terça-feira, 19 de julho de 2011

DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS ou IGUAIS NA DIFERENÇA – parte 3

Obax anafisa.


Fala o Juiz

- Estou vendo que os senhores querem ter a guarda do garoto João. Mas não estou vendo cadastro de nenhum dos dois na fila de adoção.

Fala o Promotor

- Querem ter sob a guarda de vocês um adolescente? Um rapaz, ainda por cima? Um jovem cheio de energia e vigor?

Apesar de obviamente percebermos aonde ele quer chegar, questiono

- O que o doutor está querendo perguntar com tantas interrogações?

- Pois então vou ser bem claro. Pedofilia. Um casal guei com um adolescente só pode está querendo sexo.

- Se conversar com João – digo – perceberá que isso nunca aconteceu e que nosso sentimento está mais para pais...

- Pais? Qual dos dois é a mãe?

- Suas perguntas estão sendo pertinentes, nobre colega, só que não se trata disso e acontece que ambos são homens o que exclui a possibilidade de um ser mulher. – Interfere Dra. Marilene, nossa advogada. Também conhecida por Nena de Castro, como, a seu pedido, doravante será tratada.

- Permita-me responder – digo – a moderna psicologia afirma – ou seja, a ciência – que para dois homens se amarem ou para duas mulheres se amarem um não precisa necessariamente assumir papel contrário à sua natureza. Em outras palavras, um homem não precisa deixar de ser homem e nem uma mulher precisa deixar de ser mulher. Este é o nosso caso, ou seja, eu e Luiz somos homens. Masculinos. Viris.

- Em muitos casos não é isso que acontece...

- Outros casos não estão em julgamento. – Fala nossa advogada. – Estamos discutindo o caso João, que não tem família, e de meus clientes de ilibada idoneidade, que querem ter a guarda dele. E é nisso que o doutor deve se ater.

- Depravação é depravação...

- Os homossexuais são acima de tudo seres humanos e como tais devem ser respeitados. Os transgêneros e os transexuais são igualmente seres humanos e como tais devem ser respeitados. – Interfere o Juiz. – Atenha-se aos fatos e ao caso, por favor.

Sem chegarem a nenhuma conclusão é marcada outra audiência. A nova promotora é ainda mais preconceituosa que seu antecessor. Começa falando que a Bíblia condena os homossexuais; passa para “os homossexuais merecem prisão, castração”. E encerra dizendo que somos os males na terra. Diz que a Bíblia deve ser seguida à risca. E muitas outras coisas. Não discordo que a Bíblia seja maravilhosa. E como a Promotora gosta muito da Bíblia, e as discussões estão mais para bíblicas do que jurídicas, Luiz e eu a valorizamos como instrumento de defesa e audaciosamente tomamos a palavra.

- Diz o Senhor – fala a Promotora – que não herdarão o Reino de Deus os efeminados, os sodomitas, os imorais. Está na primeira carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 06, versículo 10.

- Segundo Êxodo, capítulo 21, versículo 7 – Respondo – um pai pode vender sua filha como escrava. Nos dias de hoje, segundo a doutora, qual seria o preço justo? Segundo Levítico 15,19-24 um homem não pode tocar em mulher menstruada, mas minhas amigas se sentem ofendidas se não quero beijá-las nesse período. Ainda em Levítico está escrito que podemos ter escravos, desde que sejam estrangeiros. Um Pastor, conhecido meu, disse que não precisa ser estrangeiro. Basta ser do Nordeste ou do Norte de Minas. Afinal, segundo ele, são todos miseráveis e incultos.

- Ignorância é dizer isso... – Interage Luiz.

- Já um Padre, outro conhecido meu, discordou dizendo “Por que não também os do Norte ou do Sul, ou mesmo do Sudeste”? – Retomo a palavra. – Mas como diz a senhora, devemos seguir estritamente o que está escrito na Bíblia, será que não podiam escravizar os paraguaios, por exemplo? A guerra acontecida décadas atrás foi inútil. Já que, instigados pela Inglaterra, acabamos com a possibilidade de crescimento daquele país, porque não os trouxemos como escravos também? Teríamos matado dois coelhos com uma só cajadada e ainda ficaríamos com aquelas terras para nós. É óbvio que não penso assim, mas se me embasar na Bíblia poderia crer nisso.

- Blasfêmia! – Diz ignorando a colocação que demos. – Em Romanos, capítulo 01, versículos 26 e 27, está claro que não é natural homem se deitar com homem e nem mulher se deitar com mulher por se arderem de paixão.

- E segundo Êxodo 35, 02, é pecado trabalhar aos sábados. A senhora, doutora, faz questão de obedecer fielmente a Bíblia e matar os piões da Indústria que vão aos sábados para lá? Ou prefere que outro suje as mãos? – Respondo. – Um amigo meu acha que homossexualidade é abominação maior que trabalhar aos sábados, ou, como muitas Igrejas Cristãs mudaram e mudam a Bíblia segundo suas conveniências ou crenças, aos domingos. Não sei. Deveria ser tão horrível quanto. Afinal, segundo muitos, a Bíblia é para ser seguida a risca, sem interpretações adequadas à época, local e pessoa. De novo em Levítico, dessa vez em 21, 20, diz que quem tem defeitos na visão não pode se aproximar do altar de Deus. Mas o Padre e o Pastor de quem acabei de falar, e a senhora, que vi ontem entrando na igreja, usam óculos. Não entendo então como podem se aproximarem do altar de Deus sem cometerem, só por isso, grande pecado.

Luiz toma a palavra: Mas o pior não é isso. Fi...

- Como se atrevem a tentar me rebaixar. Não sou da laia dos senhores. Em Levítico, capítulo 20, versículo 13, o Senhor diz que homem que deita com outro homem como se fosse mulher é réu de morte por ser abominável. Que seu sangue amaldiçoado escorra pela terra.

- ... Mas o pior não é isso. – Continua Luiz. – Fiquei sabendo que a senhora, doutora, é praticante da Renovação Carismática Católica, Ministra da Palavra. É verdade? Eis o pecado dos pecados. A blasfêmia das blasfêmias. Permita-nos ler o que São Paulo disse. – Luiz se cala e Lúcio pega a parte com as Epístolas em seu Novo Testamento em braile, abre e lê: “A mulher, aprenda, em silêncio, com toda a sujeição. Não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem, mas esteja em silêncio”. – Luiz retoma a palavra: Querem confirmar? Está na primeira carta de São Paulo a Timóteo, capítulo 02, versículos 11 e 12. E a senhora, sendo apenas uma mulher, nada mais que uma mulher, está tentando ensinar a nós: HOMENS.

- Quer dizer, segundo a Bíblia toda mulher é indigna e incapacitada para falar em público, seja na Igreja, como Ministra da Palavra, ou seja como Promotora. Luiz e eu, porém, acreditamos que as mulheres têm sensibilidade, dignidade e capacidade mais do que suficientes para ensinar, para falar publicamente.

- Particularmente, eu e Lúcio, discordamos que mulheres não possam exercer tais profissões. – Volta Luiz a falar. – Pelo contrário, temos certeza que homens e mulheres são os instrumentos de Deus para fazer da Terra o Mundo Ideal. O que nos assusta são pessoas que querem usar a Bíblia para condenar o que lhe é diferente, mas a ignoram quando seu ensinamento acusa a elas mesmas. O que nos incomoda mesmo é darem dois pesos e duas medidas à Bíblia. Considerando-a importante e infalível quando se pode usá-la contra o outro, mas quando fala contra o que pensam ou fazem a ignoram. Sempre. Dois pesos e duas medidas. Não se adaptam nunca à Bíblia, mas a adaptam à própria necessidade. Não se deixando instruir por ela, mas fazendo dela instrumento de opressão e domínio.

- Como bem nos mostrou meus clientes – Interrompe Nena e aproveitando o gancho – e feito eles leio e gosto da Bíblia. A Verdade é absoluta e quem a inspirou foi Deus, mas quem a escreveu foram pessoas que colocaram no papel a Verdade conforme entenderam. E nem sempre como é. Assim como eu e a douta colega, que graças a Deus somos mulheres, sabemos que podemos propagar a Boa Nova, ensinar, defender ou acusar aos homens, mesmo que nos tenha sido proibido por uma sumidade Bíblica... Tanto Cristo quanto Paulo reconheceram que seu conteúdo não é para ser seguido a risca, mas com consciência que foi escrito para pessoas com outra visão. E que essa visão mudaria.

- Chega! – Ordena o Juiz que até então apenas acompanhava a discussão com um sorriso. – Aqui não é uma igreja. Atenham-se à jurisprudência.


Ofereço como presente de aniversário a Filipe Fernandes,

e aos meus professores, tutores e colegas da UFOP

no Curso de Educação em Direitos Humanos:

Marcos M. Siqueira, S. Silva, Leonardo T. Pinheiro, Dirley S. Vaz, Elizangela F Nascimento, Margareth Diniz, Isabel C.R. Ferreira, Juliany C. R. Ferreira, Stela Maris M.S. Araújo, Wanderson O. Lopes, Eiorli B. Nobre, Marcos E. Sousa, Mª do Carmo de Lima, Pollyane Ap. S. Alves, Ana Mª N. Amorim, Jesulina L.P.P. Miranda, Carolina Montolli, Andrea M. Carmona, Osvaldo O. Castro, Welingta C. Paula, Carlos E.S. Meireles, Marcia E. Nobre, Priscila T.K. Sodré, Janaina D.R. Nazario, Fernando T. David, João B. Pires, Mª das Gracas P. Sousa, Rejania C.F. Cavalcante, Margarete Miranda, Monica Rahme, Antonia Ap. R. Brandão, Viviane O.B. Silva, Nair D. Rodrigues.


Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas.

O cronto é minha flor para você

e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

O cronto é um trecho (modificado) de um romance que estou criando.

Convido a ler também

Lúcio, aqui no aRTISTA e aRTEIRO; e na coluna CRONISTA DE 5ª Foi Isso e Luiz na extinta revista cultural Nota Independente.

Um comentário:

jardel lopes disse...

Parabéns. Na verdade está passando da hora de se iniciar uma discussão séria sobre todas estas questões. Aliás, na mensagem são abordados várias faces de uma mesma moeda que sacanamente são manipulados de acordo com o interesse momentâneo. Tanto a questão da homoafetividade quanto a farsa de se interpretar a bíblia. Na verdade, a bíblia tem varios pontos de extrema importância, tanto é verdade que está atravessando os tempos. Agora, afirmar que está acima de tudo é imaginar que também temos que acreditar em Papai Noel e consumir, consumir e depois sumir. Prefiro pegar aquele ponto que alguém me falou que está na Bíblia: "amai ao próximo como a te mesmo ". E não "armai ao próximo como a te mesmo ".