Manhã de domingo. Abro a porta e a janela.
Admiro o céu num belo tom cinza, antes dele tem uma mata a cobrir um morro. Na frente um amontoado de casas, mais perto de mim a pequena mata, na minha frente barrancos e escombros produzidos através das chuvas de janeiro de 2023.
Pelo buraco no meu escombro vejo que as chuvas não são culpadas. O desastre não veio pelas chuvas, mas através delas. Não por elas.
A natureza nunca é culpada. Não é boa nem má. Ela é só... forças agindo, sempre a modificar-se. Qualquer mal provocado por meio da natureza é a realização das pessoas de bem.
Depois de colocar um pouco de leite num café bem forte e amargo o saboreio lendo uma ou duas páginas de alguns livros.
A manhã está bonita. Escolho alguns companheiros para irem comigo à pracinha com maquinários para exercícios. Na avenida Pinheiros, próximo a rotatória que separa Limoeiro de Recanto Verde. Sento na grama e retorno a conversar com minhas companhias¹: Limite Branco, Outra Educação é Possível, Rumores da Cidade e Dracul.
Dois de meus estudantes me veem e vêm até mim. Caio e André.
Caio é magro, pele clara café com leite, cabelos pretos cacheados, olhos brilhantes, de voz baixa, mas agradável e audível.
André é também magro, os braços mais escuros pelo sol do que o resto do corpo. Seus dentes naturalmente alinhados dão ao rapaz agradáveis sorrisos.
São bonitos, cada qual com suas características.
Depois de um tempo André muda o assunto para conversa séria. A política municipal. A próxima eleição será a sua primeira vez.
_ "Ter tirado meu título de eleitor me fez começar a pensar sobre meu poder de votar naquele que representa melhor o que eu acredito".
_ O que o senhor pensa disso, professor?
Penso um pouco sobre o que disse André e respondo a Caio:
_ Existe esse poder? O que acredito é real? O eleito fará o que deve, pensando primeiro no bem de toda população? Votar em quem se crer é poder?
Óbvio que me olham sem compreender. Por que fiz mais perguntas no lugar de simples responder?
_ Saíram dos bairros Limoeiro e Recanto Verde e foram aos bairros mais importantes de Timóteo? - Fazem que sim com a cabeça. - Aqueles bairros igualmente padeceram com as chuvas. Repararam? - Outra vez respondem com o movimento da cabeça. - Mas para problemas iguais reações desiguais.
Talvez um minuto a pensarmos; Caio comenta e André completa:
_ Para o lado de lá máquinas e operários. Mas neste lado...
_ Apareceu e desapareceu a Defesa Civil. E mais nada.
_ Noam Chomsky, já falei dele na turma. Chomsky diz no livro "Quem Manda no Mundo?" que mesmo nos países que se denominam democráticos, e até acreditam nisso... - não passa de ilusão a crença "o poder emana do povo".
_ Mas o senhor é professor. Deve nos ensinar o que pensar.
Um fala, o outro assente e eu continuo o raciocínio:
_ Lancei perguntas pra você e pro Caio analisarem, pesquisarem, filosofarem. Não dei respostas, André. Porque o importante é cada qual pensar por si. Não para pensarem como eu. Não para pensarem o que mandam pensar nas religiões, nas escolas, na sociedade. Mas para vocês olharem ao redor, questionar o que lhe dizem, lerem ainda mais do que leem, discutirem com argumentos e, que Deus-Olorum-Alá atenda meu desejo, que voces ajam com cérebro, coração e coragem onde viverem. E nunca parem de repensarem e agirem pro e no coletivo porque é lá, no coletivo, que estamos todos. Querendo ou não...
Já cansado de gente, mesmo daqueles que gosto, pego meus livros e me despeço.
_ Professor, o senhor pode me emprestar o livro Limite Branco? Gostei do autor e eu termos o mesmo nome.
_ Já eu me interessei pelo Dracul. Parece ser algo de terror, de Drácula.
_ Não, não emprestarei, mas na próxima segunda-feira, sem ser amanhã, darei um exemplar de presente para vocês.
_ Legal! - Os dois dizem contentes, e eu sorrio.
Atravesso a rua e observo os jovens caminhando, falando ou talvez conversando. André e Caio ainda não perceberam, mas se querem e quando souberem... Sei o que suas famílias farão.
Os pais de Caio dirão: "coisas do demônio" e o chafurdará na igreja. O André será levado a psiquiatras ou "clínicas de recuperação".
Mais alguns anos depois poderão ser o que são; ou então vão se esconder e quando não aguentarem mais fingir hão de apodrecer-se e em seguida voltarão a atuar como os personagens obrigados a interpretar.
Cansado, retorno ao meu escombro. Revejo no celular as fotos dos amanheceres da semana que ontem terminou e me fixo em uma.
No livro Dracul, de um parente colateral de Bram Stoker, a menina Matilda repete o que aprendera na Igreja: como e o porquê deve-se escolher manter o sofrer no lugar de morrer.
Encho a metade de um cálice de vinho para beber ao fazer o almoço. Enquanto cozinho o arroz bem condimentado chamo por watzap o meu filho na Argentina. Sem atendimento chamo a mãe do garotão. Após umas falas educadamente insossas pergunto o que realmente quero saber.
_ Ele não está aqui. Está viajando e não quer conversar comigo nem com os irmãos e principalmente com você. Un padre que conoció por un año. Solamente dos veces de seis meses.
_ Não me culpe. Você só me disse que eu era pai quatro anos atrás. E eu quis muito me aproximar.
_ El pibe quiere silencio y quedarse solo por largo rato. Estoy ansiosa. Mas ele quer apenas silêncio e solidão.
Um pouco mais de conversa amena e nos despedimos. E falo para os cachorros e gatos:
_ Espero que onde meu filho esteja seja um lugar para gostar da misantropia e não um lugar de amargura.
_ Mas você não está num lugar amargo? Escombros!
Ouço o comentário de quem me lê e respondo:
_ Não. Dos escombros vou reerguendo um novo cantinho de sossego e beleza.
A comida está pronta.
_ Com licença, pessoas. Mas agora vou comer e voltar a amada soledade. Até a próxima.
Fecho a porta e pela janela me encanto com o jardim enquanto como.
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Rubem Leite: Cronto e fotos.
¹ Livros citados e alguns participam do cronto:
ABREU, Caio Fernando de. Limite Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
ROCHA, Lucas. Rumores da Cidade. Rio de Janeiro: Globo Alt, 2022. P. 26 e 27, 34 e 35.
STOKER, Drake. Dracul: a origem de um monstro. [Trad. Marcia Blasques]. São Paulo: Planeta, 2018. P. 20.
TOLENTINO, Luana. Outra Educação é Possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula. Belo Horizonte: Mazza, 2018.
Escrito entre 23 e 26 de fevereiro de 2023.
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