sábado, 21 de agosto de 2010

MEU PAI, O GATO E AS VESPAS

Escrita às sete horas da manhã e mexida às 15 horas

do dia 21 de agosto de 2010.

Ofereço como presente de aniversário a

Graciele Morgan, Luana Rodrigues, Michel Ferrabbiamo.


Meu pai morreu. Todos sabem disso. Fomos ao velório e o enterramos a quase 19 anos atrás. Então como minha mãe, meus irmãos e nossos conhecidos não estranham ele está conosco? Como as pessoas agem como se ele estivesse com a gente esse tempo todo? Dizem que um louco não admite a hipótese de estar louco. Será que estou? Um louco manso... Que aceita tal idéia? E as outras coisas? O gato que me odeia. Me ataca quando passo por ele. Procura-me e me persegue. Numa inteligência humana. Uns olhos vermelhos. Uns miados roucos, de garganta não usada e dentro de uma caixa... São assim os miados. São assim. E as vespas? Colméia... Vespa faz colméia ou é outro nome? Bem! Os ninhos marrons avermelhados, disformes como se fosse obra cubista, fora de casa logo acima da janela da sala e quase do meu tamanho. Ferrão duas vezes maior que elas. Por que ninguém estranha?

Falei do papai e olharam-me como se eu dissesse bobagem. Quando falo, eles nem me ouvem. Viram a cara para o outro lado e continuam o que faziam. Qualquer outra coisa que não seja papai, o gato e as vespas eles me respondem, conversam comigo.

Será que estou louco? Mas então porque eles agem como se eu fosse normal quando falo de outros assuntos? Será assim que agimos com os doidos quando falam o que consideramos certos?

Estou no quarto. Porta trancada, janela fechada e o sol entrando por ela enquanto escrevo “a quem possa interessar”. Uma vespa, duas, na janela. O gato na gameleira. Cinco, sete, dez vespas na janela. O gato mia no galho da gameleira. Quase metade da janela com vespas. Seus ferrões no vidro. Quíqui. Quíqui. Quíqui. O quarto escurecendo. O gato mia no galho quase encostado à minha janela com mais da metade coberta de vespas. Quíqui. Quíqui. Quíqui. Acendo a lâmpada. O gato olha para mim nos poucos centímetros ainda não cobertos do vidro. Quíqui. Quíqui. Miado. Quíqui. Tásqui. A luz se apaga. Paro de escrever. Não agüento. Não tenho como. Miado. Quíqui. Tásqui. Outro rachado no vidro. Batida na porta. “Filho”! Miado. O vidro se quebra. Papai arromba a porta.

Agora são só meus pensamentos gravados na parede do quarto. Só meu pavor no ar da casa. Ninguém se lembra de mim.

Foi loucura ou aconteceu?

2 comentários:

Palavra em Fuga disse...

O tempo trincou o gato, fez cair as asas do vidro. Os cacos se arrastando, besouros inofensivos no chão. As vespas enovelaram tudo para as unhas do pai desfiar. Eles não sabem destas coisas. Têm os olhos vesgos de realidades muito, muito imediatas. Loucura é não acreditar nos próprios fantasmas.

Leticia Duns disse...

E então reconstituo-me e crio novamente meus personagens que me assombram assim, tenho com o que me preocupar além vida... E digo que conheço meu pai, e sei que o gato me olha e em mim não atrobui carinho...

E as vespas? Nem as comento mais...

E o pai, o gato e as vespas?
E eu, o pai, o gato e as vespas?
E eu, você, o pai, o gato e as vespas ?
E eles que me olham, eu, você, o pai, o gato e as vespas?

Num sobressalto acordo desesperado.

Os olhos que me olham não são dois...

Os olhos que me olham são de meu pai e o gato em seu colo...

E as vespas? Nem as comento mais...