segunda-feira, 3 de março de 2014

BUROCRATAS

Obax anafisa.


- Bom dia, meu pé de jaca em flor em um intervalo entre uma chuva e outra numa manhã pós Natal!
- Ai, que besta!
- Rerrê. Não gostou da poesia?
- Para quê? Está feio!
- Que pena que não gostou.
- Não mesmo. Detestei.
- Que pena. Retiro o que disse.
- Relaxa. Mas me faz o favor de retirar mesmo. Gosto de coisas mais criativas, coisas de pessoas adultas. Não essas coisinhas bobas.
- Que pena.
- Só gosto de coisas inteligentes e adultas.
- Bem... Como não sou nenhum nem outro... Pego um livro para ler. Raul da Ferrugem Azul, por exemplo. Com licença.
Em uma praça coalhada do pó preto da fábrica eu me sento em uma das pedras à direita do Monumento à Bíblia, diante da fonte seca, à esquerda do recente monumento ao trabalhador morto no Massacre de Ipatinga e bem debaixo das frondosas árvores ainda sem flor, leio.

– Azul – disse ele. – Raul da ferrugem azul.
Quer dizer que era assim, então, pensava ele. Tem gente que nem vê a sua. Ele via. Pelo menos a dele, lá isso via, toda azul. E com essa ele ia acabar, com ou sem ajuda de Preto Velho.
Com ajuda, claro. Sabia que tinha sido ajudado. Por Tita, por Estela, pelo Preto Velho. Agora só dependia dele mesmo – era isso que todos estavam lhe dizendo. Que mesmo com toda ajuda, cada um é que pode acabar com sua ferrugem. Cada um é que pode saber como ela é, de que cor, em que lugar.

Na praça, nos bares e em casa passei o sábado pensando na cor de minha ferrugem. Até me recordar que o óleo contra ferrugem é o amor. Frescura isso, não? Que seja frescura então. Mas quem? O mundo? Alguém? Eu?
- Benito, meu filho. Compre pão para nós.
Então deixo a filosofia em cima da cama, olho pela janela, revejo meus cactos, vejo o céu e vou com livros, cactos, céu e cabeça aberta às novas possibilidades.
Na padaria:
- Olha a situação... – Mostra um papel com algumas garatujas. – É um rapaz que queria que eu o empregasse. O sobrenome é Neves e a escrita foi Mevis. Mora na Avenida Londrina e a escrita: Avenidabom Dima. Quando perguntei a idade o rapaz ficou em dúvida. Então lhe perguntei a data de nascimento e ele não soube. Não sabe quando nasceu. Todas as perguntas que fiz, tive que refazer duas, três vezes porque ele não conseguia entender. Não conhece a diferença de “onde” para “quem”. Percebi isso quando indaguei com quem mora e ele respondeu “Em minha casa”.
- Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
- ?
- Parece com a obra. Fabiano não conseguia se articular tal qual o rapaz. E por quê?
- Não sei. Por quê?
- O garoto em questão. Se ele sequer sabe quando é seu aniversário é porque ninguém o comemora, nem que seja com um “Parabéns”. E porque a mãe não se alegra com\pelo filho? Será algum caso psiquiátrico ou a situação política, social, econômica dela a anestesiou para a própria família?
- E como uma escola deixa alguém assim, sem o mínimo conhecimento? A culpa é de quem? Da escola? Do Governo? Da família? Do rapaz?
- Será de alguém? Ou será de todos? De um jovem desmotivado. E por que a desmotivação? Será que já lhe foi inculcado possibilidade de mudança, de melhora? Por que a família não se importa? Por que o Governo deixa a situação desgovernar? A escola não instruiu para constar que tem tantas aprovações?
Passa uma mulher bonita na rua e a seguimos com os olhos ignorantes das filosofias políticas.
- Ah! Quer saber? Estou lendo ao mesmo tempo uma média de 30 livros. Às vezes fico uma semana sem olhar para um deles, mas não consigo me focar em um só. Sinto-me um rajá em um harém de livros. E como é bom...
- E o que isso tem a ver com o rapaz destruído, digo, desinstruído?
- Nada! Só penso em Escravo de Papelópolis: “Oh burocratas, que ódio vos tenho / e se fosse apenas ódio / é ainda o sentimento da vida / que perdi sendo um dos vossos”, Drummond.
- Você é um burocrata?
- Não! Mas...
- Mas?
- Vou pra casa ler Urdume, de Rubem Leite. Recomendo! Inté!
- Até!

Saio e o ventinho me acompanha até em casa.


Escrito entre os dias 27 de dezembro de 2013 e 03 de março de 2014.

Ofereço como presente de aniversario a:
João P. Brito, Maria Ribeiro, Vanda Valério, Hingrid M. Linhares, Emerson P. Brito, Átila Nonato, Marco A. Parisotto, Ana Sandra, Lúcia Ramos e Ph Sr Kayô (Paulo H.B. Rodrigues).
Homenageio também a Seicho-No-Ie Ipatinga e Arte En Palillos.

URDUME é um ebook de poesias para exorcizar lamentos de amor, raiva e dor exacerbada através de sentimentos apurados e de um posicionamento significativo no mundo.
Obra bilíngüe (português e espanhol) de Rubem Leite; publicada pela editora CÍRCULO DAS ARTES. Ilustração de Bruno Grossi. Revisão de Cida Pinho e Lilian Ferreira.
Pode ser adquirido através da www.amazon.com.br

MACHADO, Ana Maria. Raul da ferrugem azul. Rio de Janeiro: Salamandra. 1979.
ANDRADE, Carlos Drummon de. Escravo de Papelópolis. http://letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/1221847/


Em banto, obax anafisa significam flores e pedras preciosas. O texto é minhas flores para você e faço votos de que encontre nele pedras preciosas.

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