domingo, 3 de maio de 2020

ESPERANÇA?



Pensá y comprendés. ¡Pensá! No tengas miedo de pensar. Es peligroso, lo sé. Es desconfortable, lo sé. ¡Pero pensá! Es libertador. Sé que la libertad da miedo, pero da también alivio. ¡Pensá!

No Brasil Império, escrever, pintar e compor era meio de ascensão social, o ingresso para frequentar ambientes e saloes da corte até então vetados aos intelectuais, especialmente se fossem negros e mulatos – caso do próprio Machado de Assis. […] Havia (após a Lei Áurea) um traço muito sutil e duradouro da escravidão, que, a rigor, jamais se apagou na cultura brasileira. É o preconceito contra negros e mulatos.
Um grande exemplo é a certidão de óbito do mulato Machado de Assis, o maior de nossos romancistas. Assinada por alguns de seus amigos mais próximos, como testemunhas, a certidão declara que a cor de sua pele seria “branca”. É provável que, agindo assim, esses amigos pretendessem prestar a derradeira homenagem a Machado.¹


Poe, em o Gato Preto, faz o protagonista dizer “Amanhã morrerei e hoje quero desafogar minha alma”.
À semelhança daquele, minha morte será por execução. Com a diferença que no meu caso será autoinfringida.
Mas porque morrerei?
Um quarto do século XXI passou e por vontade popular o Brasil voltara à política colonial em 2018. Os políticos bem entenderam e melhor distorceram “não discrepe do veritas super omnia, latim que em arte significa mentir com verossimilhança”².
Morrerei porque fiquei magoado com a mulher que amei. Porque a maltratei ela se foi. Há aqui outra leve semelhança com o conto de Poe, mas não com o gato…
Mas minha mágoa é só mais um fator.
Sou negro e tentei furtar um agrado para minha mulher relevar meu mal feito. Fui pego, despido, amarrado e chicoteado.

Que importa se concluí mestrado – claro que já se passaram dez anos; no final do primeiro quinto do século. Quando negro e mulher ainda podiam estudar.
Há quem disse e haverá quem dirá que roubei, não apenas furtei, mas roubei por ser preto; e o castigo é merecido pelo mesmo indicativo: preto!
Dois dias amarrado no poste elétrico e alguém me soltou.
Dois dias na esteira do meu quarto; fraco, mas faminto… Alguém, não sei quem, me deu o que comer e beber o suficiente para não morrer.
Furtei de novo. O motivo?
Pense e compreenderá. Pense! Não tenha medo de pensar. É perigoso, eu sei. É desconfortável, eu sei. Mas pense! É libertador. Sei que a liberdade dá medo, mas dá também alívio. Pense!
Fui visto. Sei que fui filmado e os capitães do mato virão aqui.
Sem amor, sem emprego, sem esperança. Ser preto.
Amanhã não me vou estar mais aqui. Antes que a fome volte. Antes que sinta mais dor e vergonha.




Ofereço como presente aos aniversariantes:
Ju Ferraz, João R. Laque, André Kondo, Nadja Soares e Rejane Balmant.

Recomendo a leitura de:
“Girasoles y Livros” – partes 1 e 2, de Javier Villanueva:
“Mais umas balas achadas”, de Glaussim:

¹ GOMES, Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil. Edição juvenil ilustrada. São Paulo: Globo Livros, 2014. P. 75 e 152.
² LOBATO, Monteiro. Marabá. O Macaco que se Fez Homem. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010. P. 104.

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Publica todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.
 É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.
 É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.
 Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”.
 Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
 Imagens:
Do autor pelo autor.

Manuscrito em 08 de setembro de 2019. Trabalhado entre os dias 25 de março e 03 de maio de 2020.