domingo, 21 de outubro de 2018

ZÉ ALGUÉM



Texto em português de Rubem Leite e Glaussim.
Tradução ao espanhol de Julian Cabral.

Em português:

Nublado o dia que Zé Ninguém olhou pela janela antes de sair da cama. Pela janela da cozinha olhava o céu enquanto fazia o café, lavava a pia, alimentava-se. Abriu a porta, o portão e pisou na rua. 

Era julho de 2018.
Na Praça Primeiro de Maio, não muito perto do monumento ao trabalhador, segurava Caio Fernando Abreu e, no banco próximo, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. Zé Ninguém pregava um poema seu:
Hitler era boçal nato
Aqui há o Boçalnaro
Que ao ouvir ‘debata!’
Grita “te mato”
Mas corre pro mato
Pedindo “não me bata”
Hitler era boçal nato
Derramava simploridades
Suas notícias, falsidades
Iguais às do ‘nosso’ Boçalnato
Retornou ao lar para voltar na semana seguinte com Machado de Assis, Castro Alves e Hilda Hilst.
Era uma vez um boissomínio. Em uma bela manhã ele entrou numa fila e quando um amigo seu o viu, gritou:
- Cuidado, boi! Sai dessa fila. Não está vendo a placa? É um matadouro.
- Cala a boca, petralha cumunista. Eu me graduei pelo watzape e me pós graduei no facebook na Fakenews University. E aprendi que “Friboi” significa “boi livre”.
Moral da história: a vaca foi pro brejo. E aonde a vaca vai o boi vai atrás...
Retornou ao lar para voltar nas próximas semanas.
Em princípio de outubro, antes da eleição, seus acompanhantes foram Cecília Meireles, Manoel de Barros e Mário Quintana. Ele pregou:
Com ódio da cigarra a formiga votou no inseticida e morreram todos, inclusive o grilo que não votou.
Nas três semanas seguintes sua voz perdia-se no deserto morto de Pripyat intracraniano.
O pior aconteceu. Pripyat somou-se a Chernobyl em um coletivo cerebral.
No país, em 02/01/19, os livros foram censurados. Teatro, tv, cinema só na linha Frota; enquanto na música, Nego do Borel. As escolas sem partido seguiam um só partido. E a economia ficou bem repartida; mais da metade para poucos e o restante para todos.
No desenrolar do ano Zé Ninguém perdeu tudo e o mesmo aconteceu com todos; sem casa, sem roupas, sem nada.
Mas até 31/12/19, o Zé Ninguém dormia no albergue e comia um pão com margarina e bebia um copo de café com leite, todas as manhãs sem custo.
Sem livros, sem arte, sem direitos, tornou-se usuário e dependente químico registrado, vivendo à margem.
No dia 02/01/2020, o Zé Ninguém não conseguiu dormir no albergue. Mudaram as regras. Se não trabalhasse pela cama e pelo pão com margarina, não teria acesso a lugar pra dormir. Havia uma placa na porta – “Atenção Srs. albergados: Favor pegar o carrinho de picolé na loja ao lado, vender o produto e comprar o seu pão e quitar sua dívida com o abrigo. Porta aberta até as 21h. Atenciosamente”.
No dia 03/01/2020, Zé Ninguém não entrou no abrigo. Achou no lixo algo valioso. Tomado pela usura o pegou. Deu azar. Passou o camburão e o levou lá pra não se sabe onde. Ele faria parte de um barranco bem no alto dos Cocais.
Um moço que via tudo acontecer – mais um avisado que se fez de desavisado... – sentia algo ruim, mas a proibida música do Chico Buarque reboava em sua memória: “Pai, afasta de mim esse cálice, cale-se...” E, temendo, calou-se. Foi assim que ninguém mais ouviu falar do Zé Ninguém.
Foi sem dar notícias.
Foi segurando o tesouro achado na página onde se lia:
É tempo de meio silêncio
De boca gelada e suspiro,
De palavra indireta, aviso na esquina.
Tempo de cinco sentidos num só.¹
Mas nós não somos o moço que tudo via calado. Somos escritores, chargistas, professores, malabaristas, tradutores, músicos, atores, dançantes, pintores. Contamos.


En español:

DON ALGUIEN

Nublado el día en que Don Nadie miró por la ventana antes de salir de la cama. Por la ventana de la cocina miraba el cielo mientras hacía el café, lavaba la pileta, se alimentaba. Abrió la puerta, el portón y pisó la calle. 

Era julio de 2018
En la plaza Primero de Mayo, no muy cerca del monumento al trabajador, sostenía Caio Fernando Abreu y, en el banco de al lado, Clarice Lispector y João Cabral de Melo Neto. Don Nadie recitaba un poema suyo:
Hitler era bozal nato
Aquí está Bozalnaro
Que al oír ‘¡debata!’
Grita “te mato”
Pero corre hacia los bosques
Pidiendo “no me pegues”
 Hitler era bozal nato
Derramaba pelotudeces
Sus noticias, falsedades
Iguales a las de ‘nuestro’ Bozalnato
Retornó a su hogar para volver la semana siguiente con Machado de Assis, Castro Alves e Hilda Hilst.
Érase una vez un bueysominion. En una bella mañana él entró en una fila y cuando un amigo suyo lo vió, gritó:
- ¡Cuidado, buey! Sal de esa fila. ¿No estás viendo el cartel? Es un matadero.
- Cállate la boca, pedazo de comunista. Yo me gradué por el wasap y me pos gradué en el Facebook en la Fakenews University. Y aprendí que “FreeBuey” significa ‘Buey libre’.
Moraleja: La vaca fue para el pantano. Y a donde la vaca va el buey va atrás…
Volvió al hogar para regresar en las próximas semanas.
A principio de octubre, antes de la elección, sus acompañantes fueron Cecília Meireles, Manoel de Barros y Mario Quintana. Él recitó:
Con odio de la cigarra la hormiga votó al insecticida y murieron todos, inclusive el grillo que no votó.
En las tres semanas siguientes su voz se perdía en el desierto muerto de Pripyat intracraneal.
Lo peor aconteció. Pripyat se sumó a Chernobyl en un colectivo cerebral.
En el país, en 02/01/19, los libros fueron censurados. Teatro, TV, Cine sólo en la línea Guido Suller; mientras en la música, Reguetón. Las escuelas sin partido seguían un solo partido. Y la economía quedó bien repartida; más de la mitad para pocos y lo restante para todos.
En el desenvolvimiento del año Don Nadie perdió todo y lo mismo sucedió con todos; sin casa, sin ropas, sin nada.
Pero hasta 31/12/19, Don Nadie dormía en el albergue y comía un pan con margarina y bebía un vasito de café con leche, todas las mañanas sin costo.
Sin libros, sin arte, sin derechos, se tornó químico-dependiente registrado, viviendo al margen.
En el día 02/01/2020, Don Nadie no consiguió dormir en el albergue. Cambiaron las reglas. Si no trabajaba por la cama y por el pan con margarina, no tendría acceso al lugar para dormir. Había un cartel en la puerta – “Atención Sres. Albergados: Por favor agarren el carrito de helados en la tienda de al lado, vendan el producto y compren su pan y pagar su deuda con el albergue. Puertas abiertas hasta las 21 hs. Atentamente”. –
El día 03/01/2020, Don Nadie no entró al albergue. Encontró en la basura algo valioso. Tomado por la usura lo agarró. Puro azar. Pasó la trulla y se lo llevó para no se sabe dónde. Él haría parte de un barranco bien alto de los Cocales.
Un muchacho que veía todo acontecer – un avisado más que se hizo el desavisado… – sentía algo feo, pero la prohibida música de Chico Buarque pululaba en su memoria: “Papi, aleja de mí ese cáliz, cállese…” Y, temblando, se calló. Fue así que nadie más oyó hablar de Don Nadie.
Fue sin dar noticias.
Fue sosteniendo el tesoro hallado en la página donde se leía:
Es tiempo de medio silencio
De boca helada y suspiro,
De palabra indirecta, aviso en la esquina.
Tiempo de cinco sentidos en uno solo.¹
Pero nosotros no somos el muchacho que todo lo veía callado. Somos escritores, viñetistas, profesores, malabaristas, traductores, músicos, actores, bailarines, pintores. Contamos.

Como presente de aniversário, Leite oferece a Luiz C. Santana; Cabral oferece a Juan García.

Rubem recomenda a leitura de:
“O macarthismo que perseguiu Charles Chaplin e o anticomunismo de hoje”, de Javier Villanueva:
“Insisto em Abrir seus Olhos para não Pagar por sua Burrice”, deste macróbio que vos fala:

¹ ANDRADE, Carlos Drummond de. Nosso Tempo. A Rosa do Povo. 21 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. Parte IV. Disponível https://jornalggn.com.br/sites/default/files/documentos/a_rosa_do_povo_-_drummond_0.pdf Acesso 18 Out 2018. Tradução livre ao espanhol por Cabral.

Biografia dos autores e do tradutor:
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve e publica neste seu blog literário aRTISTA aRTEIRO todo domingo e colabora no Ad Substantiam às quintas-feiras.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. E em breve também professor de História. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
 Glaussim é mineiro de BH. Atualmente reside em Santana do Paraíso. Bacharel em Administração e técnico em Segurança do Trabalho. Escritor marginal urbano. Publica seus textos literários em protestos em seu perfil no Recanto das Letras.
Julian Cabral é natural de Buenos Aires (Argentina) e onde estudou inglês na Escola Superior nº 6 Vicente López y Planes; artista de rua especializado em malabares (argolas, devilstick e outros) e autodidata.
Imagens:
Portão Aberto – fotos de Leite para este cronto – 2018.
Rubem na Figueira – Foto de Faire – 2018;
Carlos Glauss – Foto de Glauss – 2018;
Julian Cabral – Foto de Leite – 2018.

Escrito e trabalhado entre 15 e 21 de outubro de 2018.

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