domingo, 16 de outubro de 2022

DORMIR

"Por o primeiro pé na primeira ausência de mim"*.


Dizem que Victor Hugo, ao ver uma gárgula numa igreja francesa, falou "por que não sou de pedra igual a você". Através de um de seus personagens, José Saramago disse "se o seu coração é de ferro, aproveite-o bem. O meu foi feito de carne e sangra todos os dias.



Quero ler, estou cansado. Quero escrever, estou cansado. Quero ver um filme, estou cansado.

Elogio, brinco, critico, sou mal interpretado. Faço isso e aquilo, não agrado. Fico quieto, em silêncio, sou acomodado. No trabalho meu muito lhes é pouco. Fico sem força para sequer fazer o mesmo. 

Queria dizer sobre o professorado: É uma missão mais que profissão, mas não nos veem nem como profissão. Que temos o poder de mudar o mundo, mas não conseguimos nem mudar o estudante. Que somos a elite intelectual da cidade, mas há até quem vota no Boçalnato. Que somos respeitados e amados, mas só gostam de nós enquanto dizemos o que querem e não os fatos - seja comportamental ou acadêmico.

Em casa, os gritos dos vizinhos da frente e meus cães latindo a eles... Sinto-me sem lar, lugar pra ficar nem pra ir.

Muito tempo atrás um pastor chutou um ícone da Senhora Aparecida e nestes últimos dias outros fizeram o mesmo.

Lembro que naquela ocasião Rita Lee comentou o fato dizendo que a agressão foi contra uma mulher negra. Não foi a uma estátua do homem "branco" Jesus.

E o que mudou de lá pra cá?

Não vejo nada.

Neste mesmo dia 12 de outubro de 2022 um grupo bebia cerveja na porta da basílica. Os canecos contiam a figura do Boçalnato. Um disse "deus está aqui e bebo seu sangue" enquanto sorvia um gole os demais aplaudiam.

Um devoto da Aparecida, por uma simples camisa vermelha, escapou de ser linchado refugiando-se na grande igreja.

Boçalnato disse "surgiu um clima ao conversar com três ninfetas bonitinhas" e pediu para ir a casa delas, onde havia outras quinze adolescentes. Todas estrangeiras pobres. Entenda cada um por si o que ele deu a entender. Sendo verdade, não deveria ter "surgido um clima".

- Não foi o que ele disse. - Falou uma colega professora. - Isso é colocar maldade onde não tem.

Nem lhe respondi. Penso na presidente da ONG de acolhimento dessas meninas a explicar que o presidente visitara uma ONG, não uma "casa da luz vermelha".

Mudanças, quais foram? Ou não houve?

Na noite de ontem: um vídeo de tucanos a entrar em um apartamento buscando comida. Os moradores, alegres. Nesta manhã olhei ao meu redor. Árvores, flores, canto de cigarras e pássaros, borboletas. - Soltos. - Mas, igualmente, não faltaram aves engaioladas, cães abandonados, crianças descuidadas e velhos ignorados.

A única espécie capacitada a admirar ocupa tudo, destruindo, aprisionando ao invés de apreciar.

Não sei viver. Por ignorar como não sei conviver.


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Rubem Leite.

* À Beira do Nada, de Clarice Lispector.

Foto do autor.

Escrito entre 09 e 16 de outubro de 2022.

Um comentário:

Anônimo disse...

Comovente❤😥