"Num deserto de almas também desertas uma alma especial reconhece de imediato a outra"¹.
Em vida cansei de aniversários.
Já gostei de ser lembrado
E gente em casa.
Risos temporários.
Alegrias superficiais
No oco do coração.
Na carne cardíaca
Vazios, artificiais.
Felicitações de boa fé,
Obrigado!
Felicitações de má fé,
não eram obrigados.
No momento
Silêncio, soledade,
Livros, pensamentos,
Cachorros, gatos, peixinho
Até o memento.
Quando eu morrer
Não quero velório.
Basta o enterro
Pelos coveiros.
Parentes, familiares, amigos,
Colegas acima, ao lado, abaixo.
Ninguém!
Não quero rezas,
Prantos, piadas
Elogios.
Nem se os tiverem.
Quero silêncio,
Sossego e ninguém.
Só a terra por cima,
Talvez um canteiro de flores
Mas Ninguém.
Um mês depois
Realizem o anteriormente dito
Memento
- Isso se não for por aparências.
Pra quê?
Tudo se esquece, perde-se
Até as condolências
E o tempo é em vão -
Mas se o realizarem
Seja
Em silêncio
No solitário ou soledade
De seu "órgão torácico, oco e muscular, que funciona como o motor central da circulação do sangue".²
No mesmo tempo ou outro
Realizem um almoço
- isso se quiserem; realmente quiserem -
Para comemorarem
Ou lamentarem.
Podem rir, falar, chorar...
Não estarei ali
Não estarei nem aí.
Mas num restaurante ou onde quiserem.
Desde que nunca no cemitério,
À minha sepultura.
Minha cova é minha
E de mais ninguém
E Ninguém tem que ir lá.
O que até então foi meu será seus.
Não creio haver brigas
- Nada tenho -.
Mas se disputarem seja onde queiram,
Menos no meu campo santo.
Só peço umas coisinhas:
Adotem meus bichinhos e cuidem bem deles.
E já que estou pedinte
Peço uma coisa mais:
Não vão ao meu enterro.
Se quiserem ir que vão aos seus.
_____
Autor: Rubem Leite.
Imagem: foto de Erika Aviles.
¹. Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu.
². Dicionário eletrônico Dicio.
Setembro 2022.
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