domingo, 17 de novembro de 2019

EU MORRI. ESTOU FALANDO DE MEU TÚMULO¹



O padé oloonón, Exu e mo juba Ójisé.²


No labirinto das memórias o tempo não conjuga com os fatos. O segundo ano de morte de uma de minhas tias, aquela com quem vivi, passou e não fui ao cemitério. O aniversário de minha falecida avó, mãe de minha mãe e dessa minha tia, passou e não fui ao cemitério.
Estive a pensar:

A casa
– de quem? –
A casa necessita
Reforma no telhado.
Infelizmente ninguém dirá
“Como o gato não subiu no telhado”...
Que falta fará?
Hão de lacrimejar?
Se chorarem será
Pelo que ainda não fez
Não pelo ser.

Em uma manhã após aquela semana meu tio disse que, breve, viria alguém avaliar o apartamento. Um dos donos – ou ele, ou a tia ainda viva, ou os filhos dos falecidos, ou uma certa prima – quer vender o apartamento.
- Coisa que nunca conseguimos antes, mas quem sabe agora... Sua mãe está com alzaime. E nem ela nem a falecida moram mais aí.

O silêncio é uma nuvem no céu.

Vida após a morte?
Sim, o dinheiro fala mais alto que a solidariedade além de nada daqui ir para o Todo.
Não, a solidariedade é muda além de nada daqui ir para o Nada.
Lutar?

Naquela mesma tarde uma de minhas primas me falou:
- Estou pensando muito no Henrique. Tem quantos anos que ele morreu? Eu gostava muito dele e coloquei o nome dele numa missa na Catedral.
- Henrique faleceu em dezoito de agosto de dois mil e um.
- Pouco mais de um mês para o aniversário dele...
Enquanto continua a falar penso nas unhas compridas e pontiagudas dos dedos das mãos de meu irmão. Nos buraquinhos fechados, mas nunca cicatrizados em seu pulso esquerdo. Ferimentos em um pedaço de pele escura e enrugada na pele clara do braço de meu irmão ainda jovem apesar de mais velho que eu.
Seus olhos abertos observavam quem os observava. Todos tentaram fechar seus olhos incômodos. Só eu consegui.
Ao amanhecer o enterro não acontecera. O legista, não sei o porquê, quis refazer os exames. Talvez por ser ele tão jovem e suicida.
Sobre a mesa o corpo completamente nu de meu irmão que, mesmo morto, tinha o pênis perfeito.
Menezes, o legista, e o estudante Matheus, seu assistente, reabriram seu peito em um corte comprido iniciado acima do umbigo e cruzando na parte inferior do esterno duas incisões que iam até a articulação do ombro; um grande Y.
O assistente pareceu-me sorrir ao olhar para a serra, para os braços e pernas do cadáver; pareceu-me lamber os beiços ao cortar com a serra médica a caixa torácica.
No pouco sangue não havia substâncias alucinógenas, o estômago quase vazio. Nada justificava as marcas de corda no pescoço. Por que ainda continua lendo? Só eu sabia e agora você...
Com o olhar triste pela vontade não toda satisfeita, o estudante Matheus fechou o corpo e o legista Menezes liberou para o enterro.

Duas noites após o sepultamento o coração morto bateu uma vez e parou. Minutos depois bateu uma segunda vez. Mais um minuto e duas batidas. Outra pausa até bater lenta, mas continuada.
Suas unhas furaram o caixão, cavaram a terra ate seus olhos verem a lua e seus pulmões respirarem o ar desnecessário.
Fora do buraco observou a cova até esta fechar-se. Deu um passo e parou. Contemplou onde saíra. Sorriu; como se presenteasse ao espalhar a grama numa simulação de vida germinada. Sendo que o que fizera não passara de espalhar a grama trazida pelo olhar até cobrir o lugar que deveria ser o de seu descanso.
Sei disso porque uma semana depois fiz quase o mesmo.
Antes de eu escrever esta história Henrique veio ver-me.
Duas da manhã ele me chamou do telhado da casa ao lado. – Este que você vê, mas no escuro:

Confuso pelo sono e pelo que acreditava ser impossível, saí do quarto e abri a porta da casa. Parecendo flutuar, saiu do telhado e chegou à varandícula. Beijou-me sem entrar em casa. Meu pau ficou duro, mesmo sendo por meu irmão. Gozei. Voltei para cama. Morri.
Fora os hóspedes, em casa ainda há Faire, Ramon, Juli, Janio. A quem presentearei com meu beijo? Um beijo que não reviverá... Não sei. Mas a venda do apartamento não mais será um problema.

Ao contrário dos presidentes do Brasil, Chile, Equador e Bolívia – propagantes da morte viva – o estudante Matheus será um excelente floreador da vida morta. A delícia da morte é real. Quem pensa diferente, que viva longos anos...


¹ Clarice Lispector e a Depressão. Trecho da última entrevista com Clarice Lispector em 1977, concedida a TV Cultura. https://www.youtube.com/watch?v=NkPZkEjGncc&list=LLIH2YzhXzK4qmn97DyBrAbA&index=27&t=0s
² Vamos encontrar o Senhor dos Caminhos, Exu. Meus respeitos àquele que é o mensageiro.

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.
É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.
É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.
Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”.
Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagem do autor: Telhado pela janela.

Manuscrito nos dias 07 a 10 de novembro de 2019. Trabalhado entre os dias 16 e 17 do mesmo mês e ano.

3 comentários:

Menezes disse...

A grandeza de seus textos não cabe na pequeneza dos poucos minutos que ganho enquanto os leio.
Absolutamente genial.
Abraços.

cbhenrique disse...

Muito bom mesmo!!!!

paraneura disse...

Muito gostosa a leitura! Convido a ler minhas entrelinhas!

Prazer gratuito ou dor...... não sei ainda rs

https://paraneura.blogspot.com/