quinta-feira, 4 de abril de 2013

DO PUDOR AO FLAGRANTE


Obax anafisa.


“A campainha continuava tocando, o mascarado não ia embora e eu nu, dentro da casa, lívido de medo, sem saber o que fazer. Me lembrei que na cozinha tinha um facão grande. Abri a porta brandindo o facão ameaçadoramente, mas era uma freira velha quem estava lá em pé, com aquela coisa preta que elas usam na cabeça”.
(FONSECA, 1989).

A tarde está nublada, abafada, relampejante. A janela está irrequieta. O tempo e a janela estão simplesmente refletindo Miranda. A cerveja acabou, a pipoca acabou, o cigarro acabou, o filme acabou. Só lhe resta dormir para não ver o tempo passar. Deita do jeito que está, sem a cueca suja que tirou para lavar e que ficou o dia inteiro lhe esperando na pia do banheiro. Fecha os olhos, ressona e a campainha toca. O homem ignora. Toca de novo. Ele vira para a direita. Toca mais uma vez. Abre os olhos. Toca. Levanta. Abre a porta. Uma velha freira arregala os olhos, vê o meio-mole-meio-duro de quem acabou de sair da cama, engasga, grita e sai correndo. Devido ao desânimo nem ri nem se incomoda. Vai à geladeira e continua vazia. Volta para a cama, fecha os olhos, ressona e a campainha toca. Ignora. Toca de novo. Ele vira para a esquerda. Toca mais uma vez. Abre os olhos. Toca. Levanta. Abre a porta. Marisa, a vizinha, arregala os olhos, vê o meio-mole-meio-duro, engasga, sorri e entra. O que vem a seguir dá para imaginar. O que vem depois eu conto. Ela dorme cansada, ardida, batida, sorrindo. Miranda se levanta, vai à área de serviço e volta com sua faca de prazer. Finalmente o ânimo e, junto, o ter o que fazer. E faz. A campainha toca. Ignora. Toca de novo. Levanta a cabeça. Toca outra vez. Vira o rosto em direção ao som. Toca mais uma vez. Lava as mãos. Toca. Atende a porta. De uma acusação de atentado ao pudor para flagrante de assassinato. Um ano depois o primeiro julgamento.
Aí eu acordo. O dia não passa, então deito e durmo.
A tarde está nublada, abafada, com poucas trovoadas. A janela bate, abre, bate. Ambas refletem seu estado de espírito. Nada há na geladeira, nos armários. Dorme para não ver o tempo passar. Deita do jeito que ficou o dia todo: sujo e nu. Fecha os olhos, ressona e a campainha toca. O homem ignora. Toca de novo. Ele vira para a direita. Toca mais uma vez. Abre os olhos. Toca. Levanta. Abre a porta. Dona Morte, de Maurício de Souza, arregala os olhos, vê o meio-mole-meio-duro de quem acabou de sair da cama, engasga, grita e sai correndo balançando a foice. Fecha a porta e vai à geladeira vazia. Então volta para a cama, fecha os olhos, ressona e a campainha toca. Ignora. Toca de novo. Ele vira para a esquerda. Toca mais uma vez. Abre os olhos. Toca. Levanta. Abre a porta. Marisa, a vizinha, arregala os olhos, vê o meio-mole-meio-duro, engasga, sorri e entra. O que vem depois você já sabe, inclusive sua morte. Enquanto ela dormia, pegou a faca, matou e destrinchou animadamente com sua faca de prazer. A campainha toca. Ignora. Toca de novo. Levanta a cabeça. Toca outra vez. Vira o rosto em direção ao som. Toca mais uma vez. Lava as mãos. Toca. Atende a porta. De uma acusação de atentado ao pudor para flagrante de assassinato. Dois anos depois outro julgamento.
Aí eu acordo. O dia não passa, então deito e durmo.
A tarde... A janela... Seu estado de espírito. Tudo acabou. Nada há. Dorme para não ver o tempo passar. A campainha toca. Com custo levanta, abre a porta. O negão de toga lhe lembra o Batman quase lhe fazendo sorrir. O Desembargador Joaquim Barbosa arregala os olhos, vê o meio-mole-meio-duro de quem acabou de sair da cama, engasga, grita e sai correndo com sua toga balançando ao vento. Volta para a cama. A campainha. Marisa arregala os olhos, vê o meio-mole-meio-duro, engasga, sorri, entra, goza, morre. A campainha toca. De uma acusação de atentado ao pudor para flagrante de assassinato. Tempos depois o derradeiro julgamento.
Aí eu acordo. O dia não passa, então deito e durmo.
A tarde... A janela... O estado de espírito...
Morte! Pudor! Flagrante!


Ofereço aos aniversariantes:
Antônio Pirralho, Roniara Domingues, Vera H.S. Rossi, Gledson Pagung, Magali Santos, Lúcio Braga, Rosane Dias, Stevan Olivar, Roberta Bragança e Marcone Alvarenga.

FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. 2ª edição – São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Conto Agruras de um jovem escritor.
¹ Mauricio de Souza é cartunista e empresário brasileiro criador de personagens feito Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali y muitos outros. Dona Morte, uma delas, faz parte de “Penadinho e sua Turma” que pode ser encontrada no periódico mensal Turma da Mônica. Mais informações: www.monica.com.br
Quando meses atrás coloquei no “feicebuque” o trechinho de Fonseca que introduz o nosso presente cronto, Robinson Ayres Pimenta, sugeriu-me uma história assim: “Hoje, ao invés da freira, o personagem poderia ter encontrado o Joaquim Barbosa de toga ‘modelito Batman’... Que tal? Fincaria o pé da ficção na mais humana e bruta realidade destes nossos tempos bicudos. Como diria o Ibrahim Sued, colunista social famosíssimo nas décadas de 50 e 60 do século passado: ‘O mar não está para peixe e cavalo não desce escada!’.”
Joaquim Benedito Barbosa Gomes é um advogado, professor, Jurista e magistrado brasileiro. É também membro do Supremo Tribunal Federal de Brasil.
Escrito entre os dias 25 de janeiro e 04 de abril de 2013.
Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você que me lê e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

Um comentário:

roniara disse...

agradeço pela consideraçao ,e meio mole meio duro kkkk,me lembrou alguem kkkkk,mas muito obrigado por me fazer ler algo diferente do que tenho lido ultimamente continue escrevendo e me mandando vou te acompanhar sempre pois admiro muito seu trabalho ,estudo trabalho pra caramba e variar a leitura é o melhor programa pra min ultimamente beijos