domingo, 11 de dezembro de 2022

OS DESCENDENTES DE OUTROS GENES

"Meus ancestrais me trouxeram até aqui e minha descendência me levará adiante"¹.

O que fazer se não deixo descendência? Nunca tive, não tenho e nem terei.

Não quero deixar a ninguém a miséria humana; a miséria da condição humana. Já basta as que há.

O máximo a que me permito é amenizar a humanidade dos que já estão aqui.

É duro, não belo ser humano.

Espero que os que cuido não me culpem por continuarem aqui. Da mesma forma que não culpo meus ancestrais. Simplesmente seguiram seus instintos a anelos de bons frutos.

E eu? 

Ignoro meus instintos, não sexuais. Só os reprodutivos. E conservo o anelo de suavizar a humanidade dos meus descendentes de outros genes.

"El día se me echa encima con su sentencia: habrá que levantarse y afrontar el trabajo diario, los saludos matinales, las sonrisas torcidas"².

_ Bom dia, professor Benito. - Duas coisas me dão muito, muito medo: Sorriso e palavras gentis. Principalmente, mas não somente, de quem não me fez/faz bem.

- Bom dia, diretora.

_ Pra quem está sempre com uma bengala... - um risinho silencioso de deboche - vejo você sempre de cócoras...

Respondo ou não?

_ Se fosse porque acho elegante usaria uma de madeira, pois artesanal me agrada. Minhas ossatura e musculatura estão boas. E já lhe disse o motivo deste apoio. Se a senhora não ouviu...

A pedagoga que a acompanha intervém:

_ O professor tem labirintite. Assim tem baixo equilíbrio.

Toca o sinal para o início das aulas. - Com licença. - Levanto-me e vou pra sala de aula.

_ Professor! - Um estudante me diz: Nós queremos uma educação para ajudar a pensar e não que nós ensine a obedecer.

_ Nós quem?

_ A turma...

_ Não! No geral a maioria aqui não passa de aluno. Em toda esta escola há pouquíssimos estudantes. E sobre pensar o senhor não me viu batalhar o ano inteiro para conduzi-los à reflexão? Todo o ano letivo ouvi dos alunos "Macumba, Exu, bruxaria etc." como coisas más? E todo o ano letivo dizendo-lhes "meu direito termina quando começa o do outro", "ouçam para compreender, não para apenas responder". Ninguém teme Loki ou Hades. Por quê? Porque estes são europeus, brancos. Enquanto os orixas são dos povos negros do continente - continente, não um só país, mas muitos países com culturas e religiões diferentes -. Os senhores temem as bruxas que eram as sábias e intelectuais da época. As equivalentes de hoje a médicas, biólogas, químicas, conselheiras, praticamente juízas. Mas não têm medo das religiões que as prenderam, censuram, torturam e as mataram das formas mais sofridas que conseguiram imaginar.

_ O senhor vive falando mal do cristianismo...

_ Não critico o cristianismo. Respeito muitíssimo a Jesus Cristo. Eu digo é dos cristãos, pois seus comportamentos comprovam o quanto duvidam de Jesus; e dos que acreditam... o quanto odeiam a Cristo.

Fica um silêncio que Benito aproveita para olhar nos olhos dos presentes. Foram poucos segundos. A aula termina, o tempo passa e chega os últimos minutos da quinta aula.

_ Graças a Deus estou livre desse inferno.

Com a faca traspassada em seu coração:

_ O senhor me acha um demônio?...

_ Não, professor. É que...

_ No inferno só há demônios e diabos. O senhor crê que é isso que professores vêm fazer na escola? Infernizar aluno? Não é para compartilhar conhecimentos? Fazer pensar, refletir?

_ Não foi isso que quis falar.

_ Mas foi o que disse.

Segurando as lágrimas tolas que queriam sair:

_ Ah. Como quero fazer isso: ensinar a ver o que olham, escutar o que ouvem. A compreenderem o que sentem. Ah. Quantos professores querem praticar isso. Mas três coisas nos impedem: as religiões, a política e as famílias moldadas pelas religiões.


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Texto e fotos do autor: Rubem Leite.

¹ BOTELHO, Denise. Quadro negro de recordações. NEGRAS (In)CONFIDÊNCIAS. [Org. Benilda Brito e Valdecir Nascimento]. Belo Horizonte: Mazza Edições. 2013. P. 39.

² PAZ, Octavio. Trabajos del poeta ¿ÁGUILA O SOL? D.F. México: Tezontle, 2001. P. 24.

Escrito e trabalhado entre 05 e 11 de novembro de 2022.

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