domingo, 21 de julho de 2019

LER OU NÃO LER, EIS A QUESTÃO



Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não.
Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo.
Temos um problema alimentar no Brasil. Temos, não é culpa minha, vem de trás. O que tira o homem e a mulher da miséria é o conhecimento.
Queremos uma garotada sem interesse pela política. Estudantes são idiotas úteis.
Jair M. Bolsonaro


A noite de segunda-feira estava fria na feira livre no estacionamento do Ipatingão. E Benito, Gabriel Miguel, Vinícius Siman e Girvany de Morais bebiam cerveja enquanto tomavam canjiquinha e feijão amigo.
- Olha a lua crescente. Que bonita.
- Até hoje não sei distinguir a crescente da minguante.
- É bem simples. O macete é a forma da lua. Quando ela parece um C é crescente... C de crescente. E o que mingua é o que diminui, certo? Quando a lua parece um D é porque está diminuindo, minguando-se.
- Acesso a muitas informações leva a fatos e também a boatos. – Diz Girvany. – Vinícius, essa informação é fato ou boato?
- Fato. Olhe em uma boa enciclopédia; onde de fato há mais fatos. Pode olhar até no google; apesar dos boatos serem seus mais comuns atos.
- E uma biblioteca deve, ou deveria, aprimorar constantemente o seu acervo para confirmar, ampliar ou corrigir as pesquisas de seus usuários. – Fala Gabriel. – Pela internete é mais rápido encontrar respostas. Mas como qualquer um pode dizer lá o que quiser... Fazendo-se passar por especialistas... Hoje, as quase inexistentes enciclopédias são mais seguras.
- Mais seguras, mas é uma pena que defasadas.
- É interessante como o discurso muda de sentido dependendo de quem o faz. – Girvany muda de assunto. – Tereza Cristina, a Ministra da Agricultura, disse que brasileiro passa fome porque quer, pois basta levantar a mão e pegar quantas mangas quiser. Anos atrás algo semelhante foi dito na Seicho-No-Ie. Contudo, ao contrário da Sinistra, digo, da Ministra, a Seicho-No-Ie falava de gratidão aos muitos recursos naturais do país. Enquanto a “Musa do Veneno” justificava a fome crescente no país.
- E o Presidente diz que a fome no Brasil é mentira de um discurso populista.
Falou Vinícius e Gabriel continua:
- Segundo a agência da ONU para agricultura e segurança alimentar, o Brasil é um dos países com menor índice de fome no planeta. E de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a fome no país ainda não foi erradicada. Pode-se entender que temos um dos menores índices no mundo e na América do Sul é equiparado apenas com Uruguai. Estamos no mesmo nível de Canadá, Austrália, Suécia e Finlândia, países altamente desenvolvidos.
- Mas a pobreza no Brasil está crescendo deste o Golpe de 2016. – Vinícius retoma a fala.
- Mas o que define a fome? – Benito intervém – Boçalnato parece entender que fome é só subnutrição total. Contudo, em 2013 o IBGE constatou que 3,6% do povo tem grave insegurança alimentar. E esse índice equivale a muito mais de sete milhões de pessoas a passar por privação de alimentos, podendo chegar à sua expressão mais grave, a fome propriamente dita. Mas se nem todos chegam a esse ponto ainda assim a grande maioria desse número tem privação de alimentos.
Um breve silêncio para se esquentarem com o caldo enquanto pensam na fome que eles não sofrem. Não sofrem por si, mas sofrem pelos outros.

Enquanto isso, em uma mesa próxima, à esquerda:
- Na parte do bairro onde Marcos mora tem uma só padaria...
- Sim, a Maná. – Fala Marcos. – E o que tem ela, Jessé?
- Perto de onde ela fica tinha uma casa de rações que se chamava Maná.
- Não sabia.
- Quando foram abrir a padaria descobriram isso. – Fala em tom de suspense.
- E?
- Os donos da padaria, como verdadeiros cristãos, passaram a orar pelo dono da casa de rações. – Continua em tom de suspense. – Isso porque tinha o nome que queriam por no estabelecimento deles...
- E?
- A mulher do dono da casa de rações adoeceu ao mesmo tempo em que a loja parou de dar lucro. Aí tiveram que fechar... E a padaria pode abrir sem nada com o mesmo nome...
- Você está dizendo que a culpa é dos donos da padaria?
- Não estou afirmando nada, só pensando.

Voltemos aos nossos protagonistas:
- Como é que vocês leem poemas? – Benito fala pela segunda vez.
- A cada poema – diz Vinícius – leio ao menos duas vezes. Uma em voz baixa e depois em voz alta.
- Uai! Por quê?
- Assim o faço, Benito, para na primeira leitura, em voz baixa, compreender o pensamento do poeta. E a segunda, em voz alta, para que meus ouvidos percebam a cadência do poema.
- Para que isso? – A essa pergunta de Benito Girvany responde:
- Bem. Nossa época está tão a mercê do relógio; sempre com pressa que tudo tem que ser rápido, pra já. Assim a maioria das pessoas, eu inclusive, por exigência social nos habituamos a compreender apenas metade do que lemos em voz alta. Por isso a primeira leitura é em voz baixa; para alcançarmos nuances mais que medianos. E a segunda leitura, em voz alta, para deliciarmo-nos com a cadência e com a harmonia do poema ao mesmo tempo em que captamos ainda mais o sentido que antes era parcial.
- Então você declama para si mesmo?
- Não. Meus ouvidos estão apenas ajudando-me a compreender o que nossa época e sociedade dificultaram. Não sei se com vocês é assim, mas comigo é.
- Mas você segue alguma metodologia?
- Eu tenho uma que aprendi ao ler o livro “A Arte de Ler”. – Gabriel responde essa pergunta – Para ler bem e igualmente compreender não se pode ignorar a pontuação. A leitura em voz baixa nos ajuda a antever o conteúdo do poema, o que o autor está dizendo. E a segunda leitura, aquela em voz alta, muito mais que a leitura em voz baixa, permite a gente ver e seguir os pontos, as vírgulas, os pontos e vírgulas, as exclamações, as interrogações, as reticências.
- Então a primeira leitura é para compreender o conteúdo do poema e a segunda para reforçar essa compreensão ao mesmo tempo em que te ajuda a sentir a cadência e a harmonia do poema. É isso?
- Sim, mas lembre-se que seguir a pontuação é essencial.
- E se o autor não pontuar?
- Se ele não pontuou é porque te deu ao máximo o direito de ler e compreender conforme você se sinta mais confortável.
- Mas a pontuação não é apenas uma questão gramatical?
- Não, não é só uma questão gramatical. – Vinícius responde. – Apesar de a gramática ser importante para melhor entendermos o outro ao mesmo tempo em que nos fazemos entender; não é esse o objetivo de seguir a pontuação.
- Qual é então?
- Respeitar a pontuação é tão importante para a cadência quanto para o sentido. Por exemplo, vou dizer uma mesma frase, mas com pontuações diferentes. “Você tem dinheiro? Eu não.”; “Você tem dinheiro! Eu não.”; “Você tem dinheiro... Eu não.”. Com certeza você percebeu que, por mudar a pontuação, nessa mesma frase foram ditos três coisas diferentes, tanto na cadência quanto no significado.

Em uma mesa próxima outro grupo discutia o que lhes eram essenciais.
- Vocês se lembram de quando a gente pensava que as pessoas de trinta anos eram adultas e que tinham a vida resolvida?
À mesa todos riram.
- E quando a gente punha um k7 para gravar músicas na rádio morrendo de medo do locutor falar no meio da música?
Mais risos.
- E minha tia que fica escandalizada quando ouve falar de sexo. Um dia perguntei: meus nove primos foram feito com farinha, açúcar e fermento? Quase apanhei dela.
E rizadas.

Voltemos aos nossos amados protagonistas:
- Na troca de Ministros da Educação, infelizmente não foi apenas trocado seis por meia dúzia. – Diz Gabriel. – Segundo o cientista político Daniel Cara essa troca afastou um pouco o MEC do Exército, mas não melhorou. Ao contrário, piorou. Pois o outro visava militarizar o Ensino...
- O que não é bom.
- Sim, bem ruim. Mas este, o Sinistro Sem Educação, Abraham Weintraub, pretende ainda mais utilizar a “pedagogia de Olavo de Carvalho” e, pior, retirar toda obrigatoriedade dos Governos em garantir a educação gratuita e de qualidade. Para a Educação e Saúde os Estados não precisarão mais reservar um quarto de seu orçamento nem os municípios terão que repassar quinze por cento de seu orçamento.
- Boçalnato, no discurso de posse do novo Ministro, afirmou que o objetivo educacional será desestimular nos estudantes o interesse por política e incentivá-los a contentarem só com conhecimentos técnicos. – Fala Girvany. – E o meio disso acontecer é incapacitando os estudantes. Dizendo melhor, quando chegarem à fase adulta, preparados para o mercado de trabalho sequer consigam interpretar textos, desconheçam as regras de três simples¹ e não consigam responder as questões básicas da ciência.
- Vi isso. – Vinícius completa e abre uma revista que estava em suas mãos e lê: As palavras do EleNão na posse do “Véintráubi” foram “Queremos uma garotada que não esteja ocupando os últimos lugares no PISA. Queremos que não mais de setenta por cento dessa garotada não saiba fazer uma regra de três simples, não saiba interpretar textos, não saiba perguntas básicas de ciências. Nós queremos uma garotada que comece a não se interessar por política, como é atualmente nas escolas, mas comece realmente a aprender coisas que possam levar a quem sabe ao Espaço no futuro”. O que entendi foi o mesmo que você.
- O que é PISA?
- Programa Internacional de Avaliação de Estudantes que acontece de três em três anos.
Gabriel retoma o assunto:
- Na última, em 2016, o Brasil teve queda. Ficando em sexagésimo lugar em Matemática; sexagésimo terceiro em Ciências; e quinquagésimo nono lugar em Leitura. O que é contraditória a fala dele. Querer que o Brasil esteja em melhor colocação justamente impendido os estudantes de se desenvolverem em Matemática, Ciência e Linguagem.
Girvany compartilha um micro conto seu: “ANENCÉFALOS. Arranquem nossos neurônios, já não precisamos pensar, seremos autômatos, robôs, seremos a massa desprovida de cérebro, seremos cobaias de um experimento macabro, a urdir a nossa total insignificância...”.



Ofereço como presente aos aniversariantes:
Beto (Gilberto) M. Weber e Rodrigues Rosemberg.

Recomendo a leitura de:
“Fausto”, de Goethe.
Pela editora Martin Claret pode-se encontrar a tradução integral do original.
“Socos e Alívios”, de Girvany de Morais. Pode conseguir com o autor através de:
“Rumo à vitória”, de António MR Martins:

MILANESI, Luís. Bibliotecas para quê?. O Que É Biblioteca. São Paulo: Brasiliense, 1983. Coleção Primeiros Passos.
CORRÊA, Liliane. Ministra da Agricultura diz que “Brasileiro não passa muita fome porque tem muita manga”. Disponível https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/04/09/interna_politica,1045183/ministra-agricultura-brasileiro-nao-passa-fome-porque-tem-manga.shtml?fbclid=IwAR1GBB-Ex8xHr_XHq1J0RhWrhYX7vP8ut3GzYN-WMWrpQywNxfIHhHQWmZQ . Acesso 10 Abr 2019.
C.JIMÉNEZ. Bolsonaro: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira, é um discurso populista”. Disponível https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/19/politica/1563547685_513257.html . Acesso 21 Jul 2019.
FELLET, João. Os dados que contradizem afirmação de Bolsonaro de que não há fome no Brasil. Disponível https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/07/19/os-dados-que-contradizem-afirmacao-de-bolsonaro-de-que-nao-ha-fome-no-brasi.htm . Acesso 21 Jul 2019.
SALOMÃO, Lucas; MAZUI, Guilherme. ‘Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira’, diz Bolsonaro. Disponível https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/19/falar-que-se-passa-fome-no-brasil-e-uma-grande-mentira-diz-bolsonaro.ghtml . Acesso 21 Jul 2019.
FAGUET, Émile. A Arte de Ler. [Adriana Lisboa (trad.)]. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009. P. 62.

¹ A regra de três simples, na matemática, é uma forma de descobrir um valor a partir de outros três, divididos em pares relacionados cujos valores têm mesma grandeza e unidade.
Dizendo de outra maneira:
Regra de três simples é um processo prático para resolver problemas que envolvam quatro valores dos quais conhecemos três deles. Devemos, portanto, determinar um valor a partir dos três já conhecidos.
Passos utilizados numa regra de três simples:
1º) Construir uma tabela, agrupando as grandezas da mesma espécie em colunas e mantendo na mesma linha as grandezas de espécies diferentes em correspondência.
2º) Identificar se as grandezas são diretamente ou inversamente proporcionais.
3º) Montar a proporção e resolver a equação.
Exemplo:
1) Com uma área  de absorção de raios solares de 1,2m2, uma lancha com motor movido a energia solar consegue produzir 400 watts por hora de energia. Aumentando-se essa área para 1,5m2, qual será a energia produzida?
Solução: montando a tabela:
Área (m²) ó Energia (Wh)
      1,2                400
      1,5                  X
Identificação do tipo de relação:
 
Inicialmente colocamos uma seta para baixo na coluna que contém o x (2ª coluna). Observe que, aumentando a área de absorção, a energia solar aumenta. Como as palavras correspondem (aumentando - aumenta), podemos afirmar que as grandezas são diretamente proporcionais.
Assim sendo, colocamos uma outra seta no mesmo sentido (para baixo) na 1ª coluna. Montando a proporção e resolvendo a equação temos:
 
Logo, a energia produzida será de 500 watts por hora.
Além dessa, que é de grandezas diretamente proporcionais, há também as regras de três com grandezas inversamente proporcionais. Poderá ver mais sobre isso no endereço abaixo:
 (SÓ MATEMÁTICA. Regra de três simples. Disponível https://www.somatematica.com.br/fundam/regra3s.php . Acesso 28 Jun 2019).

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.
É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.
É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.
Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”.
Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens:
Foto do autor – Vinícius Siman.

Escrito na tarde de 06 de maio de 2018 e trabalhado entre 20 de junho e 21 de julho de 2019.

2 comentários:

Socos e Alívios disse...

Gostei muito, claro.

Unknown disse...

Nada mais precisa ser dito. Excelente!