segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

CAMISAS AZUIS


Escrita entre 19 e 24 de janeiro de 2011.

Rubem Leite.


Inspirado no trabalho do desenhista Rodrigo Lima, de SP, que ilustra o nosso cronto.

Mas no fim das contas, tudo é por minha conta e risco...


Ofereço como presente de aniversário aos meus queridos

Alexandre Farah, Nelson Bam Bam e meus

sobrinhos Thais Macedo e Raul Leite.


- Ei! Oi!

-

- É concê mesmo! É! Você que está aí, lendo-me!

-

- Vou contar uma estória. A minha história. Só para você se situar... Eu sou irmão do cronto anterior. O “Fase Sombria”. Mas sou só meio irmão. Ou será dois terços... Assim como ele não tenho mãe, mas tenho dois pais e não três feito o Fase. O Rodrigo que me deu uma imagem, um rosto e o Rubem que me dá voz e o que dizer. Mas vamos ao que tenho para lhe falar. Imagine a cena

Em um canto da área de serviço há uma cesta de roupas recém lavadas, atrás tem um tanque junto a uma janela basculante com vista para a cozinha. A maravilhosa cozinha mineira. Grande! O melhor lugar da casinha para receber quem a gente gosta. No outro canto da área há uma bola, um carrinho e entre eles duas bonecas. Uma menina, onze anos, sai da cozinha. Ela está com uma vela apagada, anda pelo quintal, volta, acende a vela, encaminha-se ate o tanque, prende em seu topo a vela e retorna para a cozinha depois de olhar para os brinquedos que não a deixam brincar. Pela mesma porta sai minuto depois um rapaz, adolescente, e pára entre a cesta e os brinquedos. Ele é só e como queria companhia, apoio, aceitação. Zêro, seu apelido, veste camisa azul, como as pendurada no varal, e senta na frente da boneca e põe ao seu lado o carrinho, à sua direita, e a bola, à sua esquerda. E ele olha para você. Mira bem fundo nos seus olhos. Pergunto se você vai ter coragem de manter o olhar. Terá?

Reminiscências

E vozes vêm da casa vizinha. A da esquerda.

- Dna. Tolina. Bom dia!

- Bom dia, seu Malício. O que você quer?

Daqui em diante a conversa se torna confusa devido à distância, aos muros e paredes, mas parece que o homem faz comentários desagradáveis sobre a conduta de Vagabinha, a filha da vizinha. Que a menina em vez de ir para a faculdade vai para a praça sair com homens. Depois da fofoca do seu Malício e da defesa apaixonada de Dna. Tolina ele se vai e não demora, chega a garota.

- Bom dia, mamãe. Dormiu bem?

- Como posso dormir, Vagabinha, se você sai pelas horonha e chega junto com o sol?

- Ora mamãezinha. Fui para a facu. Mas como pagar a mensalidade tá difícil, fui para a casa de uns amigos dá, digo, estudar.

Passa o dia, a filha dorme, a vizinha arruma a casa e sai para o emprego. De noite disfarçadamente segue a filha e a vê entrando num carro com três homens. Cacuras (para quem não sabe, cacura é pessoa mais velha). No dia seguinte, para a delícia do seu Malício, Dna. Tolina grita, bate e expulsa a filha de casa.

- Mããããe!

- Não me chame de mãe que não sou peixe para ter filha piranha. Vai embora e não volte mais. – Tranca a porta deixando a garota chorando agarrada à porta.

Em casa, seu Malício põe a Bíblia debaixo do sovaco, chama a mulher, ajoelham e ele proclama

- Aleluia, irmão, aleluia! Senhor, ó Senhor! Queremos agradecer, ó Senhor, porque essa casa, ó Senhor, é do Senhor. Abençoe essa casa, Senhor, porque só nós prestamos, ó Senhor. Todos os nossos vizinhos, ó Senhor, são pecadores. Só nós, ó Senhor, somos bons. Aleluia! Leve todos eles para o inferno, ó Senhor. Aleluia! Leve todos para o inferno e somente nós, mais ninguém, ó Senhor, leva para o Céu. Aleluia, aleluia que o diabo em vem, ó Senhor. Aleluia. Eparrê, meu pai. Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é conosco. Bendito sou eu entre as mulheres...

Depois critica sua esposa, Dna. Bobinha, por ainda não ter feito a comida. Sendo que ela não tem nada para fazer o dia inteiro, pois se tivesse não ficava vendo novela. Lavar roupa, passá-la, lavar o banheiro, varrer o quintal, varrer a casa, passar pano na casa, costurar só cansam e tomam tempo de mulher preguiçosa e desocupada.

- Bibinha, meu filhinho – diz a mãe – sai do banheiro para comermos.

- Já vou, mámi. Estou ocupaaado no banheeeiro.

- Esse menino não sai do banheiro. – diz Dna. Bobinha – Não sei o que é isso.

- Rerrê! – Seu Malício fala baixinho – Isso é que é filho macho. Orgulho do pai.

Depois do jantar Bibinha fala

- Pápi, mámi! Vou sair com umas amigasss.

- Vai filhão! Aposto que vai comer todas elas. Orgulho do papai.

Depois que o filho sai

- Tá na hora da novena na igreja. Mas hoje vou sozinho porque é o encontro de homens com Nossa Senhora dos Prazeres.

Deixa a mulher sonhando com o lote que estão comprando no Céu e vai para a igreja, digo, bordel e encontra Bibinha abraçado com dois homens.

- BIBINHA VOCÊ É BIBA. É BICHONA.

Arrasta aos safanões o filho pela rua afora.

Em casa, xinga a mulher por não saber educar o filho e o expulsa.

- Onde você o encontrou? – Pergunta a mulher.

- No bordel.

- Se você foi à igreja como o achou no bordel? – Fala entendendo tudo pela primeira vez na vida. O marido não sabendo se justificar tenta apelar.

- Cala a boca que aqui você não manda mais. – Diz Dna. Bobinha. – Você não é digno.

- Mulheeer...

- Se alguém vai sair daqui é você. Ele fica.

- Mulheeeeer!

- Se não estiver satisfeito, rua. Com você ou sem você Bibinha fica.

Discutem bom tempo, mas não vou repetir o bate-boca. Só dizer que seu Malício acaba abaixando a cabeça.

- Mámi! Acho que a senhuoora deveria aconselhar Dna. Toliiina a trazer Vagabiiinha de volta. Lembra quando a senhuoora adoeceu e ela cuidou da casa sem cobrar naaada?

- É! Ela é boa menina. – Uma pausa para pensar e – Vamos, filhinha! Era essa roupa que cê estava usando? – Pega o filho pelas mãos, leva-o para o quartinho de costura – Vem que mamãe vai fazer um vestidinho lindo para a filhinha dela. E depois vou conversar com a vizinha. Acho que... Acho que temos que dar as mãos... nos unir contra os preconceitos. Concorda, filha?

- Dar as mãos, mámi? Concooorrrdo! E se ela não quiser Vagabiiinha de volta, mámi?

- A garota passa a morar aqui e se seu pai não se comportar... Ele vai para a rua.

Fim das reminiscências

E Zêro em sua camisa azul começa a brincar com a bola. Levanta-a acima de sua cabeça e a solta. Bate no chão e volta para suas mãos. Levanta-a, solta e quica. De novo. De novo. De novo. A menina olha pela janela. O garoto joga a bola com força... e não volta para suas mãos. A menina sem ser vista nem ouvida pelo garoto volta para dentro da casa. Nasce um sorriso suave. O rapaz pega o carrinho e brinca. E brinca sem sair do lugar. O sorriso cresce. “Vrum. Vruuum. Vruuuuuuuum”! Seu rosto é só sorriso. Pára! Torce seu corpo para a direita pega uma camisa azul, venda seus olhos. Água escorre pelo seu rosto. Lavando-o! Pára! Apalpa ao seu redor e encontra a boneca. Nasce-lhe uma dúvida. A Cruel! Com qual brincar? O sorriso vai se esvaindo aos poucos. Tateando vai até o tanque e pega um batom que fica sempre ali. Vai de uma orelha a outra passando-o pela boca. Esfrega-o na boca. Tateando pega uma roupa. Azul. A menina sai da cozinha, pega o rapaz pela mão. Tira-lhe a venda. Sorri-lhe! Ele responde com outro sorriso. O maior e mais verdadeiro sorriso. E ambos, comigo, encaram a você, que lê. Vão para a vela no tanque, acendem e dão para você. Que fará?

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