é para fugir do trabalho e para poder aguentar até sábado onde tenho uma consulta com um médico especializado para dizer-me como proceder.

Sem vontade minha sai-me lágrimas. A médica me observa pensativa.

- Tem mesmo uma consulta marcada para sábado?

Não tenho mais força para falar e só afirmo com a cabeça. Ela me dá o atestado. Volto para casa. Passo a semana pouco me alimentando de comida, mas me alimentando de consolo, de força, de conselhos: livros!

Mesmo afastado, durante vinte e um dias enfrentei as pessoas no trabalho, nas clínicas e onde mais tive que ir. Consumo os remédios prescritos. Mas me repouso e fortaleço na natureza ao redor de minha casa e com a literatura.

 

 


Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens – fotos do autor.

 

Manuscrito no dia 04 e trabalhado entre o dia seguinte e 24. Tudo em outubro de 2021.